Vida após a Morte no Antigo Testamento — Enciclopedia da Bíblia Online

VIDA APÓS A MORTE

Entre os escritos poéticos e sapienciais de Israel, prevalece a convicção de que a fronteira da morte não se abre para uma existência pessoal robusta. A travessia, tal como é cantada e chorada nesses livros, tende a dissolver iniciativa, memória e louvor. Apesar disso, aqui e ali surgem lampejos — não um “mapa” do além, mas intuições de que a comunhão com Deus pode não se extinguir no limite biológico, pressentimentos que, em fases posteriores do judaísmo, ganhariam contornos de esperança pós-morte. O que se lê, portanto, não é um tratado sistemático, e sim um conjunto de vozes: lamentos que miram o abismo; ações de graças que celebram ter sido retirado de perto dele; e reflexões que pesam a vida com a sobriedade de quem sabe que ela se gasta.

I. A visão tradicional da morte

No horizonte clássico do Antigo Testamento, morrer não inaugura um “outro viver”; significa descer a uma região inferior designada Sheol, onde a pessoa humana, embora não aniquilada, perde densidade de existência. As imagens insistem numa permanência rarefeita, marcada por inércia e silêncio (Jó 3:17–20; Jó 7:9; Jó 17:16; cf. o desejo hipotético de 14:13). O traço teológico decisivo é litúrgico: os que ali repousam não participam mais do culto — não recordam, não louvam, não intercedem: “Na morte não há memória de ti; no Sheol, quem te louvará?” (Salmos 6:5; cf. Salmos 88:5). É por isso que alguns intérpretes preferem chamar esse estado de “não-vida” e não propriamente de “vida após a morte” (MURPHY, Death and After Life in the Wisdom Literature, p. 102): o fio da aliança continua nas mãos de Deus, mas a resposta humana, tal como a conhecemos na história, cessa.

Essa compreensão não impede que a poesia reconheça a soberania divina sobre todo o cosmos: o submundo não se esconde de Yahweh (Jó 26:6; Salmos 139:8). Todavia, saber que Deus vê o Sheol não equivale a afirmar que a comunhão se exerce ali. O teatro da relação — obediência, louvor, súplica — é esta vida; por isso a morte é descrita com metáforas que a tornam inimiga ativa: laços que apertam (Salmos 18:6; Salmos 116:3), boca que nunca se sacia (Provérbios 1:20; 27:20). Quando o orante escorrega à beira desse lugar, os salmos de lamento adotam discrição ao nomear o Sheol; e, ao escapar, os salmos de ação de graças celebram não um “além” conquistado, mas o retorno ao espaço onde a voz pode, novamente, dizer “tu”.

II. Perspectivas alternativas de pós-vida? (quadro histórico e hermenêutico)

Fora do repertório poético, irrompem, aqui e ali, declarações não líricas que apontam para um horizonte além da morte — sobretudo a promessa de ressurreição (Isaías 26:19; Daniel 12:2). A tradição acadêmica costuma situar a emergência dessas formulações no pós-exílio, por um conjunto de razões: o ambiente persa com o seu dualismo cosmoteológico, a maturação do apocalipticismo judaico e as transformações da vida comunitária sob novos impérios. Mesmo admitindo que sementes dessa esperança tenham brotado antes, seu impacto detectável sobre o material profético e histórico pós-exílico parece diminuto.

Quando a discussão retorna aos poemas — salmos e sabedoria —, o debate se adensa. Há, grosso modo, três trilhas interpretativas:

Leitura tradicionalista estrita. Para alguns, todos (ou quase todos) os textos poéticos preservam a visão clássica: Sheol como “não-vida”, sem relação signficativa com Deus. Onde leitores modernos celebram “pós-vida”, ver-se-ia apenas projeção tardia — releituras detectáveis, às vezes, já nos processos de transmissão antiga. É a posição associada, por exemplo, a GOLDINGAY (Death and Afterlife in the Psalms, 2000, p. 61-85) nos Salmos (com críticas firmes ao método conjectural de DAHOOD) e a MURPHY (Ibid., p. 101-116) no corpus sapiencial.

Leitura desenvolvimentista tardia. Outros admitem que alguns poemas sugerem, sim, uma perspectiva positiva além da morte; por coerência com quadros como Isaías 26 e Daniel 12, propõem datação relativamente tardia para esses textos, em sintonia com o momento em que tal esperança se consolidaria no judaísmo.

Leitura não linear. Uma terceira via permite o tom positivo sem exigir datação tardia: o desenvolvimento teológico não é linear nem uniforme; tradições distintas podem conviver e dialogar em épocas próximas. De todo modo, reconhecer isso não resolve o problema de fundo: grande parte da poesia bíblica é difícil de datar com precisão filológica. Entre os que percebem aberturas para uma esperança além da morte em alguns poemas estão JOHNSTON (Shades of Sheol: Death and Afterlife in the Old Testament, 2002), LEVENSON (Ressurrection and Restoration of Israel, 2006) e outros.

Este é o cenário no qual se analisam os Salmos 16, Salmos 49 e Salomos 73 e, depois, o dossiê dos “livros/registros”. O objetivo, aqui, não é “forçar” o texto a dizer mais do que diz, mas ouvir as suas ambiguidades controladas: onde a confiança presente em Deus, às vezes, empurra a linguagem até o limiar de uma duração que excede a biografia.

A. Salmos

Salmo 16 — preservar, livrar, e conduzir “na vereda da vida”

O poema começa sob o signo da vulnerabilidade: o suplicante se confessa dependente (vv. 1–2), distingue-se dos que seguem “outros” (v. 4), sofre isolamento. A surpresa está no fecho: “Não abandonarás minha vida ao Sheol… Tu me farás conhecer a vereda da vida… à tua direita há delícias para sempre [neṣaḥ]” (vv. 10–11). Tradicionalmente, lê-se aqui a segurança de uma preservação terrena prolongada: Deus frustra a morte iminente e prolonga a vida com bênção — leitura plenamente compatível com a teologia do Salterio.

Contudo, o timbre confiante que percorre o salmo autoriza uma nuance: evitar o Sheol pode siGênesisificar mais do que escapar do perigo presente; pode insinuar não ser definitivamente separado de Yahweh. A imagem da “vereda da vida” não nomeia um lugar, não descreve um estado do além, nem oferece cartografia — mas abre a expectativa de uma continuidade de fruição “à direita” de Deus. Se há aqui uma esperança “para além”, ela permanece deliberadamente indeterminada: sem topografia, sem cronologia. Ainda assim, o nexo é claro: comunhão atual → confiança em cuidado prolongado → “delícias” cuja duração (neṣaḥ) não cabe nos limites de um livramento pontual.

Salmo 49 — riqueza não resgata; Deus, sim

Este salmo sapiencial interroga a velha assimetria: os fiéis oprimidos por ricos insolentes. O poeta ensaia duas respostas.

Primeira resposta (vv. 7–9). Qualquer que seja a solução de v. 7a, a tese é cristalina: riquezas não resgatam ninguém do abismo; prorrogar a vida por compra é impossível; não há “pagamento” humano que evite a ida ao Sheol.

Desenvolvimento (vv. 10–14). Independentemente de como se interpreta o v. 14 (sabidamente difícil), o bloco afirma: os insensatos ricos descem ao Sheol. O destino é comum, o poder do dinheiro, nulo.

Segunda resposta (v. 15). Em contraste lapidar: aquilo que riquezas não resgatam, Deus resgata. “Ele me remirá do poder do Sheol e me receberá.” A antítese estrutura o argumento: eles não podem (vv. 7–9, 10–14); Ele pode (v. 15). Pode-se, sem dúvida, ler a remissão como livramento de morte prematura — coerente com outras peças do Saltério. Mas o salmo não afirma essa limitação, nem a pressupõe. A natureza reflexiva do poema, a oposição de destinos e o verbo de acolhimento (“receber”) convergem para uma alternativa de longo alcance; se não desenha um “céu”, pelo menos qualifica o destino do justo para além da mera sobrevida momentânea.

Salmo 73 — um “depois” que não fecha a equação, mas a empurra

Outro salmo sapiencial, outra peregrinação: no santuário, o salmista entende o desfecho dos ímpios e, em paralelo, a preservação dos retos. A contraposição, porém, é menos diretamente aplicada ao destino final do justo do que no Salmo 49. O fechamento (vv. 27–28) coloca lado a lado a perdição dos sem-Deus e a vida continuada do que se refugia em Deus.

É nesse contexto que caem as afirmações de vv. 23–26: Deus me toma pela mão de modo contínuo; depois (ʾaḥar) me receberás com honra (kābôd); embora definha a carne e faleje o coração, Deus é a rocha da minha porção “para sempre” (lĕʿôlām). Todos esses termos se acomodam a uma leitura intra-histórica. Ao mesmo tempo, sua abertura semântica e a coerência com a experiência de santuário permitem ouvir eco de uma tenra esperança: a condução que não cessa, o “receber” que se dá “depois”, a honra que ultrapassa humilhações — elementos que, em tradições posteriores, favoreceram releituras pós-morte. O texto, em si, não detalha tal estado; mas deixa espaço para que a confiança ultrapasse o instante.

(i) “Livros”, “registros”, “nomes” — arquivo divino e o risco de anacronismo

Alguns salmos falam de um registro celestial: “o livro dos viventes” (Salmos 69:28; cf. Êxodo 32:32–33; Isaías 4:3; Daniel 12:2; Malaquias 3:16). Outros mencionam livros onde se assentam eventos (Salmos 40:7; Salmos 56:8; 139:16; cf. Daniel 7:10; Daniel 10:21). É tentador buscar genealogias culturais: as “tábuas do destino” babilônicas, registros persas. Tais paralelos, no máximo, oferecem analogias religiosas/administrativas; não são, por si, antecedentes necessários.

O dado incontornável é outro: em literatura judaica posterior e no Novo Testamento (com destaque para Apocalipse), esse arquivo divino é desenvolvido no eixo do juízo pós-morte. Daí a tentação de retroprojetar tal função para dentro dos salmos. Mas nem o contexto imediato desses poemas, nem o horizonte teológico israelita mais amplo exigem essa leitura. Em Salmos 69, por exemplo, dada a centralidade desta vida e o que se diz dos ímpios no próprio salmo, o pedido é pela morte antecipada dos adversários — não por uma sentença situada além-túmulo. Do mesmo modo, as outras menções podem ser entendidas como formas de dizer que Deus não esquece: Ele inscreve prantos, dias, obras. É fato que a categoria se deixa reinterpretar como chave escatológica; mas, com toda probabilidade, não é isso que o Saltério tem em vista quando fala em livros e listas de nomes.

O Antigo Testamento poético, em seu núcleo, não celebra uma vida consciente e ativa após a morte; fala antes de um Sheol que silencia e dilui. Mesmo assim, certas peças — notadamente os Salmos 16, 49 e 73 — esticam a confiança até um ponto em que preservação, resgate e acolhimento de Deus podem ser ouvidos como mais do que livramento imediato. Em paralelo, as referências a “livros” e “registros” testemunham uma teologia do memorial divino que o judaísmo e o cristianismo posteriores carregarão para o tribunal final; mas, dentro do Saltério, o acento continua no agora: o Deus que vê, lembra e age — antes que a poeira feche o ciclo.

B. Jó — conselho celeste, mediadores e o enigma de 19:25–27

Cenário espiritual do livro. O universo de Jó comporta uma esfera não material em interação com o mundo humano. Os capítulos iniciais exibem um conselho celeste (ver Conselho Divino) em que comparecem Yahweh, os “filhos de Deus” e “o satan” (Jó 1:6-7; Jó 2:1). Essa moldura teológica é partilhada pelos interlocutores de Jó: Elifaz relativiza a esperança de ajuda “entre os santos” (Jó 5:1) e Eliú imagina um anjo mediador capaz de resgatar alguém da “cova” (Jó 33:23-28). O próprio Jó, movido por sede de justiça, deseja um árbitro (môkîaḥ, Jó 9:33) que constranja Deus a ouvi-lo e confessa fé numa testemunha celestial (ʿēd, Jó 16:19) que deponha a seu favor.

Vida após a morte no Antigo Testamento

A leitura que aponta para pós-vida. Nesse pano de fundo, a famosa declaração de Jó 19:25-27 tem sido lida como vindicação em esfera não material, com vocábulos que poderiam sugerir uma experiência pós-morte. Nessa leitura, Jó teria ultrapassado a visão tradicional, vislumbrando uma forma de reabilitação para além do túmulo.

Mas o arco narrativo favorece outra compreensão. Após o capítulo 19, Jó prossegue em chave jurídica: deseja encontrar Deus, apresentar sua causa, ser absolvido, provado e aprovado “como ouro” (Jó 23:3–10). Seu arremate mantém o foco no julgamento e na audição divina (Jó 31:6, 35). O que ele “sabe” em 19:25 não altera a sequência argumentativa nem a parte final do livro: discursos de Yahweh centrados na criação, resposta humilde de Jó e desfecho terreno no capítulo 42. O contexto imediato de 19:25–27 também não sustenta uma guinada para além-túmulo: antes de enunciar sua esperança, Jó deseja um registro permanente de suas palavras (Jó 19:23–24). Esse registro pode ser entendido como documento datado (cf. Isaías 8:1) para provar posteriormente sua inocência mantida, e não como monumento voltado a sobreviver-lhe após a morte. O capítulo, aliás, termina evocando punição nesta vida (Jó 19:28–29).

Texto difícil; três pontos firmes. É inegável que Jó 19:25–27 apresenta opacidade textual. A tradução NRSV recorre a expressões ambíguas — “no final”, “então”, “ao meu lado”, “nenhum outro” — e acumula cinco notas explicativas ligadas à tradução. Ainda assim, três elementos permanecem claros:

Quem é o gōʾēl. Jó invoca seu gōʾēl, o parente-resgatador — a figura jurídica que (i) redime um familiar da escravidão, (ii) resgata propriedade hipotecada, (iii) casa-se com a viúva sem filhos e (iv) vinga a morte de um parente (ver Parente-Resgatador e Levirato). É verossímil supor que o gōʾēl atue também como advogado legal, embora o AT não traga exemplo explícito. Como Jó já ansiara por um advogado perante Deus (Jó 9:33; 16:19) e o resultado aqui é que ele verá Deus (Jó 19:26–27), o gōʾēl é muito provavelmente esse representante — dificilmente o próprio Deus, e menos ainda um “grito personificado” de Jó.

Quando e onde ele age. O gōʾēl “se levantará” por fim para defender Jó. O quadro pressuposto é mais coerente com um tribunal terreno; a temporalidade, porém, fica indeterminada: tanto o “ao final” quanto as menções a pele e carne admitem leituras diversas.

Qual é o desfecho. O ponto culminante é: Jó verá Deus. É o anseio que o move desde o início: enfrentar o Juiz, apresentar a causa. E isso acontece no fim do livro — ainda que com desfecho inesperado: em lugar de autodefesa altiva, há contrição; em vez de condenação, há vindicação.

A fé aqui é ousada, porém intra-histórica: não se trata de afirmar uma sobrevivência pós-morte, mas a certeza de que Jó terá audiência com Deus. O drama, ainda que atravesse o invisível, se cumpre no visível. Uma vindicação póstuma lida em 19:25–27 não se ajusta ao arco literário. Dito isso, as dificuldades do texto podem refletir, em fases de transmissão e tradução, uma esperança emergente de pós-vida positiva — o que explicaria releituras que empurram o trecho para além do que o próprio livro exige.

C. Provérbios — vida, morte e alguns nós filológicos

O tema vida-morte perpassa os caps. 1-9 e retorna em máximas avulsas. A mulher estrangeira/tola aparece como figura que arrasta o incauto à morte, ao Sheol e aos rĕpāʾîm (“sombras”: Provérbios 2:18; Provérbios 5:5; Provérbios 7:27; Provérbios 9:18). Há também menções ao Sheol sem conexão direta com destino humano (Provérbios 1:12; Provérbios 15:11; Provérbios 27:20; Provérbios 30:16). Em regra, o horizonte é binário: vida presente vs. submundo — não uma bem-aventurança após a morte.

Textos que parecem abrir outra via — e por que eles hesitam:

Provérbios 13:14; Provérbios 23:14. A instrução sábia e a disciplina física evitam “laços de morte” e afastam o Sheol; mas o “outro lado” suposto é a vida terrena.

Provérbios 15:24. “A vereda da vida sobe para evitar o Sheol embaixo”: novamente, a imagem favorece o viver no presente, tal como o contraste com a rota da mulher estrangeira (Provérbios 5:5–6).

Provérbios 12:28. Aqui o terreno treme. O texto massorético traz: “o caminho da justiça é vida e não morte”. A meia-linha final é desajeitada: literalmente, “e vereda de caminho não morte” — há redundância nominal (derek nĕtîbâ) e o negativo ʾal não costuma anteceder substantivos. Muitos manuscritos hebraicos oferecem ʾel (“para”), e versões seguem essa direção. Daí a solução frequente: reconstruir o verso em paralelismo antitético, à semelhança de outras sentenças vida-morte — p. ex., “mas o caminho da insensatez conduz à morte” (cf. nota de BHS).

Provérbios 14:32. Outra pedra de tropeço. A leitura “o justo encontra refúgio na sua morte [bĕmôtô]” não encontra paralelo conceitual no AT e combina melhor com escatologias posteriores (cf. Sabedoria 4:7-17). Não surpreende que LXX e sir apresentem “em sua integridade” (bĕtûmmô), o que sugere metátese gráfica.

Os poucos provérbios que parecem insinuar uma pós-vida positiva são textualmente instáveis e/ou conceitualmente ambíguos. Não chegam a fundar uma perspectiva afirmativa; se algo testificam, é a possibilidade de que, já na transmissão, certas mãos tenham lido luz além do véu e ajustado o texto nessa direção.

D. As Meguilot — Eclesiastes em foco, e as demais ao redor

Eclesiastes: quando a morte entra em pauta. Ao contrário da Torá (que prescreve a morte como pena), dos Livros Históricos (que a registram como evento) e de muitos salmos (que rogam livramento da morte prematura), Eclesiastes reflete longamente sobre a natureza da morte. Já se disse que o livro tem “cheiro de túmulo”; e ele o exala em três fios justapostos:

Ritmos naturais e o valor do viver. Desenham-se quadros serenos dos ciclos de nascimento, velhice e morte (Eclesiastes 3:2; Eclesiastes 12:1-8). Ao lado deles, há convites a gozar a vida por si, não como reação espasmódica ao fim (Eclesiastes 3:12–13). Essa é a cadência da tradição israelita: a vida aqui como dom a ser saboreado.

A inquietação que nivela tudo. Em outra cadência, o livro insiste: sábios e tolos, humanos e animais parecem morrer do mesmo jeito (Eclesiastes 2:17–18; 3:19–21). Disso nascem frustração e foco no presente: riqueza e fama nada mudam no limiar (Eclesiastes 5:15-16; Eclesiastes 6:1-2); a vida é sombra, e o luto ensina mais que a festa (Eclesiastes 6:11; Eclesiastes 7:2-4). Numa passagem-chave, o autor sustenta que a morte aguarda a todos e apaga conhecimento, paixão e ação (Eclesiastes 9:1–10).

Frestas de juízo — sem relógio, nem mapa. Aqui e ali, tanto Qohelet quanto o epilogador aludem a juízo divino (Eclesiastes 3:17; 11:9; 12:14). Mas não dizem quando nem como. São vislumbres que não se deixam organizar com os dois fios anteriores.

Nada se fecha por completo. Esses três eixos — o sereno, o inquieto, o forense — não se integram num sistema. Muitos leitores acentuam o pessimismo do livro: a morte como última palavra. Outros lembram que Sheol pode sugerir continuidade — mas não uma pós-vida significativa. Ainda assim, as alusões a juízo, qualquer que seja sua origem no livro, insinuam a possibilidade de um acerto de contas para além do calendário “debaixo do sol”. À semelhança de alguns salmos (ver 2.1), Eclesiastes estica a corda da linguagem até tocar um além indeterminado — sem fixar nome, lugar ou fase.

As demais Meguilot. Rute e Ester tratam a morte como dado narrativo — algo que acontece, sem teologia do pós-morte. Cântico dos Cânticos roça o tema com o provérbio de 8:6: o amor é forte como a morte, o ciúme (ou paixão impiedosa) é duro como o Sheol — a imagem da irresistibilidade. Lamentações, nascida da catástrofe, respira dor, ruína e morte, mas se fixa na fé e nas emoções do sobrevivente; não discute o destino dos mortos. Em conjunto, as Meguilot ilustram o foco hebraico na vida presente e a relativa indiferença a uma consciência individual para além da morte.

Nos três dossiês — Jó, Provérbios e Meguilot —, o Antigo Testamento mantém a tônica: a morte silencia e o Sheol dissolve; o espaço da aliança e do culto é agora. Quando textos parecem acenar para além (Jó 19; Provérbios 12:28; 14:32; ecos de juízo em Eclesiastes), é quase sempre por vias de ambiguidade: dificuldades filológicas, opacidades semânticas, vislumbres não amarrados. O que não significa ausência de fé: em Jó, a ousadia de enfrentar Deus; em Provérbios, a confiança na senda que evita a morte; em Eclesiastes, o senso de responsabilidade ante um juízo que não se deixa cronologar. Se o leitor posterior ler aí pós-vida, o fará por reaproveitamento hermenêutico legítimo — mas não obrigatório. O corpus, tal como está, conserva o peso da mortalidade e o chamado a viver diante de Deus antes que o pó volte ao pó.

Bibliografia

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GALVÃO, Eduardo. Vida após a morte no Antigo Testamento. In: Enciclopédia da Bíblia Online. [S. l.], set. 2025. Disponível em: [Cole o link sem colchetes]. Acesso em: [Coloque a data que você acessou este estudo, com dia, mês abreviado, e ano. Ex.: 22 ago. 2025].

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