Estudo sobre Gênesis 14

Gênesis 14: Abrão e os reis

A escolha do território por parte de Ló rapidamente se torna complicada quando quatro reis atacam Sodoma e outras quatro cidades. O episódio em si é complexo de várias maneiras. Os detalhes históricos e geográficos não podem ser verificados. Além disso, Abrão é retratado aqui sob uma luz diferente dos capítulos adjacentes; lá ele foi patriarca e pastor; aqui ele é o comandante de um exército. Suas tropas partiram em perseguição aos captores de Ló, viajando até Damasco, bem ao norte. Este incidente na narrativa de Gênesis é provavelmente um acréscimo posterior, inserido para abordar uma questão pertinente ao escritor, mas que estava além do escopo deste comentário. Iremos concentrar-nos noutro incidente, nomeadamente, o encontro de Abrão com os dois reis, o rei de Sodoma e Melquisedeque de Salém, no seu regresso de Damasco. Melquisedeque dá as boas-vindas a Abrão e Ló realizando um ritual sacerdotal.

Várias das localizações geográficas foram identificadas; por exemplo, Salem é o antigo nome da cidade de Jerusalém. A cena culminante do capítulo é o ritual sacerdotal de Melquisedeque para dar as boas-vindas a Abrão de volta de sua missão de resgate. Esta cena prepara o cenário para o reinado de Davi e os anos que se seguiram: Melquisedeque é rei e sacerdote. A narrativa o identifica como rei de Salém e depois descreve um ritual que envolve pão e vinho e uma bênção de Abrão por Melquisedeque. Melquisedeque abençoa Abrão em nome do “Deus Altíssimo”, a principal divindade entre os deuses cananeus. Servir pão e vinho pode ser um simples ato de hospitalidade ou também representar um ritual religioso para celebrar o sucesso de Abrão. Pensa-se que o seu maior significado reside no prenúncio de três realidades: a importância religiosa de Jerusalém, os cargos reais e sacerdotais combinados do rei da região e a eventual lealdade dos descendentes de Abrão ao rei israelita em Jerusalém. Num incidente semelhante em 2 Samuel 6:13, Davi oferece um sacrifício ao Senhor durante a cerimônia de trazer a arca para Jerusalém (ver também Sl 110:4). Esses prenúncios de situações futuras sugerem que o material está entre os mais recentes na narrativa de Gênesis. Do ponto de vista da monarquia, o editor do sacerdotal incluiu detalhes sobre o passado que ligam a realidade atual do povo com aqueles dias longínquos, quando Abrão era novo na terra, demonstrando que a proteção do Senhor ao povo remontava à sua história mais antiga. . De uma maneira consistente com o costume cristão primitivo de ligar Cristo a figuras do Antigo Testamento, o autor de Hebreus traçou uma semelhança entre Melquisedeque e Jesus Cristo (Hb 7:1-4).

Notas Adicionais

14.1-24
Gn 14 é um capítulo singular, que tem ocasionado uma enormidade de discussões e debates. Destaca-se de todas as narrativas acerca de Abrão e o apresenta de forma bastante diferente; o pacífico patriarca aqui se torna um guerreiro bem-sucedido. Teologicamente, não é fácil enxergar o propósito e a função dessa história. Do ponto de vista histórico, o capítulo é desconcertante: poderíamos esperar que tantas informações acerca dos reis daquela época nos fornecessem datas exatas para a época de vida de Abraão e que registros de outras nações nos dessem alguma confirmação dos eventos aqui relatados. Até hoje, no entanto, nenhuma dessas esperanças se materializou. A falta de confirmação levou a dúvidas crescentes acerca da historicidade desse relato. Uma dificuldade especial é a menção sem paralelo de um rei de Elão envolvido numa guerra tão distante da sua terra; é surpreendente também encontrar potências da Mesopotamia em data tão antiga não somente guerreando na Palestina, mas controlando parte dela por aproximadamente 12 anos (v. 4). Por outro lado, até os eruditos mais céticos geralmente admitem que há uma série de detalhes nessa história que demonstram antiguidade e realismo genuínos. O tratamento que E. A. Speiser dá ao texto é muito útil; ele tirou o máximo de proveito das evidências arqueológicas disponíveis, mesmo que alguns de seus argumentos tenham sofrido sérias críticas. Dois pontos podem ser destacados a favor da historicidade: em primeiro lugar, nenhum dos detalhes da história foi desmentido por qualquer achado arqueológico; e, em segundo lugar, qualquer que seja a “improbabilidade” que o capítulo contenha, é difícil imaginar por que razão plausível uma história dessas teria surgido se não tivesse nenhum fundamento histórico.

14:1-12. O elo com o capítulo anterior é a menção de Sodoma (v. 2), seguida da referência a Ló (v. 12). Logo se torna claro que a escolha de território que Ló fizera, não obstante as aparências, estava longe do ideal; Sodoma não era só notoriamente ímpia e má, mas a sua riqueza se tornou uma tentação para forças externas tão distantes como as da Mesopotamia. Nenhum dos invasores é conhecido de outras fontes, a não ser que Tidal seja o rei hitita Tudkhalia I (c. 1700 a.C.); é certo que Anrafel não é Hamurabi (uma identificação feita com frequência no passado). Todos os nomes são pelo menos muito apropriados para aquela época e região do mundo. Dos territórios mencionados, Sinearii.e., Babilônia) e Elão são bem conhecidos; mas Elasar ainda não foi identificado, nem Goim, que é a palavra hebraica geralmente usada para “nações”, e não é necessariamente um nome de lugar aqui.

Os cinco reis palestinos (v. 2) governaram numa região específica, o vale de Sidim (v. 3), aparentemente no extremo sul do mar Morto (v. comentários de 19.25); mas evidentemente os invasores confederados tinham ainda outros inimigos e seguiram uma rota curiosamente tortuosa (5ss) antes de se ajuntarem para a batalha contra o rei de Sodoma e seus aliados. V. o mapa 24 no Macmillan Bible Mas [Atlas Bíblico Macmillan], Os invasores venceram, e Ló foi feito prisioneiro (v. 12).

14:13-16. Abrão agora aparece nessa história pela primeira vez; ele não precisaria ter se envolvido, e sua lealdade desinteressada a seu parente contrasta com o egoísmo que Ló havia demonstrado (13.10,11). O tamanho do clã de Abrão (v. 14) é uma surpresa; mesmo assim, ele não comandou nenhum grande exército de homens treinados, e deveríamos entender a continuação da história como uma perseguição prolongada da retaguarda dos confederados, desde Dã (na época chamada Laís; cf. Jz 18.27ss) até Hobá. Depois de resgatado dessa forma, Ló estava livre para retornar para casa em Sodoma.

14:17-24.
A questão dos relacionamentos não é um aspecto sem importância no estabelecimento dos patriarcas na Palestina. Nesse capítulo, vemos Abrão em aliança com os povos dos clãs da região de Hebrom (v. 13), e suas atividades a favor de Ló mostram que ele é um bom vizinho para todas as cidades-Es-tado de Canaã. Dois dos reis locais reagiram de forma amigável. Obviamente o rei de Sodoma (v. 17) devia favores a Abrão, e a sua oferta (v. 21) foi mais do que natural; mas Abrão não queria ficar devendo nada a homem algum — muito menos ao rei de uma cidade com a reputação de Sodoma (v. 22ss).

No entanto, o ponto central da história é outro rei: Melquisedeque de Jerusalém (esse nome ocasionalmente é abreviado como Salem, cf. SI 76.2). Há vários níveis de significado a serem considerados. No nível puramente factual, a história é muito simples: um governante cananeu local faz um gesto de amizade a um herói que retorna, fornece uma simples refeição a seus homens, pronuncia uma bênção sobre ele e recebe uma pequena porção do saque da guerra. E evidente que o reinado sobre Jerusalém incluía funções sagradas. A divindade adorada por Melquisedeque era ’El ‘Elyôn (o Deus Altíssimo)-, El era adorado pelos cananeus como a sua divindade suprema, como pai e criador, e o título Altíssimo também era muito conhecido entre eles. A formulação da resposta de Abrão (v. 22) deixa muito claro que o Deus adorado por Melquisedeque não era outro senão o Senhor — o Deus que havia aparecido pessoalmente a ele. A história teria sido muito diferente se Melquisedeque tivesse sido um devoto de Baal!

Em outro nível de significado, é inegável que aqui haja simbolismo. O nome Melquisedeque pode ser traduzido por “rei de justiça” (cf. Hb 7.2), em forte contraste com o rei de Sodoma, cujo nome, Bera (v. 2), aparentemente significa “em/no mal” (assim como também Birsa significa “em/na iniquidade”) — independentemente do sentido e da função original desses nomes. Sodoma estava condenada, como sabemos; mas Jerusalém (que não aparece em outra passagem de Gênesis) tinha promessa de um grande futuro como a cidade da escolha e da presença de Deus. Era totalmente apropriado, portanto, que o ancestral do povo de Israel estivesse debaixo da bênção do Deus que já era reverenciado em Jerusalém.

Se, então, Abrão representa o povo de Israel, Melquisedeque representa o futuro rei davídico (cf. SI 110.4). Hb 7, embora destaque mais o sacerdócio de Melquisedeque, reconhece corretamente o seu status superior em comparação com Abrão. Assim, Gn 14 prefigura o reinado de Davi e de seus descendentes.

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