Estudo sobre Gênesis 2

Gênesis 2

O sétimo dia (2.1-3)
O propósito de Deus tinha sido atingido de forma tão perfeita que no sétimo dia ele sãbat, i.e., ele cessou (NEB, Speiser), parou (Driver), descansou (BJ), acabou de fazer [...] e descansou (BLH). No contexto, descansou é inadequado (v. 2,3), pois implica esforço que não foi de forma alguma sugerido. Podemos observar com base no v. 2 que ninguém poderia afirmar que a obra de Deus estava concluída, até que ele mostrasse que estava ao cessar de fazê-la (semelhantemente, em Êx 20.9 o guardar o sábado é um sinal de que todo o trabalho do homem foi feito). Que esse cessar da obra da criação é final e definitivo se mostra pela omissão de qualquer menção conclusiva de noite e manhã. Por isso, não há contradição com Jo 5.17, em que a referência é a obra de cura, e não de criação. Embora fique claro que o homem em comunhão com Deus vai guardar o sábado (cf. Hb 4.9,10), no sentido de cessar de fazer o seu próprio trabalho, não há evidências de uma revelação universal nos primórdios; Esdras afirmou que tinha sido uma revelação a Israel (Ne 9.14). Não reconhecer que a prova de Deus ter concluído sua obra era o sábado levou o Sam., a LXX e o Sir. a ler “no sexto dia” (v. 2), e isso foi seguido pela NEB.

b) A criação do ponto de vista do homem (2.4-25)

Se o v. 4 é considerado a conclusão da história anterior da criação (como fazem a NEB, BJ, GNB, Wiseman) ou a introdução da segunda história (como fazem a NVI, RV, Kidner) é de pouca importância, a não ser que se considere com Wiseman que a frase esse é o relato de... seja a pista para a leitura de Gênesis. Aliás (ao contrário do TM), Skinner, Speiser, NEB, BJ, GNB dividem o versículo entre as duas histórias. Parece não fazer grande diferença para a nossa compreensão.

Essa história se desenrola claramente numa região árida, irrigada somente por água subterrânea que irrompe repetidamente do solo (cf. NEB) que a teria tornado cultivável, um fato que aparentemente é ignorado por Kidner, quando argumenta a favor de um desperdício de água. Apesar dos argumentos de Morris e Whitcomb, não há fundamento para o ponto de vista de que não houve chuva até o Dilúvio, e tampouco a linguagem aqui é compatível com isso, pois claramente ela implica que a chuva era algo a ser esperado.

Na seção de 2.4—3.24, o Criador é chamado Javé Elohim, um título praticamente único. Não é difícil encontrar a razão disso. Elohim ressalta o poder de Deus, e é o uso óbvio em 1.1—2.3. Javé é Deus quando se revela ao homem e cuida dele. O título duplo serve para ressaltar que o Deus da criação é também o Deus que estabelece um relacionamento com o homem; isso nos ajuda também a evitar o tipo de crítica que contrasta o Deus do Antigo Testamento com o Deus do Novo Testamento, v. 5. não havia homem homem (’ãdãm) é humanidade, incluindo os dois sexos. Ocorre como nome próprio somente a partir de 4.25, como está na NEB — o seu uso como nome na NVI em 3.21 e 4.1 é incorreto. O termo é associado com dãmãh, “solo cultivável” (v. 7). Esse versículo é fundamental para o conceito de homem no AT, i.e., um corpo do mundo criado, ligando-o com toda a criação, sopro, ou espírito de Deus, dando a ele vida e individualidade, juntos criam uma unidade psicossomática, uma nephes hayyãh, uma alma vivente (cf. comentário em 1.21 e A Teologia do Antigo Testamento, p. 76). O termo sopro (n‘sãmãh) é usado aqui, e não “espírito” (ruah), provavelmente para evitar a sugestão de que o homem fosse um ser semidivino.

O homem foi criado numa região árida que se tornou cultivável somente pelo irromper repetido de água subterrânea. De lá, ele foi levado para um jardim, ou antes um “parque”, especial que ficava ao leste (v. 8,9) no Éden, um lugar não especificado — comentários o situam com igual certeza nos planaltos da Anatólia ou da Armênia, ou logo acima do golfo Pérsico. O homem recebeu a tarefa de ampliar as condições do seu lar para o mundo à sua volta, um pensamento sugerido nos v. 10-14, uma seção que até agora não recebeu uma explicação física adequada, talvez por causa dos efeitos do Dilúvio. Precisamos observar que a tarefa do homem não era somente cultivar o jardim, mas também guardá-lo — cuidar dele é uma tradução muito fraca de sãmar (cf. comentário de 1.28); havia perigos, não especificados, fora do jardim.

A árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal (v. 9). A Bíblia rejeita completamente a ideia que está por trás de toda mágica, i.e., a superstição de que o homem pode forçar o braço de Deus por meio de uma palavra, coisa ou ação. Por conseqüência, o conhecimento do bem e do mal e também o presente da vida eram atributos que Deus escolheu dar a essas árvores; não eram parte da essência delas. Podemos até questionar se o comer involuntário ou acidental por parte do ser humano teria tido algum efeito sobre ele. Em outras palavras, a sua ação era sacramental (Leupold).

2:17. conhecimento do bem e do mah essas árvores são consideradas por muitos como significando o certo e o errado em termos morais, mas isso é muito improvável. Se o homem não tivesse um sentido moral em virtude de sua criação, poderíamos perguntar em que sentido ele teria sido criado à imagem de Deus. Além disso, sem esse conhecimento a sua desobediência dificilmente poderia ter sido considerada pecado no sentido amplo. Como foi ressaltado em 1.4, bem não tinha necessariamente um sentido moral, e o mesmo é válido para mal (cf. Gn 47.9 (“[anos] difíceis”, NVI), Isaías 45.7 (“desgraça”, NVI). Visto que o homem, ao contrário dos animais, não foi criado com um conhecimento intuitivo do que era bom ou mal para ele, dependia de Deus para orientação diária. Seja qual for a razão (cf. 3.22), a árvore da vida não recebe menção especial. A advertência da pena de morte sugere fortemente que o homem sabia o significado da palavra. Foi a morte humana, e não a morte animal, que o pecado introduziu no mundo — não há sugestão em lugar algum acerca da imortalidade animal — assim Adão pode tê-la encontrado do lado de fora, antes de ter sido transferido para o jardim. A morte para o AT significava acima de tudo a incapacidade de agir, e essa foi a consequência principal da desobediência do homem; a advertência de Deus se cumpriu completamente. A morte física do homem foi meramente a consequência lógica e inevitável.

Dando nomes aos animais (v. 18-20). No mundo antigo, dar nome a uma pessoa era um sinal de autoridade sobre aquela pessoa (cf. 2Rs 23.34; 24.17). Assim, o fato de o homem dar nomes aos animais é o primeiro ato registrado do seu domínio sobre os animais. Visto que o registro está centrado no homem, não há razões para imaginar que isso incluiu outros animais que não fossem nativos daquela região, ou que a sua distribuição era muito diferente naquela época — observe que os peixes não são mencionados, tampouco os “pequenos animais que se movem rente ao chão”. Não temos indicação alguma dos nomes, pois a primeira língua do ser humano certamente não foi o hebraico.

A criação da mulher (v. 20-25). Ao dar nomes aos animais, o homem tinha percebido claramente que em todos os casos havia dois sexos, em alguns casos bastante diferentes, e que ele estava sozinho. A verdadeira parceria, ao contrário do instinto sexual, precisa estar fundamentada em clara necessidade e desejo. O ser humano, por ter sido feito à imagem de Deus — que é uma Trindade —, é por natureza um ser social. Assim, a solidão não é boa para ele; o v. 18 faz menção dos dois sexos de forma igual! Visto que o propósito criativo de Deus significou desde o início os dois sexos, masculino e feminino (1.27), a primeira cura para a solidão foi a criação da mulher para ser parceira do homem; o hebraico implica o encaixe em uma unidade, em que cada um ajuda o outro da mesma forma.

Devemos questionar seriamente se sela1 significa de fato costela ou simplesmente “lado” (cf. nota de rodapé da NVI). Se é “lado”, então há segredos científicos escondidos aqui que estão além do escopo deste comentário. Diferentemente de qualquer outro casamento, Adão e Eva, embora cada um encontrasse o seu complemento no outro, eram essencialmente um, que é o alvo nunca completamente atingido de todo verdadeiro casamento (v. 24, “uma só carne”); cf. At 17.26 (não a VA). Ao contrário do que diz 3.16, e da prática moderna na maioria dos casos, o homem deveria subordinar os seus interesses aos de sua esposa (v. 24). O desejo quase universal do homem decaído de cobrir o seu corpo, ao menos em parte, encontra o seu paralelo naquilo que está escondido na sua psique, seja conscientemente, seja de forma a se enganar a si mesmo e a outros; i.e., a nudez aqui é tanto literal quanto simbólica. Em 3.7 (q.v.), ela parece assumir um significado ainda mais profundo.