Hebreus 6: Significado, Devocional e Exegese

Hebreus 6

Hebreus 6 é, ao mesmo tempo, uma das passagens mais desafiadoras e centrais da epístola. Após a repreensão à imaturidade espiritual no final do capítulo anterior, o autor agora exige um progresso consciente na fé cristã, advertindo com severidade sobre os perigos da apostasia. O capítulo está estruturado em um delicado equilíbrio entre ameaça e promessa: primeiro, apresenta a impossibilidade de renovar ao arrependimento os que caíram após terem experimentado os dons celestiais; depois, afirma a esperança inabalável dos que perseveram na fé e nas obras. Em sua densidade teológica, Hebreus 6 articula elementos soteriológicos, escatológicos, eclesiológicos e até mesmo pactuais, sobretudo ao evocar a fidelidade de Deus ao juramento feito a Abraão. O tom é pastoralmente exortativo, mas teologicamente elevado. Ele confronta o leitor com a realidade do juízo, sem perder de vista a âncora segura da esperança na promessa divina.

I. Estrutura e Estilo Literário

O capítulo divide-se em três blocos distintos, com transições retóricas claras. O primeiro (vv. 1–3) é uma exortação ao progresso na fé, formulada por meio de um apelo direto à maturidade: “φερώμεθα ἐπὶ τὴν τελειότητα” [pherṓmetha epì tḕn teleiótēta, “avancemos para a perfeição”]. O uso do subjuntivo dehortativo confere tom de convocação coletiva e decidida. O segundo bloco (vv. 4–8) constitui o trecho mais controverso e solene: uma descrição enfática da apostasia como algo irreversível. O estilo aqui é hiperbólico, com acúmulo de participiais (v. 4: φωτισθέντας, γευσαμένους, γενηθέντας, etc.) e uma construção complexa, que culmina no aoristo ἀνασταυροῦντας [anastauroûntas, “crucificando novamente”]. O recurso à analogia agrícola no versículo 7 reforça o argumento de modo parabólico, evocando a tradição profética.

O terceiro bloco (vv. 9–20) muda o tom: o autor passa do juízo à consolação. Usa-se agora linguagem epistolar e pastoral, com termos de afeição (“ἀγαπητοί” [agapētoí, “amados”]) e confiança (“πεπείσμεθα” [pepeísmetha, “estamos persuadidos”]). O estilo torna-se solene e pactuante ao evocar o juramento feito a Abraão (vv. 13–18), com uso de linguagem jurídica e cultual, como ὅρκος [hórkos, “juramento”] e μεσίτης [mesítēs, “mediador”]. O capítulo culmina em uma metáfora marítima e cultual: Cristo como “âncora da alma” e “precursor dentro do véu” (vv. 19–20), abrindo o caminho para a reintrodução de Melquisedeque no capítulo seguinte. Assim, o estilo de Hebreus 6 é variado: exortativo, hiperbólico, parabólico, epistolar e doutrinal — todos unidos por uma retórica teológica profundamente coesa.

II. Hebraísmos no Texto Grego

O grego de Hebreus 6 permanece fortemente influenciado por construções semíticas, tanto em seu estilo cumulativo quanto em sua estrutura de paralelismo conceitual. No versículo 1, a expressão “νεκρῶν ἔργων” [nekrṓn érgōn, “obras mortas”] traduz diretamente o hebraico מַעֲשֵׂי־מֵתִים [maʿăsê-mêtîm], conceito presente na tradição judaica para indicar ações ritualistas ou legalistas desvinculadas de fé viva (cf. Isaías 1:13; Ezequiel 18:24). O uso repetido de participiais acumulados em 6:4–6 (φωτισθέντας, γευσαμένους, γενηθέντας, etc.) imita o estilo paralelístico hebraico, especialmente da poesia sapiencial e dos salmos, com seu ritmo binário e sua progressão culminativa (cf. Salmo 1:1–3).

A expressão “ἀνακαινίζειν εἰς μετάνοιαν” [anakainízein eis metanoían, “renovar ao arrependimento”] (v. 6) corresponde à fórmula hebraica חִדֵּשׁ לִשׁוּבָה [ḥiddēsh lišûvāh], cuja implicação é escatológica e irrevogável quando associada a rejeição deliberada da aliança. A imagem do campo que recebe a chuva e produz fruto (vv. 7–8) retoma Isaías 5:1-7 e Jeremias 2:21, onde Israel é comparado a uma vinha infrutífera. O vocabulário agrícola aqui é moldado pela tradição profética hebraica e pela metáfora do julgamento com fogo — “καῦσις” [kaûsis, “queima”] — que traduz שְׂרֵפָה [śĕrēfāh], usada para castigo final (cf. Isaías 66:24).

Nos versículos 13–18, a evocação do juramento divino é diretamente moldada por Gênesis 22:16 — “נִשְׁבַּעְתִּי נְאֻם־יְהוָה” [nišbaʿtî neʾum YHWH, “por mim mesmo jurei, diz o Senhor”] — reproduzida na LXX e retomada aqui em ὤμοσεν καθ᾽ ἑαυτοῦ [ṓmosen kath’ heautoû, “jurou por si mesmo”]. Essa estrutura legal cultual hebraica é exposta em linguagem helenística, mas com forte substrato semítico. Por fim, a metáfora do “véu” — καταπέτασμα [katapétasma] — e do “precursor” — πρόδρομος [pródromos] — evoca a entrada anual do sumo sacerdote no Santo dos Santos (cf. Levítico 16:2, 15), agora aplicada a Cristo em chave escatológica.

III. Versículo-Chave

Hebreus 6:19

...a qual temos como âncora da alma, segura e firme, e que penetra até o interior do véu.

Este versículo combina linguagem marítima e cultual para expressar a segurança da esperança cristã. A “âncora da alma” é figura de estabilidade e perseverança, enquanto a entrada “além do véu” retoma a liturgia do Yom Kippur, reinterpretada cristologicamente. Trata-se de uma síntese poderosa da espiritualidade e teologia de Hebreus: a esperança como firmeza existencial fundamentada na mediação sacerdotal de Cristo. O verbo εἰσερχομένην [eiserkhoménēn, “penetrando”] está no presente, indicando ação contínua: Cristo entrou uma vez por todas, e os fiéis, unidos a Ele, compartilham desse acesso.

IV. Intertextualidade com o Antigo e o Novo Testamento

Hebreus 6 dialoga intensamente com a tradição veterotestamentária, sobretudo nas figuras de arrependimento, campo frutífero, juramento e sacerdócio. O conceito de apostasia irremissível ecoa as passagens de Jeremias 15:6 e Isaías 1:4, onde se descreve o povo como “desviando-se continuamente”. A linguagem de renovação ao arrependimento remete implicitamente à dureza do coração egípcio-faraônico (Êxodo 9Êxodo 11), contrastada com a ação do Espírito. A imagem da terra regada e improdutiva encontra paralelo em Isaías 5 e Ezequiel 15, onde a improdutividade é julgada pelo fogo. A menção ao juramento divino a Abraão (Gênesis 22:16–18) é estruturante: a fidelidade de Deus à promessa é garantida não apenas por Sua palavra, mas por Seu próprio juramento — algo incomum no AT, mas teologicamente poderoso.

No Novo Testamento, a linguagem de frutos espirituais e perseverança aparece em Mateus 13 (parábola do semeador) e João 15 (videira verdadeira). A ideia de Cristo como “precursor” dentro do véu antecipa Hebreus 9:11–12, onde se descreve sua entrada com o próprio sangue. O uso do termo “esperança” como segurança firme aparece também em Romanos 5:5 e Tito 2:13, mas em Hebreus adquire uma conotação cultual única. A âncora como metáfora de fé segura também ecoa textos da tradição estoica, mas aqui é transfigurada por sua conexão direta com a presença sacerdotal de Cristo. A teologia de Hebreus 6 é uma fusão harmoniosa entre aliança abraâmica, advertência profética e mediação cristológica.

V. Lição Teológica Geral

Hebreus 6 oferece um ensinamento teológico de peso: a salvação, embora graciosa e prometida, exige perseverança real. O capítulo adverte sobre os riscos de uma fé nominal, que experimenta as bênçãos espirituais sem produzir fruto e termina por cair irremediavelmente. Ao mesmo tempo, oferece consolo e esperança firmes aos que permanecem fiéis. O autor expõe o paradoxo do evangelho: a graça é inabalável, mas exige resposta contínua. A esperança cristã não é emocional, mas objetiva, ancorada na fidelidade de Deus e no sacerdócio eterno de Cristo. O véu foi rasgado, mas só entra quem permanece unido ao precursor. A figura de Abraão, que herdou pela fé e paciência, torna-se o paradigma do crente maduro. A promessa é firme, porque é sustentada por um juramento divino; a salvação é segura, porque é mediada por um sumo sacerdote que entrou no santuário celestial. Hebreus 6, assim, desafia o leitor a manter sua fé viva, sua esperança ancorada e sua caminhada perseverante.

VI. Comentário de Hebreus 6

Hebreus 6 exorta a sair dos “elementos” e avançar à maturidade (teleiotēs): em vez de relançar sempre o mesmo fundamento — arrependimento de obras mortas, fé em Deus, batismos/abluções, imposição de mãos, ressurreição e juízo — a igreja deve ser “conduzida” por Deus a alimento sólido (Hebreus 6:1-3; Hebreus 5:11-14; Marcos 7:4; Atos 2:38; Atos 19:6; Daniel 12:2; João 5:28-29). Segue-se uma advertência máxima: é “impossível” renovar ao arrependimento quem, tendo sido iluminado, provado o dom celestial, tornado-se participante do Espírito, provado a boa Palavra e os poderes do século vindouro, cai em apostasia deliberada — pois tal pessoa “recrucifica” o Filho e o expõe à vergonha; a parábola da terra mostra que a mesma “chuva” de meios de graça pode gerar fruto e bênção ou espinhos e fogo (Hebreus 6:4-8; Hebreus 2:4; 10:26-29; Isaías 5:1-7). O tom muda para encorajamento: o autor chama-os de “amados”, crê em “coisas melhores e pertencentes à salvação”, lembra que Deus não é injusto para esquecer o trabalho e o amor com que serviram os santos, e deseja diligência contínua até a plena certeza da esperança, sem indolência, imitando os que, pela fé e longanimidade, herdam as promessas (Hebreus 6:9-12; Hebreus 10:32-34; 1 Tessalonicenses 1:3). A base objetiva dessa esperança é o caráter imutável de Deus: como com Abraão, Ele anexou juramento à promessa, dando-nos “duas coisas imutáveis” — promessa e juramento — nas quais é impossível mentir; assim, quem corre ao “refúgio” lança mão de uma esperança-âncora que entra “além do véu”, onde Jesus entrou como Precursor e Sumo Sacerdote eterno segundo Melquisedeque (Hebreus 6:13-20; Gênesis 22:16-18; Números 23:19; Números 35:11-15; Hebreus 7:24-25).

A. A Solene Advertência contra a Apostasia (Hebreus 6:1-8)

Hebreus 6:1 Por isso, pondo de parte os princípios elementares da doutrina de Cristo,... (“Por isso” conecta com a reprimenda contra a imaturidade [Hebreus 5:11-14]: em vez de permanecer nos “ABC” (ta stoicheia) da fé, é hora de avançar. “Pondo de parte” (aphentes) não significa rejeitar o fundamento, mas deixá-lo estabelecido para edificar acima dele [1 Coríntios 3:10-12]. “Princípios elementares” = “a palavra do princípio acerca de Cristo” (ton tēs archēs tou Christou logon): os conteúdos iniciais que introduzem ao discipulado [Hebreus 5:12; 6:1-2].) ...deixemo-nos levar para o que é perfeito,... (O verbo é passivo: pherōmetha — “sejamos conduzidos à maturidade”; a ação principal é de Deus por Seu Espírito e meios de graça [Filipenses 2:12-13; Colossenses 1:28-29]. “Perfeito” = teleiotēs, maturidade adulta, não impecabilidade [Hebreus 5:14; 12:1-3].) ...não lançando, de novo, a base do arrependimento de obras mortas e da fé em Deus,... (“Base” (themelion) já foi posta; não se relança a cada dia. “Arrependimento de obras mortas” ecoa as práticas e condutas que, separadas da vida de Deus, apenas produzem morte — desde pecados evidentes até observâncias sem vida e autojustificação [Hebreus 9:14; Efésios 2:1; Gálatas 2:16]. “Fé em Deus” é o correlato positivo do arrependimento: confiar no Deus que ressuscita os mortos e nos justifica [Marcos 1:15; Romanos 4:5, 24-25].)

Hebreus 6:2 o ensino de batismos e da imposição de mãos,... (“Batismos” traduz baptismōn no plural, termo que em Hebreus pode incluir abluções judaicas (purificações rituais) e a catequese básica sobre o batismo cristão [Marcos 7:4; Hebreus 9:10; Mateus 28:19; Atos 2:38]. “Imposição de mãos” abrange ritos iniciais e ministeriais: acolhimento/abençoamento e concessão do Espírito, cura e comissionamento [Atos 8:17; Atos 19:6; Atos 13:3; 1 Timóteo 4:14].) da ressurreição dos mortos e do juízo eterno. (Artigos de fé elementares do querigma: a ressurreição geral e o julgamento final [Daniel 12:2; João 5:28-29; Atos 17:31; Hebreus 9:27; Mateus 25:31-46]. O autor diz: essas bases estão corretas e indispensáveis, mas não esgotam a fé; é preciso avançar ao “alimento sólido” de Cristo como Sumo Sacerdote e sua aliança superior [Hebreus 7–10].)

Hebreus 6:3 Isso faremos, se Deus permitir. (Humildade teológica e dependência prática: progresso espiritual é dom e obra de Deus [Tiago 4:15; Provérbios 16:9]. Mesmo o “avançar” é graça concedida (Deus “opera em vós tanto o querer como o efetuar” [Filipenses 2:13]).)

Hebreus 6:4 É impossível, pois, que aqueles que uma vez foram iluminados, e provaram o dom celestial,... (“É impossível” (adynaton) dá o tom da perícope (cf. “impossível… Deus mentir” [Hebreus 6:18]): trata-se de caso limite. “Foram iluminados” ecoa a experiência inicial da salvação/entrada na comunidade [Hebreus 10:32; 2 Coríntios 4:6]. “Provaram” (geusamenous) não significa “degustar superficialmente”, mas experimentar realmente (mesmo verbo em [1 Pedro 2:3; Salmo 34:8]). “Dom celestial” aponta para a graça do evangelho e seus dons (perdão, nova vida, presença do Espírito) [Efésios 2:8; João 4:10].) e se tornaram participantes do Espírito Santo,... (Metochoi do Espírito sugere participação real, não mera exposição externa [Hebreus 3:1,14]. Isso amplia a gravidade: o caso descrito não é de quem nunca creu, mas de quem entrou sob as realidades do Espírito [Atos 2:38-39; Gálatas 3:2].)

Hebreus 6:5 e provaram a boa palavra de Deus... (“Boa” (kalos) = bela e poderosa; Palabra que regenera e sustém [Tiago 1:18,21; Jeremias 15:16].) ...e os poderes do mundo vindouro,... (Dynameis tou mellontos aiōnos = milagres/sinais que antecipam o Reino já irrompido em Cristo [Hebreus 2:4; Mateus 12:28; Atos 5:12]. Essas experiências são “chuvas” da nova era derramadas sobre a comunidade.)

Hebreus 6:6 e caíram, sim, é impossível outra vez renová-los para arrependimento,... (“Caíram” (parapesontas) aponta não para tropeços episódicos, de que se levantam Pedro e Davi [Lucas 22:31-32; João 21:15-19; Salmo 51], mas para apostasia deliberada e final, o abandono consciente de Cristo e recusa pertinaz do evangelho [Hebreus 10:26-29; 1 João 2:19; 2 Pedro 2:20-22]. A “renovação para arrependimento” é “impossível” não porque Deus seja impotente, mas porque, na persistência dessa condição, o sujeito rejeita o único meio de renovação — o Filho — fechando-se culpavelmente à graça [Marcos 3:29; João 6:66].) ...visto que, de novo, estão crucificando para si mesmos o Filho de Deus... (Apostasia é uma espécie de recrucificação pública: declarar que a cruz foi inútil, alinhar-se com os que O rejeitaram [Lucas 23:21; Gálatas 6:14]. O aoristo presente-participial descreve um ato contínuo de repudiar Cristo.) ...e expondo-o à ignomínia. (Reexpor o Filho à vergonha (paradeigmatizontas) é tratá-lo como impostor, desonrando-O diante do mundo [Hebreus 10:29; Mateus 27:39-44]. Enquanto essa postura perdura, não há “outro sacrifício” a oferecer [Hebreus 10:26].)

Hebreus 6:7 Porque a terra que absorve a chuva que frequentemente cai sobre ela e produz erva útil para aqueles por quem é também cultivada recebe bênção da parte de Deus;... (Parábola agrícola explicativa: “terra” = pessoas/comunidade; “chuva frequente” = meios de graça, Palavra, Espírito, sinais, já mencionados [Hebreus 2:4; 4:12-16]. Quando essa chuva produz “erva útil”, há bênção — fruto do Espírito e obras que acompanham a salvação [Gálatas 5:22-23; Apocalipse 2:7]. A imagem ecoa Isaías 55:10-11 e a vinha que Deus cultiva [Isaías 5:1-7].)

Hebreus 6:8 mas, se produz espinhos e abrolhos,... (Referência à maldição adâmica [Gênesis 3:17-18] e à vinha infrutífera [Isaías 5:6]. Sob a mesma chuva, brotam “espinhos” quando o coração é duro e incrédulo [Mateus 13:7,22].) ...é rejeitada e perto está da maldição;... (“Rejeitada” (adokimos em sentido análogo) = reprovada, inútil para o propósito; “perto da maldição” indica que a paciência de Deus ainda concede espaço, mas o juízo se aproxima [Romanos 2:4-5; 2 Pedro 3:9].) ...e o seu fim é ser queimada. (Queima agrícola/judicial: imagem de juízo sobre o infrutífero [Isaías 5:6; Mateus 7:19; João 15:6]. Em termos pastorais, a parábola mostra que mesma chuva pode resultar em bênção ou fogo, conforme a resposta; por isso, a advertência busca prevenir a apostasia e promover a perseverança dos santos [Hebreus 6:9-12; 10:39].)

B. A Afirmação e o Encorajamento Pastoral (Hebreus 6:9-12)

Hebreus 6:9 Quanto a vós outros, todavia, ó amados, (Após a advertência severa de [Hebreus 6:4-8], o autor muda o tom: chama-os de agapētoi — “amados” — sublinhando afeto pastoral e pertencimento à comunidade da fé [Romanos 1:7; 1 Coríntios 10:14]. Não é uma igreja “perdida”, mas um rebanho que precisa ser sacudido e, em seguida, consolado [1 Tessalonicenses 2:7-12].) ...estamos persuadidos das coisas que são melhores e pertencentes à salvação, (Ele expressa “persuasão” (pepeismetha): confia que entre eles há “coisas melhores” (kreissona), isto é, realidades que “acompanham” a salvação — frutos e sinais decorrentes da graça, não sua causa meritória [Hebreus 6:10-12; Hebreus 10:32-34; Gálatas 5:22-23; Efésios 2:8-10]. Tais “coisas” incluem perseverança, amor prático, serviço aos santos e firme esperança [Colossenses 1:4-5; 1 Tessalonicenses 1:3].) ...ainda que falamos desta maneira. (Apesar da linguagem dura anterior — necessária para prevenir apostasia —, sua intenção não é esmagar, mas curar: a admoestação serve ao encorajamento, para que os fiéis se “despertem” e avancem à maturidade [Hebreus 5:11–6:1; 12:5-11].)

Hebreus 6:10 Porque Deus não é injusto (A base do encorajamento é o caráter divino: Deus é justo e fiel; Sua justiça inclui lembrar, reconhecer e recompensar o que Sua própria graça operou nos crentes [Hebreus 11:6; 2 Tessalonicenses 1:6-7].) ...para ficar esquecido do vosso trabalho e do amor que evidenciastes para com o seu nome, (“Trabalho” (ergon) e “amor” (agapē) por causa do Seu nome indicam motivo teocêntrico: servem a Cristo visando Sua honra [Colossenses 3:17, 23-24; Mateus 10:40-42; Marcos 9:41]. “Não é injusto para esquecer” ecoa promessas de recompensa graciosa e memória fiel de Deus [Provérbios 19:17; Mateus 25:34-40].) ...pois servistes e ainda servis aos santos. (O serviço (diakonēsantes… diakonountes) passado e presente mostra continuidade: hospitalidade, generosidade, socorro material e espiritual ao povo de Deus [Romanos 12:13; Atos 6:1; 2 Coríntios 8–9; Hebreus 13:16]. Em [Hebreus 10:32-34], o autor lembrará que eles sustentaram os presos e aceitaram o espólio com alegria — evidências concretas de amor perseverante.)

Hebreus 6:11 Desejamos, porém, continue cada um de vós mostrando, até ao fim,... (Desejo pastoral: epithymoumen… hekaston hymōn — “cada um de vós”; ninguém fica à margem. “Até ao fim” liga-se ao fio da carta: perseverar até completar a carreira [Hebreus 3:14; 10:35-39; 12:1-3; Mateus 24:13].) ...a mesma diligência para a plena certeza da esperança;... (“Mesma diligência” = tēn autēn spoudēn: zelo constante, não intermitente [Romanos 12:11; 2 Pedro 1:5, 10-11]. O alvo é a “plena certeza” (plērophoria) da esperança — convicção robusta, enraizada nas promessas de Deus e não em emoções variáveis [Colossenses 2:2; Hebreus 10:22-23]. Em Hebreus, essa esperança é ancorada no sacerdócio e juramento divinos que o autor desenvolverá a seguir [Hebreus 6:17-20].)

Hebreus 6:12 para que não vos torneis indolentes, (“Indolentes” traduz nōthroi — os mesmos “tardios/pesados em ouvir” de [Hebreus 5:11]. O perigo não é apenas erro doutrinário, mas apatia espiritual que desemboca em deriva e, por fim, dureza [Hebreus 2:1; 3:12-13].) ...mas imitadores daqueles que, pela fé e pela longanimidade, herdam as promessas. (“Imitadores” (mimētai) é linguagem apostólica para discipulado prático [1 Coríntios 11:1; Filipenses 3:17]. O par “fé e longanimidade” (pistis kai makrothymia) resume a perseverança bíblica: crer na palavra de Deus e esperar pacientemente sob provas [Romanos 4:18-21; Tiago 5:10-11]. O exemplo imediato será Abraão, que “tendo esperado com paciência, alcançou a promessa” [Hebreus 6:13-15; Gênesis 22:15-18]; e, depois, toda a galeria de [Hebreus 11]. “Herdam” (klēronomousin) enfatiza que as promessas são herança — dom garantido por Deus —, mas possuída pelo caminho da fé perseverante [Gálatas 3:29; 1 Pedro 1:3-5].)

C. A Fundamentação da Esperança na Fidelidade de Deus (Hebreus 6:13-20)

Hebreus 6:13 Pois, quando Deus fez a promessa a Abraão,... (O autor ancora a nossa esperança na história da aliança: Deus prometeu a Abraão bênção, descendência e herança para alcançar as nações [Gênesis 12:2-3; 15:5-7; 17:4-8]. A promessa diz respeito, em última análise, à vinda da “semente” — Cristo — por quem a bênção alcança os gentios [Gálatas 3:8,16].) ...visto que não tinha ninguém superior por quem jurar, jurou por si mesmo,... (Deus confirma Sua própria promessa com horkos — juramento — acomodando-se à prática humana de confirmar uma palavra por autoridade superior [Hebreus 6:16]. Como não há autoridade acima de Deus, Ele “jurou por Si mesmo” [Gênesis 22:16; Isaías 45:23]. Não porque Sua palavra careça de verdade — “Deus não é homem para que minta” [Números 23:19] —, mas para dar “maior robustez” à nossa certeza [Hebreus 6:17-18; Tito 1:2].)

Hebreus 6:14 dizendo: Certamente, te abençoarei e te multiplicarei. (Fórmula enfática hebraica refletida na LXX: “abençoando te abençoarei… multiplicando te multiplicarei” [Gênesis 22:17]. Essa palavra foi proferida após a obediência de Abraão no Moriá, quando Deus vinculou Sua promessa a um juramento irrevogável [Gênesis 22:16-18]. Em Cristo, essa bênção juramentada se estende a todos os que creem [Gálatas 3:9,29; Romanos 4:16-18].)

Hebreus 6:15 E assim, depois de esperar com paciência,... (Makrothymēsas — exercendo longa perseverança sob atrasos e provações: estéril por décadas, Abraão esperou o Filho prometido [Gênesis 12:4; 15:2-6; 21:1-3; Romanos 4:18-21].) ...obteve Abraão a promessa. (Ele a “obteve” de dois modos: (1) historicamente, na chegada de Isaque, primícia da descendência [Gênesis 21:1-3]; (2) juridicamente, no juramento de Deus que selou de uma vez a certeza da promessa (ainda que sua plenitude fosse escatológica) [Gênesis 22:16-18; Hebreus 11:13]. O ponto de Hebreus: a esperança cristã caminha pelo mesmo trilho da fé paciente.)

Hebreus 6:16 Pois os homens juram pelo que lhes é superior,... (Apelo a um uso forense comum: o juramento invoca autoridade maior para assegurar veracidade [Mateus 5:33].) ...e o juramento, servindo de garantia, para eles, é o fim de toda contenda. (O horkos funciona como “garantia” final que encerra a disputa [Hebreus 6:16]. O autor prepara o argumento do v. 17: Deus empregou esse mesmo recurso — não por necessidade, mas por condescendência benévola — para dar-nos certeza absoluta.)

Hebreus 6:17 Por isso, Deus, quando quis mostrar mais firmemente aos herdeiros da promessa a imutabilidade do seu propósito,... (Os “herdeiros” são os que estão “em Cristo” pela fé — judeus e gentios —, coerdeiros com Abraão [Gálatas 3:7,29; Romanos 8:17; 4:16]. “Imutabilidade” traduz to ametathetōn tēs boulēs — o conselho eterno de Deus que não muda [Isaías 46:10; Efésios 1:11].) se interpôs com juramento,... (Verbo mesiteuō no composto do texto: Deus “interveio/juntou ao meio” um juramento sobre a promessa [Gênesis 22:16-18], para que a nossa certeza não repousasse em impressões subjetivas, mas em ato público divino [Hebreus 6:18].)

Hebreus 6:18 para que, mediante duas coisas imutáveis,... (As “duas coisas” são promessa e juramento — ambas irrevogáveis porque procedem do mesmo Deus fiel [Gênesis 22:16-18].) nas quais é impossível que Deus minta,... (Afirmação categórica da veracidade divina [Números 23:19; 1 Samuel 15:29; Tito 1:2].) ...forte alento tenhamos nós que já corremos para o refúgio,... (Imagem cultual-jurídica: “correr para o refúgio” ecoa as cidades de refúgio para o homicida culposo [Números 35:11-15; Deuteronômio 19:4-6]. Cristo é o nosso lugar de asilo; quem se refugia nEle encontra segurança contra o acusador e o juízo [Romanos 8:1,33-34; Hebreus 7:25].) ...a fim de lançar mão da esperança proposta;... (A esperança é objetiva — “proposta” diante de nós —, não mera disposição emocional [Colossenses 1:5; Hebreus 10:23]. “Lançar mão” implica apropriação perseverante pelas promessas.)

Hebreus 6:19 a qual temos por âncora da alma,... (Metáfora náutica: a esperança é ankura que fixa a “alma” para não derivar [Hebreus 2:1]. Em tempestades (provações), a âncora impede o naufrágio [Atos 27:29-32].) segura e firme e que penetra além do véu,... (“Segura” (asphalēs) e “firme” (bebaios): não cede. “Além do véu” remete ao Santo dos Santos, separado pelo véu [Êxodo 26:33; Hebreus 9:3]. Nossa esperança está ancorada no céu, no santuário verdadeiro, não na instabilidade terrena [Hebreus 8:1-2; 9:24].)

Hebreus 6:20 onde Jesus, como precursor, entrou por nós,... (Prodromos — “precursor”, único uso no NT — indica que outros seguirão pelo caminho que Ele abriu [João 14:2-3; Hebreus 10:19-22]. Ele entrou “por nós” (hyper hēmōn), representando-nos e garantindo nosso acesso [Romanos 5:2].) ...tendo-se tornado sumo sacerdote para sempre,... (Retoma o tema do sacerdócio eterno: Sua obra não é episódica; Ele vive perpetuamente para interceder [Hebreus 7:24-25].) ...segundo a ordem de Melquisedeque. (Conexão com o juramento do [Salmo 110:4] e ponte para o cap. 7: Cristo é o Rei-Sacerdote de justiça e paz, não segundo genealogia levítica, mas “por poder de vida indestrutível” [Hebreus 7:1-3,16]. Assim, a nossa esperança é juramentada pelo Deus que não mente e ancorada no Sumo Sacerdote que já atravessou o véu e nos conduzirá ao descanso prometido [Hebreus 4:9-11; 6:17-20].)

VII. Devocional de Hebreus 6

A. “Avancemos para a perfeição” (Hebreus 6:1–3)

Há uma ironia que envergonha a igreja: em todas as artes e ciências, quanto mais um homem progride, mais sente sede de progresso; o avanço lhe revela horizontes que desconhecia, e, por isso mesmo, ele se apressa a ir além. Em religião, porém, ocorre o inverso: muitos julgam saber o suficiente, acomodam-se às primeiras lições da infância espiritual e perguntam, com certa complacência farisaica: “Que me falta ainda?” Ora, se o apóstolo João fala de “filhinhos”, “jovens” e “pais” (1 João 2:12–14), se Pedro ordena que “cresçamos na graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” (2 Pedro 3:18), não nos é lícito estacionar na estatura de crianças como se isso fosse tudo quanto Deus nos autorizou a esperar. O escritor de Hebreus já lamentara: “pelo tempo, já devíeis ser mestres”, mas voltastes a precisar “dos rudimentos dos oráculos de Deus”, “leite” e não “alimento sólido” (Hebreus 5:12). Ainda assim, ele não desiste; promete conduzir os que têm ouvidos do berçário à maturidade: “Deixando, portanto, os princípios elementares da doutrina de Cristo, avancemos para a perfeição” (Hebreus 6:1). E acrescenta, com realismo e reverência: “Isto faremos, se Deus permitir” (Hebreus 6:3).

“Deixar” aqui não significa desprezar; é o verbo do construtor que honra o alicerce ergue-ndo sobre ele. Nunca estamos tanto sobre o fundamento quanto quando edificamos bem acima dele. O fundamento que não se vê está sustentando cada novo pavimento. Quais são, então, esses “princípios” que jamais negamos, mas sobre os quais não podemos viver para sempre? O autor os nomeia, e a consciência os reconhece.

“Arrependimento de obras mortas.” O evangelho não admite dúvidas: o pecado, em todas as suas formas, deve ser chorado como merecedor de morte e abandonado com aversão sincera. Obras mortas são tudo o que brota da carne e termina no pó, ainda que reluzente aos olhos dos homens (cf. Hebreus 9:14). Onde não há coração quebrantado, não há alicerce.

“Fé em Deus.” Sem ela não há salvação: não basta crer que “Deus é e que se torna galardoador dos que O buscam” (Hebreus 11:6); é necessário crer que Ele se nos fez propício em Seu Filho, e que todo aquele que vem a Ele em nome de Jesus jamais será lançado fora (João 6:37). A promessa é Dele; a fidelidade também (Hebreus 10:23).

Em seguida, duas expressões que tantos tomam como “novos princípios”, quando são, antes, sinais ilustrativos dos dois anteriores: “doutrina de batismos” e “imposição de mãos” (Hebreus 6:2). Não precisamos forçar aqui a distinção entre batismo de João e batismo cristão, nem reduzir a “imposição de mãos” à concessão extraordinária de dons ou à ordenação ministerial. O autor escreveu a leitores saturados das práticas mosaicas, e o eco do templo ressoa em suas palavras. “Batismos” evoca as muitas abluções da lei (Hebreus 9:10), figura de limpeza de pecados e das obras mortas — o lado visível do arrependimento, o que mais tarde Paulo chamará de “lavagem da regeneração” (Tito 3:5). A “imposição de mãos” recorda o gesto do ofertante que coloca sua mão sobre a cabeça da vítima (Levítico 4:4, 15, 24, 33; 16:21), transferindo a culpa e confessando esperança de aceitação por meio do substituto. Era a fé em Deus em ato, fé que olha para o sangue e diz: “Deus proverá” (Gênesis 22:8). Vistas assim, essas duas expressões formam uma parêntese pedagógica entre arrependimento e fé; não ampliam o fundamento, antes o explicam.

“Ressurreição dos mortos.” A esperança já sussurrada na antiga aliança agora ressoa com voz de trombeta: “vida e imortalidade foram trazidas à luz pelo evangelho” (2 Timóteo 1:10). O Cristo ressuscitado é as primícias (1 Coríntios 15:20); onde o Primeiro se levantou, o campo todo se seguirá. Sem esta pedra, o edifício rui.

“Juízo eterno.” A antiga aliança insistia em recompensas e punições temporais; o evangelho ergue nossos olhos para o tribunal do Filho (Atos 17:31). Virá o dia em que Ele separará “uns dos outros” (Mateus 25:32), acolherá os Seus: “vinde, benditos de meu Pai” (Mateus 25:34), e condenará os impenitentes (Mateus 25:41, 46). Se isto não molda nossa vida, nada moldará.

Nada disso é desprezível; tudo isso é necessário. Um ministro de Cristo martela tais verdades “vezes sem conta”, porque sem elas não há cristianismo, apenas paganismo batizado. Mas o Espírito Santo nos chama a ir além — não para fora do evangelho, e sim mais para dentro. E é exatamente isso que Hebreus passa a fazer do 6:1 em diante: abrir os mistérios mais altos do evangelho, especialmente a perfeição do sacerdócio de Cristo e a perfeição dos privilégios que dele dimanam.

O sacerdócio levítico, confinado a Levi, não podia acolher Jesus, “da tribo de Judá”. Era preciso, então, que ressurgisse a figura mais antiga e mais excelsa, “segundo a ordem de Melquisedeque” (Salmo 110:4; Hebreus 7): um sacerdote-rei, sem sucessão que o limitasse, perpétuo no seu ofício, maior até que Abraão (Hebreus 7:1–10). Tudo o que Arão fazia como sombra, Cristo faz em realidade. Ele é o Cordeiro sem defeito, em cujo corpo Deus preparou o sacrifício eficaz; João O aponta: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (João 1:29). Ele é o sacerdote que oferece a Si mesmo “sem mácula a Deus” (Hebreus 9:14). Tendo proferido “Está consumado” (João 19:30), não deixa a obra ao meio: entra com Seu próprio sangue “no Santo dos Santos… havendo obtido eterna redenção” (Hebreus 9:12). Diante do trono, o sangue fala (Hebreus 12:24), e o Pai Se declara “reconciliado” por meio da cruz (Colossenses 1:20–22). E porque o sacrifício é perfeito, a intercessão é sempre eficaz: “aparece, agora, por nós, diante de Deus” (Hebreus 9:24), e “pode salvar perfeitamente os que por Ele se chegam a Deus, vivendo sempre para interceder por eles” (Hebreus 7:25). A história não terminará no véu: o grande Sacerdote “virá” uma segunda vez, já não por causa do pecado, mas para plena salvação (Hebreus 9:28), e então, vestido de toda a Sua glória, abençoará o Seu povo para sempre (cf. Números 6:24–26).

Se o sacerdócio é perfeito, nossos privilégios o são por decorrência. A remissão que a Lei anunciava “lembrando pecados” (Hebreus 10:3) cede lugar ao perdão definitivo: “por uma única oferta aperfeiçoou para sempre os que estão sendo santificados” (Hebreus 10:14). Não é linguagem de hiperbole; é aliança juramentada: “dos seus pecados e das suas iniquidades jamais Me lembrarei” (Hebreus 10:17; 8:10–12). O acesso que, na antiga economia, era reservado ao sumo sacerdote, e só “uma vez por ano”, nos é franqueado “com ousadia… pelo sangue de Jesus, pelo novo e vivo caminho” (Hebreus 10:19–22). Quem quer que seja, se vier em nome do Filho, chega ao propiciatório mesmo. E a dignidade que nenhum levita ousaria arrogar, o evangelho derrama sobre o último dos crentes: em Cristo, homens e mulheres, judeus e gentios, todos são “sacerdócio real” (1 Pedro 2:9), todos cantarão: “Àquele que nos ama, e pelo Seu sangue nos libertou dos nossos pecados, e nos constituiu reis e sacerdotes… glória e poder pelos séculos dos séculos” (Apocalipse 1:5–6).

É a isso que o escritor chama de “perfeição”: não perfeccionismo vaidoso, mas plenitude — a plenitude de Cristo exposta aos olhos e impressa no coração. E agora volta o imperativo pastoral: avancemos. A maturidade não é um título, é uma trajetória. Começa pelos joelhos e pela Bíblia aberta. Começa pedindo ao Pai “espírito de sabedoria e de revelação no pleno conhecimento dEle”, olhos iluminados para ver “a esperança da Sua vocação”, “as riquezas da glória da Sua herança”, e “a suprema grandeza do Seu poder” que ressuscitou Jesus (Efésios 1:15–20). Cresce quando nos atrevemos a sondar, com humildade crescente, “a largura, o comprimento, a altura e a profundidade”, e assim somos “cheios de toda a plenitude de Deus” (Efésios 3:18–19). E se a pergunta é “para quê tanto conhecimento?”, a resposta de Paulo nos guarda do intelectualismo estéril: para “andarmos dignos do Senhor, agradando-Lhe em tudo, frutificando em toda boa obra, crescendo no conhecimento de Deus, fortalecidos com todo poder… com gozo, dando graças ao Pai” (Colossenses 1:9–12).

Não pense que isso é tarefa para apóstolos apenas. O próprio Paulo confessa: “não que eu já tenha alcançado… mas prossigo” (Filipenses 3:12–14). E, paradoxalmente, exorta os “perfeitos” a pensarem assim — isto é, que a verdadeira perfeição se pensa peregrina (Filipenses 3:15). O andar do crente é tensionado pelo céu: “a nossa cidadania está nos céus” (Filipenses 3:20), e o Espírito nos transforma “de glória em glória, na Sua própria imagem” (2 Coríntios 3:18). Por isso, não nos conceda Deus o luxo de um cristianismo satisfeito consigo. Se até aqui vivemos de “leite”, bendita seja a paciência do Senhor; mas Ele tem carne para Seus filhos. Se até aqui trabalhamos apenas o fundamento, bendito seja o alicerce; mas Ele nos chama a erguer andares de fé, amor e santidade.

“E isto faremos, se Deus permitir” (Hebreus 6:3). Há humildade nessa frase, e há esperança. A obra é Dele — “sem Mim nada podeis fazer” (João 15:5) —, mas a vontade dEle é boa: “Esta é a vontade de Deus: a vossa santificação” (1 Tessalonicenses 4:3). Tomemos, pois, a sério o chamado. Honremos o fundamento: arrependimento vivo, fé viva, sinais que apontam para a realidade, esperança firme na ressurreição, sobriedade diante do juízo. E, sobre esse fundamento, avancemos — à vista do nosso Sumo Sacerdote perfeito, com os privilégios da nova aliança em mãos, sustentados pela graça que permite, move e preserva. Hoje é dia de crescer. Amanhã também. Até que, vendo-O como Ele é, deixemos para sempre a infância e alcancemos a perfeição consumada na glória do Cordeiro.

B. O perigo da apostasia (Hebreus 6:4-6)

Há passagens nas Escrituras que não se abrem à leitura apressada. Exigem silêncio, contexto, e a coragem de deixar que o texto nos leia. Hebreus 6:4–6 é uma delas. O autor não a lançou no vazio; ela nasce de um fluxo que vem desde a sua queixa pela imaturidade espiritual dos leitores (Hebreus 5:11–14), passa pelo apelo para deixarmos os rudimentos e avançarmos à maturidade (Hebreus 6:1–3), e desemboca, como aviso amoroso e severo, no perigo real da apostasia (Hebreus 6:4–6), reforçado pela parábola do campo que recebe chuva e, conforme o solo, produz fruto… ou espinhos (Hebreus 6:7–8), e pelo encorajamento final a imitar os que, pela fé e paciência, herdaram as promessas (Hebreus 6:11–12). O fio é claro: negligenciar o progresso é o caminho mais curto para retroceder; e retroceder, depois de tanto que já se recebeu, é pôr-se à beira de um precipício.

O texto ousa dizer até onde um homem pode ir na religião — e ainda assim cair. Fala de gente “uma vez iluminada”, que “provou o dom celestial”, que se tornou “participante do Espírito Santo”, que “provou a boa palavra de Deus e os poderes do mundo vindouro” (Hebreus 6:4–5). Não pensemos logo nos de fora; pensemos nos que estiveram “por um tempo” entre nós. É possível ser iluminado no entendimento: Balaão também pôde dizer, “ouve as palavras de Deus, o que tem a vista aberta” (Números 24:3–4), e, no entanto, o mesmo autor de Hebreus lembra que há quem peque “deliberadamente, depois de ter recebido o pleno conhecimento da verdade” (Hebreus 10:26). Não há doutrina que um hipócrita não possa repetir; a diferença entre ele e o santo não está no conteúdo conhecido, mas no modo de conhecer: um assente com a cabeça; o outro adora com o coração.

É possível ter as afeições profundamente tocadas pela Palavra, sentir esperança, medo, alegria e tristeza segundo as promessas e ameaças do evangelho; Ezequiel viu um povo que ouvia como quem aprecia uma bela canção, mas não obedecia (Ezequiel 33:31–32). Jesus falou do solo pedregoso que “recebe a palavra com alegria”, mas, “não tendo raiz”, “desiste” na tribulação (Mateus 13:20–21). João Batista era “lâmpada que ardia e alumiava”, e, por “um tempo”, muitos “quiseram alegrar-se” com sua luz (João 5:35). Herodes “ouvia com prazer” a João, mas não se arrependeu (Marcos 6:20). Félix “se atemorizou” ao ouvir Paulo sobre “justiça, domínio próprio e juízo vindouro”, e adiou (Atos 24:25). Emoção não é conversão.

É possível até provar o operar do Espírito — em sua obra ordinária, que habilita para deveres antes impossíveis, e, nos dias apostólicos, em seus dons extraordinários (Hebreus 6:4–5). Há quem, “escapando das corrupções do mundo pelo conhecimento do Senhor”, não persevere (2 Pedro 2:20). Há quem profira: “Senhor, Senhor, em teu nome não profetizamos? em teu nome não expulsamos demônios? em teu nome não fizemos muitos milagres?” — e ouça: “Nunca vos conheci” (Mateus 7:22–23; cf. 1 Coríntios 12:11). Repare como o autor de Hebreus, prudente, escolhe verbos que soam à superfície: “provaram” o dom celestial, “provaram” a boa palavra. Provar não é viver dela; é sentir o gosto e cuspir. Não fizeram da Palavra o pão diário, nem de Cristo, a sua porção.

E, sim, é possível “cair” até da profissão. Jesus disse dos de Tiro: “creram por algum tempo” (Lucas 8:13). Demas amou o presente século e desertou (Colossenses 4:14; Filemom v. 24; 2 Timóteo 4:10). Há quem regresse “ao vômito” e “ao lamaçal” (2 Pedro 2:22). O texto não descreve tropeços dos santos — de que Davi é exemplo doloroso, mas restaurado —; descreve a deserção de quem, depois de conviver com a luz, volta as costas para ela e vai embora.

Daí a sentença: “é impossível… renová-los outra vez para arrependimento, visto que quanto a si mesmos crucificam de novo o Filho de Deus e o expõem ao desprezo público” (Hebreus 6:6). “Impossível” aqui não é aritmética do céu, é diagnóstico moral. Jesus disse que é “mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino”; e explicou: “aos homens é impossível, mas a Deus tudo é possível” (Mateus 19:24–26). Do lado humano, é contrário a toda expectativa razoável que um apóstata desses seja refeito; nada menos que uma intervenção extraordinária de Deus o traria de volta.

E por que tão difícil? Primeiro, pelo ultraje feito a Cristo. Quem abandona o evangelho não apenas sai da igreja; faz uma declaração sobre Jesus: diz com a vida que Cristo não basta, que sua cruz não vale, que a felicidade está noutra parte. Publicamente, aprova o veredito dos que O crucificaram; “crucifica-O novamente”, “expondo-O à ignomínia” (Hebreus 6:6). E não falamos só dos que viram infiéis militantes; falamos dos que, retornando ao mundanismo, pregam com o exemplo: “experimentei a fé; não dá. O mundo é melhor.” Enquanto persistem nesse estado, não há como renovar ao arrependimento; porque o único caminho de arrependimento é voltar a Cristo (Hebreus 10:26–27). E voltar a Ele supõe quebrar a barreira do orgulho, da vergonha, da perda de prestígio — coisas que o coração endurecido não quer enfrentar.

Depois, pelo desprezo feito ao Espírito. O mesmo autor, mais adiante, falará de “ultrajar o Espírito da graça” (Hebreus 10:29). Ninguém se desfaz de Cristo sem resistir muitas vezes às Suas advertências; é preciso calar incontáveis puxões do Espírito, entristecê-Lo (Efésios 4:30), contristá-Lo (Isaías 63:10), até apagá-Lo (1 Tessalonicenses 5:19). É preciso queimar a própria consciência “como com ferro em brasa” (1 Timóteo 4:2). Se não se manteve de pé quando o Espírito o admoestava, como se levantará quando o Espírito se retira? E que esperança há de que Aquele a quem se vexou e resistiu retorne com medida maior? Se esse desprezo chega a configurar o pecado contra o Espírito, não há perdão (Mateus 12:31–32). Ainda que não chegue a tanto, o terreno fica como a terra da parábola: a chuva cai; mas o chão, duro, responde com espinhos (Hebreus 6:7–8).

Alguém dirá: “Então este texto foi escrito para esmagar o caniço quebrado?” Não. O alvo não é o humilde que chora e teme; é o displicente que dorme na beira do abismo. Note como o mesmo parágrafo se apressa em consolar os que realmente pertencem a Cristo: “Quanto a vós, amados, estamos persuadidos das coisas que acompanham a salvação” (Hebreus 6:9–10). A advertência existe para impedir a queda, não para interditar o caminho de volta a quem já está voltando. O perigo que o autor pinta não é que um arrependido sincero seja recusado, e sim que o apóstata não se arrependa. Se alguém, mesmo depois de grande queda, volta-se de coração para Cristo, a porta não está fechada: “Convertei-vos, filhos rebeldes; eu curarei as vossas rebeldias” (Jeremias 3:22; cf. Oséias 14:1–4). O sangue que fala no céu ainda fala por pecadores que retornam (Hebreus 12:24). O trono ainda é de graça (Hebreus 4:16).

Mas não adocemos o aviso. O Espírito nos impede de brincar com a beira. O caminho para tão grande ruína começa com coisas pequenas: um ouvido que se torna “tardio para ouvir” (Hebreus 5:11), uma preguiça que nos mantém nos “rudimentos” (Hebreus 6:1), uma acomodação que adia sempre a obediência de hoje. Quase toda apostasia nasce de omissões discretas: a oração que vai rareando, a Palavra que vai fechando, a comunhão que vai esfriando, as companhias que vão moldando, os limites “lícitos” que se empurram até o ilícito. Deus nos disse que “os cuidados do mundo”, “o engano das riquezas” e “os prazeres da vida” sufocam a Palavra (Mateus 13:22; Lucas 8:14). “Aquele, pois, que pensa estar em pé, veja que não caia” (1 Coríntios 10:12).

O remédio é duplo e urgente. Primeiro, avançar, não estagnar: deixar os rudimentos sobre o fundamento — arrependimento vivo, fé viva, sinais que apontam para a realidade, esperança na ressurreição, sobriedade diante do juízo — e subir, em Cristo, ao alimento sólido do Seu sacerdócio e da nova aliança (Hebreus 6:1–3; 7–10). Quem não cresce, recua. Segundo, voar ao Trono à primeira sombra de retrocesso: “Cheguemo-nos, portanto, com confiança, ao trono da graça, a fim de recebermos misericórdia e acharmos graça para socorro em ocasião oportuna” (Hebreus 4:16). A advertência não foi escrita para afastar penitentes, mas para acordar negligentes. Se tropeçou, não raciocine com o abismo; corra para o Sumo Sacerdote que “vive sempre para interceder” e “pode salvar perfeitamente” (Hebreus 7:25). A cura para o perigo de crucificar de novo o Filho é refugiar-se de novo no Filho — não com uma “prova” superficial, mas com a entrega inteira.

E quando o coração lhe sugerir: “Eu fui longe demais; caí do lado de lá de Hebreus 6:4–6”, contraponha a isso a lógica do evangelho: o Deus que tanto nos adverte é o mesmo que tanto promete. “Hoje, se ouvirdes a Sua voz, não endureçais o vosso coração” (Hebreus 3:15; 4:7). “Nós, porém, não somos dos que retrocedem para a perdição, mas dos que creem para a conservação da alma” (Hebreus 10:39). A advertência é a cerca que preserva a vereda. Caminhe entre ambas, humilde e confiante. Trate o perigo como real; trate Cristo como suficiente. E peça ao Espírito — a quem você não quer mais entristecer — que lhe dê um ouvido rápido, um passo pronto e um coração macio. Assim, a chuva de Deus encontrará em você campo bom, e, em vez de espinhos, surgirão “ervas úteis” (Hebreus 6:7): frutos de arrependimento, obras de fé, paciência que herda promessas. E, então, mesmo um texto severo como este soará, não como sentença, mas como misericórdia preventiva — e você bendirá o Senhor por cada cerca que o impediu de cair.

C. A diferença entre o solo frutífero e o estéril (Hebreus 6:7–8)

Algumas verdades, quando vestidas com uma imagem simples, entram pela mente e pressionam o coração. O escritor aos Hebreus faz isso aqui: ele põe diante de nós um campo sob chuva abundante. A mesma água cai “muitas vezes” (Hebreus 6:7), mas os resultados não são os mesmos. De um lado, a terra “bebe” e “produz ervas úteis” para quem a cultiva; recebe, então, “bênção da parte de Deus”. Do outro, a terra também bebe, mas devolve “espinhos e abrolhos”; é rejeitada, “está próxima da maldição”, e seu fim é “ser queimada” (Hebreus 6:7–8). O contexto nos explica o alvo: o autor acaba de advertir quanto ao perigo de apostasia (Hebreus 6:4–6) e, com esta parábola, mostra como os mesmos meios de graça podem ser, para uns, caminho de vida, e, para outros, agravamento de juízo. A diferença não está na chuva; está no solo.

O que o grande Agricultor espera quando derrama a chuva dos seus meios de graça — a Palavra lida e pregada, os sacramentos, a oração, a comunhão dos santos? O lavrador humano espera que seus canteiros, regados, frutifiquem; e Deus, o “lavrador” (João 15:1), espera ver, em sua vinha, arrependimento mais profundo, fé mais simples e rendida ao Filho, consagração mais inteira, mortificação mais real do pecado, crescimento “em todos os frutos de justiça” (Filipenses 1:11), uma conformidade mais nítida “à imagem” do próprio Cristo (Romanos 8:29). É isso que o Pai procura quando a chuva cai. Por isso o profeta pergunta: “Que mais se podia fazer à minha vinha, que eu não lhe tenha feito?” (Isaías 5:4).

Quando os meios são bem aproveitados, a bênção de Deus se torna palpável. Há uma paz que excede todo entendimento que guarda o coração (Filipenses 4:7), um amor de Deus “derramado em nossos corações pelo Espírito Santo” (Romanos 5:5), um testemunho filial que dissipa dúvidas (Romanos 8:15–16), uma ousadia de acesso ao Trono (Hebreus 4:16). O Senhor Jesus atrela promessa a meio: “Se permanecerdes em mim, e as minhas palavras permanecerem em vós, pedireis o que quiserdes, e vos será feito” (João 15:7). Onde a Palavra permanece e o coração obedece, o céu se abre.

Mas o texto nos força a encarar a outra possibilidade: a mesma chuva pode cair “muitas vezes” — sermões após sermões, ceias sobre ceias, convites repetidos do evangelho — e o campo permanecer estéril. Não por falha do céu, mas por dureza do chão. É trágico, mas real: há quem, depois de anos sob os meios de graça, ainda esteja terreno, sensual, carregado de azedumes; o coração segue “impenitente e incrédulo”, como se nunca tivesse ouvido do amor do Salvador nem recebido a oferta de salvação gratuita. O problema não é a água; é que a terra “bebe” sem assimilar. Deus já nos advertira: “O meu Espírito não contenderá para sempre com o homem” (Gênesis 6:3). Se a Palavra não é “cheiro de vida para vida”, torna-se “cheiro de morte para morte” (2 Coríntios 2:16). Se a vinha, apesar de cercas e lagar, só dá uvas bravas, o Agricultor retira sua cerca, deixa-a por conta dos espinhos (Isaías 5:5–6). E o Senhor Jesus, em tom mais agudo, diz que o desprezo do evangelho torna a condição “mais tolerável” para Sodoma do que para os que recusaram o Filho (Mateus 10:15).

Isso nos obriga a uma indagação séria. A chuva tem caído. Que efeito tem produzido? Isaías descreve a eficácia da palavra como a da chuva e da neve: “não voltará para mim vazia, mas fará o que me apraz” (Isaías 55:10–11). A pergunta, portanto, não é se a água veio; é se, em nós, ela brotou em ervas úteis. O que o evangelho tem produzido? Mais do que sensações passageiras, ele produz vida: convicção e abandono do pecado, fé humilde e perseverante, nova obediência. Ao olharmos no espelho da Palavra, saímos fazendo o que vimos (Tiago 1:23–25), ou saímos intactos e, por isso mesmo, mais endurecidos? O culto nunca nos deixa iguais: entramos de um jeito e saímos ou amolecidos pela graça, ou endurecidos pela resistência.

Daí a necessidade de uma vigilância devota. Entrar no culto é entrar, de modo peculiar, à presença de Deus; cada palavra ouvida sobe como testemunha do modo como foi ouvida (Marcos 4:24; Lucas 8:18). Por isso, prepare o coração antes, suplique durante, agradeça e retenha depois. Ore para que a Palavra não passe apenas pela superfície, mas encontre fissuras no solo e desça ao fundo; para que não seja “sabor” na língua, e sim pão no estômago da alma. E, se uma impressão favorável vier — e Deus, em sua bondade, costuma fazê-lo —, zelosamente a cultive. É nesse ponto que muitos transformam bênçãos em maldição: tocam a verdade, mas não a levam para casa; sentem a chuva, mas não quebram o torrão; e, assim, a água que deveria fazer brotar trigo apenas alimenta espinhos.

Como, então, “beber” de modo proveitoso? O próprio quadro sugere: sedentos e dispostos. Sedentos — reconhecendo a necessidade, confessando a secura, desejando a Palavra como “crianças recém-nascidas” desejam “o leite não falsificado” (1 Pedro 2:2). Dispostos — quebrando com pecados acariciados, afastando os espinhos que sufocam (Lucas 8:14), praticando imediatamente a luz recebida. O coração macio é obra da graça; mas é nossa responsabilidade não endurecer quando Deus fala: “Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais o vosso coração” (Hebreus 3:15; 4:7).

Alguém dirá: “E se eu já desperdicei muita chuva?” Então, justamente agora, corra para Aquele que transforma desertos em mananciais. A mesma epístola que adverte com severidade nos chama, sem hesitação, ao Trono da Graça (Hebreus 4:16) e nos assegura que Deus é “justo para se lembrar” do trabalho do amor (Hebreus 6:10). Hoje, humilhe-se; hoje, peça um coração “de carne” (Ezequiel 36:26); hoje, responda à Palavra não com um aceno da cabeça, mas com a entrega da vontade. E, sob a chuva do evangelho, verá nascer o que o Agricultor procura: arrependimento vivo, fé obediente, frutos de justiça. Então, o mesmo campo que antes ameaçava espinhos se tornará horta irrigada — e, em vez de “estar perto da maldição”, ouvirá a antiga promessa: “Bendita serás… o Senhor te abrirá o seu bom tesouro, o céu, para dar chuva à tua terra no seu tempo” (Deuteronômio 28:3, 12).

D. As coisas que acompanham a salvação (Hebreus 6:9–11)

Há momentos na pregação em que o pastor precisa erguer cercas, e outros em que ele precisa abrir janelas. O parágrafo anterior ergueu cercas solenes ao falar do perigo real da apostasia (Hebreus 6:4–8); agora o Espírito abre as janelas e deixa entrar luz e ar: “Amados, estamos persuadidos das melhores coisas a respeito de vós, e das coisas que acompanham a salvação, ainda que assim falamos. Porque Deus não é injusto para se esquecer da vossa obra e do trabalho de amor que para com o seu nome mostrastes, quando servistes aos santos e ainda servis. E desejamos que cada um de vós mostre o mesmo diligente cuidado até ao pleno conhecimento da esperança, até ao fim” (Hebreus 6:9–11). O tom muda, mas não a seriedade: o consolo aqui é tão denso quanto foi o aviso antes. A chave está em duas expressões: “coisas que acompanham a salvação” e “para com o seu nome”.

A Escritura reconhece que há dons, afetos e até experiências que podem ser compartilhados por hipócritas e santos; vimos que alguém pode “provar” e, ainda assim, não viver de Cristo (Hebreus 6:4–6). Mas há sinais que não aparecem sozinhos; viajam sempre em cortejo com a graça salvadora. Entre eles, o autor destaca um com vigor apostólico: amor aos santos por amor ao Nome. Não um afeto vago pela gente religiosa, nem uma simpatia natural por pessoas amáveis, nem a camaradagem de um partido; mas um amor que enxerga os crentes como santos, isto é, como pertencentes a Cristo, membros do mesmo corpo, coerdeiros da mesma esperança (Efésios 1:18; Romanos 8:17). É amor que tem endereço visível — “os santos” — e destino supremo — “o seu nome” (Hebreus 6:10). Faz bem às pessoas, mas mira a glória de Deus. Não podendo ungir a cabeça do Senhor com o nosso perfume, derramamo-lo, por Ele, sobre os Seus membros (Mateus 25:40).

Esse amor não vive de declarações; trabalha. A Palavra o chama de “obra” e “trabalho de amor” (Hebreus 6:10). O amor cristão tem calos nas mãos: visita, sustenta, reparte, consola, instrui, intercede. Ele não se contenta com “palavra e língua”, mas age “em deed and truth”, em “obra e em verdade” (1 João 3:18). E, porque é amor para com o Nome, não é intermitente nem seletivo; não serve apenas quando a causa é popular, nem apenas os “agradáveis”. Serve “aos santos” porque são de Cristo, e ainda serve — o tempo do verbo importa: passado e presente, constância e perseverança. É por isso que Jesus estabelece esse critério como marca dos Seus: “Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns aos outros” (João 13:35). E João ousa dizer que aqui está um teste interior de conversão: “Nós sabemos que passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos” (1 João 3:14). Quando esse amor se torna hábito, a própria esperança se robustece; não porque a obra mereça, mas porque ela evidencia a fé que salva (Tiago 2:18, 26).

O consolo do texto, porém, não repousa no nosso amor; repousa no caráter de Deus. “Deus não é injusto para se esquecer” (Hebreus 6:10). Ele se vinculou, por promessa e por aliança, a lembrar-se de cada ato feito por amor ao Seu Nome. Até “um copo de água fria” dado “em nome de discípulo” não ficará sem recompensa (Mateus 10:42). Paulo, no fim da carreira, chama a coroa de “a justiça” do Senhor, e ousa esperar da mão de um Justo Juiz aquilo que a graça prometeu (2 Timóteo 4:8). Não há mérito aqui; há fidelidade divina. A justiça de Deus, no evangelho, se manifesta em cumprir o que Ele mesmo prometeu àqueles a quem justificou pelo sangue do Filho. Por isso o autor pode dizer, sem temor de exagerar, que Deus se faria injusto se apagasse do livro o que Ele próprio prometeu lembrar. O consolo não é frágil.

Tudo isso, porém, é escrito para acender diligência. O amor que opera é também o amor que persevera: “Desejamos que cada um de vós demonstre o mesmo cuidado até à plena certeza da esperança, até ao fim” (Hebreus 6:11). A esperança cristã tem graus; ela amadurece. Há a esperança tímida, que respira entre suspiros; há a esperança robusta, que avança para a “plena certeza”. Como ela cresce? O texto aponta dois trilhos que correm juntos: a diligência no amor prático e a perseverança no tempo. A cada gesto concreto por amor ao Nome, a consciência encontra novo terreno para pisar; a promessa, que já era roca firme, passa a ser experiência; a esperança, alimentada pela obediência, torna-se plena (2 Pedro 1:10–11). E quanto mais esse amor se faz hábito, menos espaço resta para as sombras que nos roubam a alegria. Não construímos a esperança sobre obras como se fossem degraus de mérito; recebemos, pelas obras de amor, o testemunho de que a fé é viva, e esse testemunho aquece o peito. “Deus é amor; e quem permanece no amor permanece em Deus, e Deus nele”, diz João, e conclui que assim “temos confiança no dia do juízo” (1 João 4:16–17).

Talvez alguém suspire: “Mas e se, entre nós, houver os dois grupos — os que já manifestam essas coisas e os que ainda não?” É por isso que o autor fala com ternura e franqueza. Ele crê que muitos dos seus leitores têm essas marcas — “estamos persuadidos de coisas melhores a respeito de vós” —, e, no mesmo fôlego, exorta cada um a mostrar o mesmo zelo “até ao fim”. A igreja é sempre um campo misto; há quem não manifeste nem mesmo o que os falsos já manifestaram (Hebreus 6:4–5), e há quem, amando sinceramente, não possa ainda expressar esse amor em obras grandes por falta de oportunidade. Deus, que vê o secreto, testemunhará por ambos no último dia: lembrará as obras vistas e as intenções fiéis que não puderam se converter em atos (Romanos 2:16; 2 Coríntios 8:12). Mas, a nós, cabe pedir que o Espírito plante e faça crescer esse amor, de modo que os invisíveis desejos se tornem visíveis serviços, e os ensaios tímidos, hábitos firmes.

Como, então, responder ao consolo e à chamada deste texto? Começando no joelho e na porta do vizinho. No joelho, pedindo ao Pai “espírito de sabedoria e de revelação no pleno conhecimento dEle”, olhos iluminados para ver “a esperança da Sua vocação” e “a suprema grandeza do Seu poder” (Efésios 1:15–20), e, com isso, ficando “cheios de toda a plenitude de Deus” ao provar mais da largura, comprimento, altura e profundidade do amor de Cristo (Efésios 3:18–19). À porta do vizinho, fazendo do amor um trabalho: servindo aos santos e ainda servindo — levando cargas (Gálatas 6:2), abrindo casa, repartindo pão, admoestando com mansidão, encorajando os tímidos, sustentando os fracos, sendo pacientes para com todos (1 Tessalonicenses 5:14). O caminho para a “plena certeza da esperança” não passa por dentro do coração apenas; passa por mãos que se movem.

E, de novo, até ao fim. Não largue o arado do amor porque um gesto foi mal interpretado; não recue porque uma semente caiu no terreno errado. Discernimento é necessário, sim; amargura, jamais. Se alguém abusou da sua bondade, a perda é dele; se você se torna omisso por causa disso, a perda é sua. O evangelho não nos manda racionar o amor; manda perseverar nele. “Não nos cansemos de fazer o bem, porque, a seu tempo, ceifaremos, se não desfalecermos” (Gálatas 6:9). O fim não é o cansaço; é a colheita. E quando a colheita vier, ela terá duas faces: a do fruto nos irmãos, e a da alegria em sua própria alma. Poucos gozos se comparam ao de ver que, enquanto você se gastava pelo Nome, o próprio Deus o enchia de esperança — uma esperança tão plena que parecia já ouvir, ao longe, os passos dos anjos (2 Timóteo 4:8).

Tomemos, então, para nós a dupla afirmação deste texto: Deus não esquece o que o amor fez por amor ao Seu Nome; e nós não desistiremos de fazê-lo, até ao fim. Assim, as “coisas que acompanham a salvação” não serão meras ideias, mas um caminho. E, caminhando nele, descobriremos que o aviso severo do campo estéril (Hebreus 6:7–8) nos guardou; e que este consolo firme — “amados, estamos persuadidos de coisas melhores” — nos sustentou. E, quando enfim atravessarmos o último vale, ouviremos do Justo Juiz aquilo que sempre desejamos ouvir do nosso Salvador: “Muito bem, servo bom e fiel… entra no gozo do teu Senhor” (Mateus 25:23). Até lá, trabalho de amor — por Ele, pelos Seus, para a Sua glória.

E. “Não sejais indolentes”: fé, paciência e a corrida até o fim (Hebreus 6:12)

O Espírito acaba de acender, no versículo anterior, a chama de uma esperança robusta: “desejamos que cada um de vós mostre o mesmo diligente cuidado até à plena certeza da esperança, até ao fim” (Hebreus 6:11). E, como quem volta o candeeiro para que a luz caia bem no ponto certo, Ele acrescenta: “não sejais indolentes, mas imitadores dos que, pela fé e pela paciência, herdam as promessas” (Hebreus 6:12). Eis aqui, em poucas palavras, a psicologia da perseverança cristã. A esperança não se sustenta com sentimentos que vêm e vão; ela se robustece quando a alma rejeita a preguiça espiritual, escolhe modelos santos e caminha no mesmo trilho — fé que se apoia em Deus, paciência que recusa desistir, até que a promessa amadureça no tempo de Deus.

A indolência espiritual é o peso que mais facilmente “nos assedia” (Hebreus 12:1). No trabalho secular, outros amores conseguem vencê-la por um tempo; no caminho de Deus, porém, todo passo precisa contrariá-la. Por isso a Escritura descreve a vida cristã como corrida e combate. Quem corre não passeia; esquece o que fica para trás e se estica para o que está adiante (1 Coríntios 9:24–27; Filipenses 3:12–14). Quem peleja não cochila no campo de batalha; arma-se, vigia, resiste, ora “com toda perseverança” (Efésios 6:10–18). Nada é mais contraditório do que professar valorizar a alma, servir a Deus e buscar o céu, e, ao mesmo tempo, poupar-se sistematicamente quando a vontade do Senhor exige energia, renúncia, constância. “Servo mau e preguiçoso” — é assim que o Senhor chamou quem escondeu o talento por amor de si (Mateus 25:26). A preguiça é, ao mesmo tempo, indigna da nossa vocação (é avessa ao “correi de tal maneira que o alcanceis”) e incoerente com a nossa confissão (dizemos que Cristo é digno… e nos poupamos quando servi-Lo custa). E não é apenas indigna e incoerente; é danosa. O crente que se entrega a ela vive com pouca vitória, pouca luz, pouca alegria; a lâmpada mal aparada lança um clarão incerto para fora e recebe pouca luz do rosto de Deus para dentro (Tiago 1:23–25). E, ao pôr do sol, quantos fecham os olhos mais entre névoas do que em plena confiança, porque dormiram quando deviam vigiar (Gálatas 6:9; 2 Pedro 1:10–11).

O caminho posto diante de nós é outro: abandonar a indolência e imitar os herdeiros. O autor vai, em seguida, colocar Abraão diante dos olhos, para que ninguém imagine que “fé e paciência” são slogans piedosos. “Assim, tendo Abraão esperado com paciência, alcançou a promessa” (Hebreus 6:15). O Deus que jurou a Abraão pareceu demorar, mas não falhou (Gênesis 22:16–18); e o patriarca, sustentado pela promessa, recusou atalhos, suportou provações, esperou o tempo de Deus. É esse compasso que Hebreus quer tatuar na alma da igreja: fé que se apoia no caráter de Deus, paciência que suporta o intervalo entre o juramento e o cumprimento. A herança não vem por mérito; vem por promessa. Mas a promessa é herdada caminhando — crendo quando tudo parece contradizer (Romanos 4:18–21), obedecendo quando obedecer corta (Gênesis 22:1–14), esperando quando esperar dói (Hebreus 10:36). É assim que se faz “imitador”.

Não deixemos, porém, que o zelo se torne carnal: a diligência cristã não é a ansiedade dos que pensam comprar o favor divino com o suor da religião. O fundamento permanece: Deus “não é injusto para se esquecer” do “trabalho de amor” feito pelo Seu nome (Hebreus 6:10). A nossa corrida é resposta à graça, não tentativa de merecê-la; é cooperação humilde com Aquele que “opera em nós tanto o querer quanto o efetuar” (Filipenses 2:12–13). E, justamente porque é obra dEle em nós, ela nunca é vã. Em matéria espiritual, ninguém que busca fica sem achar; ninguém que bate fica sem ver portas abrirem (Mateus 7:7–8). “Sede firmes, inabaláveis, sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que, no Senhor, o vosso trabalho não é vão” (1 Coríntios 15:58).

Como, então, traduzir Hebreus 6:12 em vida? Começa com um não e com um como. “Não sejais indolentes”: recuse o torpor que adia, relativiza, terceiriza. Se a Palavra chamou, responda hoje; se a consciência foi tocada, obedeça depressa; se a oração arrefeceu, reacenda-a antes que a brasa vire cinza (Hebreus 3:13–15). E “sede imitadores”: escolha exemplos que estiquem a sua fé. Olhe para os antigos, que “pela fé subjugaram reinos… e obtiveram promessas” (Hebreus 11:33), e aprenda com eles o ritmo de Deus. Olhe para os santos de hoje, discretos e fiéis, que não desistem de servir “aos santos” por amor ao Nome (Hebreus 6:10), e aprenda com eles a constância. Acima de tudo, fixe os olhos em Jesus, “o Autor e Consumador da fé”, que correu antes, suportou a cruz “pela alegria que lhe estava proposta” e agora está assentado, garantindo o fim da nossa corrida (Hebreus 12:1–2).

E se, no caminho, vierem lutas, desgostos, atrasos? Eles virão. A fé é justamente a graça que crê no intervalo; a paciência, a graça que permanece no intervalo. O rico ensino de Hebreus é que a promessa de Deus não muda, ainda que o relógio de Deus nos desestabilize. Por isso a exortação não é apenas a começar bem, mas a ir “até o fim” (Hebreus 6:11). Nada de olhar para trás depois de pôr a mão no arado (Lucas 9:62). Nada de recuar “para a perdição”, quando fomos feitos para crer “para a conservação da alma” (Hebreus 10:39). Nada de ceder ao cansaço quando o Senhor prepara “abundante entrada” (2 Pedro 1:11). A herança está prometida; e “Deus, querendo mostrar mais firmemente aos herdeiros da promessa a imutabilidade do seu propósito, interpôs juramento” (Hebreus 6:17). Apoie-se aqui, e continue.

Se lhe faltarem motivos, visite, pela fé, dois lugares. Visite a cama de morte de um crente que se deu à diligência do amor: você o verá agradecido, não soberbo; sereno, não superficial; com a esperança tão cheia que quase transborda em visão (2 Timóteo 4:7–8). Depois, levante os olhos para a glória e lembre-se de que “uma estrela difere da outra em glória” (1 Coríntios 15:41); ninguém perde o céu por ser preguiçoso, se está em Cristo — mas quem seria tolo de contentar-se em perder no céu o que poderia ter gozado, por ter vivido economizando amor e serviço (1 Coríntios 3:15; 2 João 8)? Diligência aqui é capacidade ampliada de gozo lá.

“Não sejais indolentes, mas imitadores…” É ordem e promessa numa só frase. O Deus que chama é o Deus que sustenta. O Cristo que correu é o Cristo que esperará na linha de chegada. E o Espírito que hoje o convence é o mesmo que o capacitará amanhã. Comece agora, recomece hoje, prossiga sempre — pela fé que se apoia na Palavra, com paciência que atravessa as estações, até herdar o que Deus jurou dar.

F. A cidade de refúgio e o juramento de Deus (Hebreus 6:17–18)

O autor de Hebreus tem diante de si almas cansadas: crentes que já ouviram promessas, mas que, sob a pressão do tempo e das provações, sentem sua esperança vacilar. Ele não lhes oferece sentimentalismo; oferece teologia que consola. “Querendo Deus mostrar mais abundantemente aos herdeiros da promessa a imutabilidade do seu propósito, interveio com juramento; para que, por duas coisas imutáveis, nas quais é impossível que Deus minta, tenhamos forte consolação nós, os que fugimos para o refúgio, a fim de lançar mão da esperança proposta” (Hebreus 6:17–18).

Repare no amor condescendente de Deus. Ele não precisava jurar; a sua palavra, por si, é mais firme que os pilares da criação. “Deus não é homem, para que minta” (Números 23:19); “o Deus que não pode mentir prometeu antes dos tempos eternos” (Tito 1:2). Ainda assim, para lidar não com a Sua fraqueza—porque Ele não a tem—, mas com a nossa, Ele “intervém com juramento”. O contexto mostra a cena: quando Deus prometeu a Abraão, “jurou por si mesmo, dizendo: certamente te abençoarei e multiplicarei” (Hebreus 6:13–14; Gênesis 22:16–18). A promessa é uma coluna; o juramento é outra. E ambas repousam no solo inabalável do Seu caráter: “é impossível que Deus minta”. A nossa fé, portanto, não se ancora na mudança das estações, mas na imutabilidade do Seu conselho.

Quem são os destinatários dessa condescendência? “Os herdeiros da promessa”. Não éramos assim por natureza — “éramos, por natureza, filhos da ira” (Efésios 2:3) —, mas Deus, em Seu eterno propósito, nos chamou e adotou (2 Timóteo 1:9; Romanos 8:15–17). A herança são as Suas promessas, “sim e amém” em Cristo (2 Coríntios 1:20): perdão, adoção, Espírito, perseverança, ressurreição, glória. E como se prova que pertencemos a esse povo? O texto responde com uma imagem que abre a porta de todo o Antigo Testamento: “os que fugimos para o refúgio”.

O eco é deliberado. Sob a Lei, Deus estabeleceu cidades de refúgio para o homicida culposo fugir do “vingador de sangue” (Números 35:11–12; Deuteronômio 19:2–3; Josué 20). As estradas para essas cidades deviam ser preparadas e desimpedidas, com marcos claros; os portões permaneciam abertos; o fugitivo corria, explicava seu caso aos anciãos e era acolhido, protegido dentro dos limites daquela cidade; e sua liberdade plena vinha pela morte do sumo sacerdote (Números 35:25, 28). O escritor pega essa gramática e a aplica ao evangelho. O pecador acordado pela consciência percebe que a Justiça vem atrás de si; ele não caminha, foge. E para onde? Para Cristo, nosso verdadeiro Refúgio. Nele, as estradas foram preparadas; a pregação removeu pedras e ergueu marcos; os portões não se fecham. “Deus nos deu a vida eterna, e esta vida está no seu Filho. Quem tem o Filho tem a vida” (1 João 5:11–12). Dentro dEle, a alma encontra abrigo contra a condenação da Lei; e a liberdade plena não depende de seu próprio morrer, mas da morte de um Sumo Sacerdote—e o nosso já morreu e vive para sempre (Hebreus 7:23–25). Esta é a força da expressão: “os que fugimos… para tomar posse da esperança proposta”. Não é turismo religioso; é refúgio de vida ou morte.

Veja, então, como o consolo é construído. Primeiro, Deus promete; depois, jura; e, como se não bastasse, dá-nos uma figura que qualquer israelita entenderia: “corra para a cidade; dentro dela, o vingador não o alcança”. O versículo seguinte falará de “âncora da alma” e de entrada “até o interior do véu” (Hebreus 6:19–20); aqui, a mesma ideia está vestida de estrada e muralhas. De um lado, a fidelidade de Deus em Sua promessa e juramento; de outro, a suficiência de Cristo como Refúgio e Sumo Sacerdote. Duas coisas imutáveis do lado de Deus; um abrigo perfeito do lado de Cristo. Não admira que o objetivo seja “forte consolação”.

É aqui que a doutrina desce ao coração. Muitos vivem na orla da esperança, como se Deus houvesse dito “talvez” quando disse “certamente”. O texto corrige essa insinuação de incredulidade. A incredulidade, por mais discreta que pareça, chama Deus de mentiroso (1 João 5:10); por isso é pecaminosa. Deus, sabendo quão facilmente suspeitamos dEle, multiplicou garantias: promessa, juramento, tipologia, Sumo Sacerdote ressuscitado. “Eu sei em quem tenho crido”, diz Paulo, “e estou certo de que Ele é poderoso para guardar o que Lhe confiei até aquele dia” (2 Timóteo 1:12). É isso que Hebreus deseja que você diga sem gaguejar. A esperança cristã não é otimismo; é resposta à fidelidade divina juramentada.

Mas o texto também instrui quanto ao modo de lidar com a consciência. Ele não diz “construímos um abrigo”; diz “fugimos para o refúgio”. O evangelho não é convite a reformas morais que retardam o vingador; é comando urgente a correr para Cristo agora. “Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais o vosso coração” (Hebreus 3:7–8; 4:7). O caminho está aberto; os marcos estão postos; a cidade está próxima; o Sumo Sacerdote já morreu; o vingador não pode entrar. Por que, então, tardar fora dos muros? Entrar é crer; permanecer é descansar; e, dentro, começa a robustez da consolação. O Pai não quer filhos a viver de sobressaltos, mas de plena certeza de esperança (Hebreus 6:11). Se Ele julgou necessário jurar para que você descansasse, quem é você para insistir em duvidar?

Talvez você diga: “Mas e se eu for fraco, vacilante, propenso a olhar para trás?” A figura ajuda aqui também. As estradas eram mantidas, os portões ficavam abertos, e o fugitivo, uma vez dentro, não era posto para fora por tropeçar; ele era guardado enquanto permanecia na cidade (Deuteronômio 19:5–6). Em Cristo, a analogia se intensifica: Ele não apenas o acolhe; vive sempre para interceder por você (Hebreus 7:25). E, quando Hebreus amplia a imagem, mostra que nossa segurança não depende do nosso punho segurando a esperança, mas do âncora lançada “até ao interior do véu”, onde Jesus entrou “como precursor por nós” (Hebreus 6:19–20). A esperança não está amarrada em nós; está amarrada nEle.

E o mundo? Qual é a diferença real, ainda que invisível, entre quem crê e quem vive indiferente? O crente é “herdeiro da promessa”, refugiado em Cristo, sustentado por promessas juramentadas, vivendo de paz que “excede todo entendimento” (Filipenses 4:7). O homem sem Cristo, para ter “consolo”, precisa, no fundo, supor que Deus não será tão santo quanto disse, que o juízo não será tão certo quanto prometeu. Em outras palavras, sua “paz” depende de imaginar que Deus mente. É por isso que o consolo do ímpio é vapor. “Nós, porém, não somos dos que retrocedem para a perdição, mas dos que creem para a conservação da alma” (Hebreus 10:39).

Diante de tudo isso, duas respostas são apropriadas. A primeira é adoração humilde pela condescendência de Deus. Que o Altíssimo “se obrigue”, por assim dizer, com um juramento, para abafar as nossas dúvidas! Quem se rebaixaria assim sem se macular? Deus o fez, e o fez por amor. “Não recebamos essa graça em vão” (2 Coríntios 6:1). A segunda é prontidão: se você ainda está fora, fuja; se já entrou, permaneça. Fuga agora, perseverança sempre. E, enquanto corre ou permanece, repita para sua alma o credo desta passagem: Deus prometeu; Deus jurou; Deus não mente; Cristo é o meu Refúgio; minha esperança está segura além do véu. Diga-o até que o coração aprenda, e, aprendendo, descanse. Porque é exatamente para isso que Ele “quis mostrar mais abundantemente” o que estava no Seu coração eterno: para que, em um mundo onde tudo muda, você tenha forte consolação.

G. A âncora do cristão (Hebreus 6:19–20)

A Escritura nunca nos ilude acerca da travessia: esta vida é deserto a caminho de Canaã, mar aberto antes do porto. Nele, “tribulações” (João 16:33), ventos contrários, correntes traiçoeiras; mas, no mesmo alento, Deus nos dá consolos que não são meras emoções passageiras, e sim sustentações objetivas, adequadas ao peso da jornada. É assim que o autor de Hebreus fala: “temos uma âncora da alma, segura e firme, e que penetra até ao interior do véu, onde Jesus, precursor, entrou por nós” (Hebreus 6:19–20).

Mas detenhamo-nos numa pergunta que o próprio contexto desperta: qual é, exatamente, essa âncora? Muitos, com acerto em outros lugares, a chamam de esperança. Aqui, porém, o fio do argumento aponta para algo ainda mais preciso: o consolo que nasce da visão da “imutabilidade do seu propósito”, confirmado por Deus não só com promessa, mas também com juramento (Hebreus 6:17–18). Repare na cadência do texto: Deus quis “que tivéssemos forte consolação”; e, logo em seguida: “a qual temos como âncora da alma, segura e firme”. O paralelismo é intencional. O autor não nos manda olhar para dentro em busca de sensações; manda-nos olhar para Deus em sua veracidade juramentada, e, daí, beber um consolo que faz a alma parar de derivar. É o que Esdras chamou de “a alegria do Senhor é a vossa força” (Neemias 8:10): quando o coração se firma na palavra e no juramento divinos — “duas coisas imutáveis, nas quais é impossível que Deus minta” (Hebreus 6:18; Números 23:19; Tito 1:2) —, nasce um contentamento robusto, que mantém o navio estável mesmo quando a superfície revolta.

Onde, então, lançamos essa âncora? Não nas areias movediças das nossas variações interiores, mas “dentro do véu”. Sob a antiga aliança, por detrás do véu estavam a arca, a lei coberta pelo propiciatório, e, sobre o propiciatório, a glória (Êxodo 25:17–22; Levítico 16). O que era sombra, agora é substância: o trono da graça aberto (Hebreus 4:16), o Deus reconciliado por meio do sangue do Filho (Colossenses 1:20–22), a presença onde “Jesus entrou... por nós” (Hebreus 6:20; 9:12, 24). A nossa âncora não desce a um fundo opaco; ela sobe e se prende ao céu — prende-se ao caráter de Deus que prometeu e jurou, prende-se ao propósito eterno que o Pai fez com o Filho: “se a tua alma se puser por expiação do pecado, verás a tua posteridade... e o bom prazer do Senhor prosperará na tua mão” (Isaías 53:10). É aqui que a alma deve firmar-se, e só aqui. Não em quadros, não em sentimentos, não em “experiências” que hoje brilham e amanhã se apagam. “O fundamento de Deus fica firme... o Senhor conhece os que são seus” (2 Timóteo 2:19); “os dons e a vocação de Deus são irrevogáveis” (Romanos 11:29). Tudo quanto em nós oscila; Ele não.

“Segura e firme”, escreve o autor. De onde vem essa solidez? Da qualidade da âncora — esse consolo produzido pelo Espírito a partir da promessa juramentada — e, sobretudo, do recife a que ela se prende: Cristo. Notemos como o parágrafo muda de figura sem trocar de assunto: de âncora, o texto passa a falar do Precursor (Hebreus 6:20). Não é um desvio; é o segredo de toda a estabilidade. A âncora “entra dentro do véu” porque Ele entrou. E entrou por nós. Entrou como Advogado, apresentando diante do Pai o valor do seu sacrifício, “comparecendo agora por nós perante Deus” (Hebreus 9:24), “vivendo sempre para interceder” (Hebreus 7:25). Entrou como Cabeça e Representante: “juntamente com Ele nos ressuscitou e nos fez assentar nos lugares celestiais em Cristo Jesus” (Efésios 2:6). Por isso Paulo pode dizer: “a nossa vida está escondida com Cristo em Deus… quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, então também vós vos manifestareis com Ele em glória” (Colossenses 3:3–4). A âncora não é um ferro anônimo perdido no fundo; é a própria ligação viva do corpo ao seu Cabeça no santuário.

E há ainda um consolo mais íntimo: foi com a mesma âncora que o nosso Senhor navegou as suas tormentas. Ouvi-o diante de Pilatos: “Nenhuma autoridade terias contra mim, se de cima não te fosse dada” (João 19:11). Vede o retrato profético: “O Senhor Deus me ajuda; por isso não me confundo; por isso pus o meu rosto como um seixo… Quem contenderá comigo?… Eis que o Senhor Deus me ajuda” (Isaías 50:7–9). O autor de Hebreus resume: “pela alegria que lhe estava proposta, suportou a cruz, desprezou a ignomínia, e está assentado” (Hebreus 12:2). Ele mesmo se manteve na confiança do propósito imutável do Pai — e agora mantém os nossos corações na mesma confiança. Enquanto lançamos a âncora, é Ele quem a guia e assegura o seu apego; enquanto nos apoiamos nas promessas, é Ele quem as pleiteia por nós “dentro do véu”. O lado de cá ora; o lado de lá intercede. O lado de cá se agarra; o lado de lá sustenta.

Diante dessa arquitetura de graça, compreendemos para que servem as doutrinas profundas que tantos discutem como se fossem brinquedos de polêmica: eleição, predestinação, a aliança eterna. Não são munição para debates, são alimento para a consolação e combustível para a santidade. “A piedosa consideração delas”, dizia uma antiga confissão, “confirma a fé no desfrute da salvação em Cristo e inflama o amor por Deus.” É isso que Hebreus está fazendo: não nos convida à curiosidade vã, mas ao descanso humilde no Deus “que opera segundo o conselho da sua vontade” (Efésios 1:11), e que nos manda “olhar firmemente para Jesus, o Autor e Consumador da fé” (Hebreus 12:2). Quem lê essas coisas corretamente não troca o mapa e a bússola pela âncora; ao contrário, usa tudo: corre com diligência, ora com perseverança, vela com sobriedade — e, quando os ventos se erguem, sente a tensão da corrente e descansa, porque sabe onde a âncora está presa.

E qual é a vantagem do crente sobre os demais, aqui? O mundo seculariza a tempestade: explica, mede, prevê; mas, quando o céu escurece de verdade, não tem onde amarrar a alma. O cristão, porém, pode gloriar-se nas tribulações (Romanos 5:3–5). Ele não trata os eventos como acaso; refere tudo à mão sábia e fiel que “faz convergir todas as coisas para o bem” dos que o amam (Romanos 8:28). Por isso, em meio a “tribulação, angústia, perseguição, fome, nudez, perigo ou espada”, ele levanta a velha doxologia de Romanos 8: “Quem nos separará do amor de Cristo?... Em todas estas coisas somos mais que vencedores por meio daquele que nos amou... estou certo de que nem morte, nem vida... nem qualquer outra criatura nos poderá separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus” (Romanos 8:35–39). Eis a âncora em plena operação.

Resta-nos, então, ouvir a exortação que sempre acompanha o consolo. Se você ainda está fora, fuja — não caminhe — para a Cidade de Refúgio (Números 35:11–12). Os marcos foram erguidos, a estrada está desimpedida, as portas não se fecham; “hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais o coração” (Hebreus 4:7). Se você já entrou, permaneça; não lance a confiança fora, “a qual tem grande galardão” (Hebreus 10:35). E, seja qual for a estação, pregue diariamente à sua própria alma o credo desta passagem: Deus prometeu; Deus jurou; é impossível que Ele minta; Cristo é o meu Refúgio e o meu Precursor; a minha âncora está “dentro do véu”. Diga-o até que o coração aprenda, e, aprendendo, descanse. Porque é exatamente para isso que Ele quis mostrar “mais abundantemente” o que havia em Seu coração eterno: para que “tenhamos forte consolação” — âncora segura, firme, viva, até ao porto.

VIII. Concordância Bíblica Comentada

Hebreus 6:1 abre a porta que Hebreus 5:12–14 já entreabriu. O autor não está jogando fora a cartilha; está pedindo que a turma, alfabetizada, comece a ler livros. A frase grega, em transliteração, é um mapa: dio (“portanto”), aphentes ton tēs archēs tou Christou logon (“deixando a palavra do princípio acerca do Cristo”), epi tēn teleiotēta pherōmetha (“sejamos levados à maturidade/perfeição”), mē palin themelion kataballomenoi metanoias apo nekrōn ergōn kai pisteōs epi theon (“não lançando de novo o fundamento de arrependimento de obras mortas e de fé em Deus”). Cada bloco conversa com a Bíblia inteira — e é esse diálogo que dá o nervo do versículo.

Quando ele diz aphentes (tradução: “deixando”), não é “abandonar” no sentido de desprezar, mas “deixar para prosseguir”. É o mesmo movimento que ele acabou de exigir: sair do “leite” para o “alimento sólido” (Hebreus 5:12–14). O alvo é teleiotēta (tradução: “maturidade/perfeição”). A Bíblia chama esse avanço de muitas maneiras. Em Hebreus 7:11, a palavra “aperfeiçoamento” volta como argumento central; em Hebreus 12:13, a ordem é “endireitar veredas” para que o manco não se desloque — maturidade é caminho. Provérbios 4:18 desenha esse trilho: “a vereda dos justos é como a luz da aurora, que vai brilhando mais e mais.” Jesus a traduz em um imperativo que nos deixa sem escapatória: “sede perfeitos” (Mateus 5:48). Paulo fala do dia em que “o perfeito” chega e o provisório cessa (1 Coríntios 13:10), e resume a vida cristã como um exercício de purificação “aperfeiçoando a santidade” (2 Coríntios 7:1). Efésios 4:12 imagina uma igreja sendo edificada até “varão perfeito”; Filipenses 3:12–15 mostra o apóstolo “prosseguindo” porque ainda não alcançou, e convida “todos os maduros” a pensar assim. Colossenses 1:28 explica a meta do ministério: “apresentar todo homem perfeito em Cristo”, enquanto Colossenses 4:12 ora para que sejamos “perfeitos e plenamente seguros”. Tiago 1:4 quer que a perseverança faça “obra perfeita” para sermos “perfeitos e completos”; 1 Pedro 5:10 chama o Deus de toda graça que “aperfeiçoa”; e 1 João 4:12 diz que o amor de Deus “é aperfeiçoado” em nós. Tudo isso cabe dentro de epi tēn teleiotēta pherōmetha (tradução: “sejamos levados à maturidade”): é Deus empurrando a igreja para frente.

O que exatamente estamos “deixando” para poder avançar? Ton tēs archēs tou Christou logon (tradução: “a palavra do princípio acerca do Cristo”). Marcos chama seu rolo de “princípio do evangelho de Jesus Cristo” (Marcos 1:1): é a narrativa básica — quem Ele é, o que veio fazer. João recua ainda mais: “no princípio era o Verbo… todas as coisas foram feitas por intermédio dele” (João 1:1–3) — o fundamento ontológico de tudo o que confessamos. E 1 Timóteo 3:16 canta o “mistério da piedade”: Deus manifestado na carne, justificado no Espírito, visto dos anjos, pregado entre as nações, crido no mundo, recebido na glória. Nada disso é descartável; é o nosso alfabeto. Mas o autor insiste: alfabetizados nesse “princípio”, andemos para as consequências — vida, culto, missão, perseverança.

Por isso vem a imagem do canteiro: mē palin themelion kataballomenoi (tradução: “não lançando novamente o fundamento”). A casa, uma vez bem alicerçada, edifica; não reescava o terreno todos os dias. Jesus contou essa história duas vezes: o prudente cavou até a rocha e ergueu — por isso a casa ficou de pé (Mateus 7:25; Lucas 6:48). Paulo diz: “fundamento ninguém pode lançar, além do que é posto, o qual é Jesus Cristo” — e nos chama a edificar sobre ele com materiais que resistem ao fogo (1 Coríntios 3:10–12). Até a mordomia eterna é linguagem de alicerce: “entesourando para si bom fundamento para o futuro” (1 Timóteo 6:19). E o selo da segurança é este: “o firme fundamento de Deus fica” (2 Timóteo 2:19). Hebreus 6:1 não manda jogar fora o alicerce; manda parar de refazê-lo para, enfim, levantar a casa.

Quais são as duas sapatas desse alicerce? Metanoias apo nekrōn ergōn (tradução: “arrependimento de obras mortas”) e pisteōs epi theon (tradução: “fé em Deus”). O Antigo Testamento inteiro prepara o ouvido para a primeira. Isaías 55:6–7 convida: “Buscai ao Senhor… deixe o ímpio o seu caminho… converta-se ao Senhor”; Ezequiel 18:30–32 clama: “arrependei-vos… por que morrereis?… eu não tenho prazer na morte do que morre.” Zacarias 12:10 promete o dom que torna possível esse retorno: “derramarei… o espírito de graça e súplicas” — é Deus inclinado o coração para chorar e voltar. Quando o reino chega à beira do Jordão, João Batista resume a sua pregação: “arrependei-vos” (Mateus 3:2); Jesus começa do mesmo verbo (Mateus 4:17), e até as parábolas da vinha mostram o filho que se arrepende e vai (Mateus 21:29) e os publicanos que creram na mensagem de arrependimento (Mateus 21:32). Os Doze saem “pregando que se arrependessem” (Marcos 6:12). Em Atos, o eco é insistente: “arrependei-vos e cada um seja batizado” (Atos 2:38); “arrependei-vos, pois, e convertei-vos” (Atos 3:19); a igreja inteira reconhece que “Deus concedeu aos gentios o arrependimento para a vida” (Atos 11:18). Paulo anuncia que “Deus notifica aos homens que todos, em toda parte, se arrependam” (Atos 17:30), e resume seu ministério como “arrependimento para com Deus e fé em nosso Senhor Jesus” (Atos 20:21), exigindo “obras dignas de arrependimento” (Atos 26:20). Ele explica a mecânica do milagre: “a tristeza segundo Deus produz arrependimento para a salvação” (2 Coríntios 7:10), e diz ao pastor: “corrige com mansidão… a ver se, porventura, Deus lhes concederá o arrependimento… e voltarão à sobriedade” (2 Timóteo 2:25–26). Tudo isso é a primeira sapata: voltar-se de nekrā erga (tradução: “obras mortas”) para Deus.

E o que são nekrā erga? A própria carta define: o sangue de Cristo “purifica a vossa consciência de obras mortas” (Hebreus 9:14) — tanto as obras da carne quanto o ativismo religioso sem vida. Gálatas 5:19–21 lista o cardápio pesado das “obras da carne”: imoralidade, idolatria, discórdias…, coisas que “impedem” de herdar o reino. Efésios 2:1, 5 lembra o diagnóstico: estávamos “mortos” em delitos e pecados; obras que brotam de morte são, por definição, nekrā. O arrependimento vira o corpo para o lado da vida.

A segunda sapata, pisteōs epi theon (tradução: “fé em Deus”), é a resposta do coração levantado. Sem ela, diz a mesma carta, é “impossível agradar a Deus” (Hebreus 11:6). Jesus a põe como ponte para a vida: “quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna” (João 5:24); “quem crê em mim, crê não em mim, mas naquele que me enviou” (João 12:44); “credes em Deus, crede também em mim” (João 14:1). Pedro diz que, por Cristo, “credes em Deus… para que a vossa fé e a vossa esperança estejam em Deus” (1 Pedro 1:21). João resume a posse: quem crê tem “o testemunho em si” e “vida eterna” (1 João 5:10–13). Arrependimento que não desemboca nessa pistis é remorso; fé que não nasceu de arrependimento é ilusão; o fundamento tem duas sapatas.

A expressão “palavra do princípio” também lembra onde esse ABC foi entregue e como deve ser usado. Ele não é resto cultural; são “oráculos de Deus” que a comunidade aprendeu (Hebreus 5:12), como Israel recebeu “os oráculos vivos” no deserto (Atos 7:38). A doutrina não é museu; é obra. Por isso os “princípios” do começo (Marcos 1:1; João 1:1–3; 1 Timóteo 3:16) pedem “edificação” até o telhado (1 Coríntios 3:10–12), com paredes que aguentem tempestade (Mateus 7:25; Lucas 6:48), sobre um alicerce que Deus mesmo firma (2 Timóteo 2:19) — e, ao fim, uma casa que hospeda gente aperfeiçoada (Efésios 4:12; Colossenses 1:28), segura (Colossenses 4:12), santa (2 Coríntios 7:1), inteira (Tiago 1:4), consolada e robusta (1 Pedro 5:10), onde o amor de Deus está aperfeiçoado (1 João 4:12).

Leia, então, Hebreus 6:1 como um chamado amoroso e firme. Aphentes (tradução: “deixando”) não é desprezar; é seguir. Ton tēs archēs tou Christou logon (tradução: “a palavra do princípio sobre Cristo”) é o alicerce do qual nunca sairemos — mas sobre o qual, enfim, construiremos. Epi tēn teleiotēta pherōmetha (tradução: “sejamos levados à maturidade”) é Deus nos tomando pela mão para andar da aurora ao meio-dia. Mē palin themelion kataballomenoi (tradução: “não lançando de novo o fundamento”) é o veto à eterna escavação. Metanoias apo nekrōn ergōn (tradução: “arrependimento de obras mortas”) e pisteōs epi theon (tradução: “fé em Deus”) são as sapatas que sustêm a casa. Com elas bem postas, o que falta é erguer paredes, abrir janelas, acender luzes — e habitar, com vida madura, a casa que Cristo começou.

Hebreus 6:2 continua a lista dos alicerces que não precisam ser “reescavados”, mas sobre os quais a casa deve finalmente ser erguida. O versículo nomeia quatro pedras de base: “a doutrina de batismos”, “a imposição de mãos”, “a ressurreição dos mortos” e o “juízo eterno”. No texto grego transliterado, cada bloco aparece assim: didachēs baptismōn (“doutrina/ensino de batismos”), epitheseōs cheirōn (“imposição de mãos”), anastaseōs nekrōn (“ressurreição de mortos”) e krimatos aiōniou (“juízo eterno”). O autor os chama de “fundamento” porque são o ABC do evangelho; e os convoca como alicerces para que o edifício da maturidade seja construído.

“A doutrina de batismos” — didachē baptismōn — vem no plural, e isso não é acidental. Em Israel, havia “diversas abluções” — baptismois diapherois — ligadas ao culto e à pureza ritual (Hebreus 9:10; Marcos 7:4, 8; Lucas 11:38). Essa gramática de água preparou o caminho para João, cujo batismo de arrependimento abriu as portas para o Messias (Mateus 3:14; Lucas 3:16; João 1:33). Mas o Novo Testamento fala também de um “batismo” que não é apenas rito, é união: somos “batizados em Cristo Jesus” na sua morte e ressurreição (Romanos 6:3–4), “sepultados com ele no batismo” (Colossenses 2:12), pedindo “não a remoção da imundícia da carne, mas a boa consciência para com Deus” (1 Pedro 3:20–21). Por isso os apóstolos batizam os que creem (Atos 2:38, 41; 8:12–13, 36–38; 10:47; 16:15, 33; 19:2–5) e confessam uma igreja inserida no corpo pelo Espírito: “em um Espírito todos fomos batizados em um só corpo” (1 Coríntios 12:13). Há ainda o uso metafórico do termo: Jesus fala do “batismo com que tenho de ser batizado” (Marcos 10:38–39; Lucas 12:50) referindo-se à sua paixão. Tudo isso cabe no plural de Hebreus: as lavagens da antiga aliança, o batismo de João, o batismo cristão que nos une a Cristo, e até o batismo de sofrimentos do próprio Senhor. O ponto do autor, porém, é este: entendidas essas águas — didachē (“ensino”) —, não fiquemos eternamente na beira do tanque: avancemos para a vida que o batismo significa.

A “imposição de mãos” — epithesis cheirōn — é outra peça de alicerce. No Antigo Testamento, impor as mãos era sinal de transferência e comissionamento: Moisés impõe as mãos sobre Josué para investí-lo no ofício (Números 27:18–23), e o gesto se torna rito de transmissão pública. No Novo Testamento, a igreja ora e impõe as mãos tanto para ordenar/comissionar quanto como sinal de ministério do Espírito. Os apóstolos impõem as mãos e os samaritanos recebem o Espírito Santo (Atos 8:14–18); a comunidade em Antioquia impõe as mãos sobre Barnabé e Saulo para enviá-los (Atos 13:3); Paulo impõe as mãos e, em Éfeso, os discípulos recebem o Espírito (Atos 19:6). Os diáconos são apresentados com imposição de mãos (Atos 6:6). Daí as advertências pastorais: “a ninguém imponhas precipitadamente as mãos” (1 Timóteo 5:22) e “reaviva o dom de Deus que há em ti, pela imposição das minhas mãos” (2 Timóteo 1:6). Para Hebreus, esse gesto pertence ao fundamento: a igreja sabe como comissiona, quem comissiona, por que comissiona — e, sabendo, segue adiante para exercer o dom e a missão que o gesto consagra.

A “ressurreição dos mortos” — anastasis nekrōn — é o coração pulsante da esperança bíblica. Os profetas já a cantavam: “os teus mortos viverão” (Isaías 26:19); o vale de ossos secos, em Ezequiel 37, dramatiza a restauração; Daniel vê muitos que “ressuscitarão: uns para a vida eterna, e outros para vergonha e desprezo eterno” (Daniel 12:2). Jesus corrige os saduceus e ensina que “Deus não é Deus de mortos, mas de vivos” (Mateus 22:23–32), promete “ressurreição dos justos” (Lucas 14:14), diz: “vem a hora em que todos os que estão nos sepulcros ouvirão a sua voz…” (João 5:29), e declara a Marta: “Eu sou a ressurreição e a vida” (João 11:24–25). A igreja apostólica viveu dessa certeza: anunciava em Jerusalém “em Jesus a ressurreição” (Atos 4:2), discutiu-a no Areópago (Atos 17:18, 31–32), fez dela o eixo da defesa de Paulo (Atos 23:6; 24:15, 21; 26:8). Paulo escreveu um capítulo inteiro para não deixar dúvidas (1 Coríntios 15:13–57): Cristo como “primícias”, os nossos corpos “transformados” (Filipenses 3:21), os que dormem “ressuscitarão primeiro” (1 Tessalonicenses 4:14–18). Ao mesmo tempo, alertou contra heresias que “dizem que a ressurreição já aconteceu” (2 Timóteo 2:18): negar o futuro é furar o fundamento. Hebreus lista a anastasis nekrōn entre os rudimentos justamente para nos lembrar: esse alicerce está posto — não para ser eternamente discutido, mas para sustentar a perseverança, o culto e a ética de quem crê que a morte foi vencida.

Por fim, o “juízo eterno” — krima/krisis aiōnios; em Hebreus 6:2, krimatos aiōniou (“juízo/julgamento eterno”). A Bíblia inteira converge aqui: “Deus há de trazer a juízo toda obra” (Eclesiastes 12:14); o Filho do Homem “separará” como pastor separa ovelhas de bodes (Mateus 25:31–46); Deus “estabeleceu um dia em que há de julgar o mundo… pelo Homem” (Atos 17:31), e Félix treme quando Paulo discorre sobre “justiça, domínio próprio e o juízo vindouro” (Atos 24:25). Paulo insiste que “segundo o meu evangelho, Deus há de julgar os segredos dos homens” (Romanos 2:5–10, 16) e que “todos devemos comparecer perante o tribunal de Cristo” (2 Coríntios 5:10). Pedro fala de “dia de juízo e de perdição dos homens ímpios” (2 Pedro 3:7). Judas antevê o Senhor vindo “com as suas santas miríades para executar juízo” (Judas 1:14–15). João vê o trono branco e os livros abertos (Apocalipse 20:10–15). A própria carta aos Hebreus já cravou a sentença: “aos homens está ordenado morrerem uma vez, vindo depois o juízo” (Hebreus 9:27). Se isso é fundamento, é porque o cristão vive na luz dessa certeza: presta contas, perdoa como será perdoado, trabalha como quem será avaliado, consola-se como quem sabe que a Justiça final não falhará.

Assim, Hebreus 6:2 não é uma lista fria; é o esqueleto vivo do discipulado. Didachē baptismōn (“doutrina de batismos”): deixar a água nos levar à vida que ela significa. Epithesis cheirōn (“imposição de mãos”): reconhecer o chamado, receber o envio e servir no poder do Espírito. Anastasis nekrōn (“ressurreição”): ancorar toda esperança no Cristo que vencerá a morte em nós. Krima/krisis aiōnia (“juízo eterno”): viver sob o olhar do Rei que julga com verdade. Com esses quatro alicerces bem assentados ao lado das duas sapatas do versículo anterior — metanoia apo nekrōn ergōn (“arrependimento de obras mortas”) e pistis epi theon (“fé em Deus”) —, o chamado de 6:1 ganha corpo: ergam a casa; cresçam até a maturidade (teleiotēs), porque o fundamento já está firme.

Hebreus 6:3 é a ponte humilde entre o apelo à maturidade (6:1–2) e a advertência solene (6:4 em diante: o famoso “é impossível…”). “E isto faremos, se Deus permitir.” No grego transliterado, ouve-se a cadência da sujeição: kai touto poiēsomen, eanepitrepē ho theos (“e isto faremos, se Deus permitir”). O autor não promete subir sozinho a ladeira da teleiotēs (tradução: “maturidade/perfeição”); ele confessa que progredir é graça concedida. É o mesmo espírito que respira em Atos 18:21 (“voltarei a vós, se Deus quiser”), em Romanos 15:32 (“para que, pela vontade de Deus, eu chegue a vós com alegria”), em 1 Coríntios 4:19 (“irei em breve, se o Senhor quiser”) e 1 Coríntios 16:7 (“ficarei convosco algum tempo, se o Senhor permitir”), e que Tiago converteu em regra de bolso: “se o Senhor quiser, viveremos e faremos isto ou aquilo” (Tiago 4:15). Em Hebreus, essa humildade tem um timbre a mais: “se Deus permitir” introduz a gravidade do que vem a seguir. Deus permite avanço; mas Deus também deixa alguns ficarem presos ao próprio endurecimento — e é por isso que, logo depois, soa o “é impossível”.

Chegamos, então, a Hebreus 6:4: “Porque é impossível…” — adýnaton gar (“de fato impossível”). O autor abre uma sentença longa (que seguirá até o v.6), mas já aqui ergue o pórtico: há um tipo de apostasia que não se remenda com tinta nova sobre parede velha; é impossível refazer o alicerce enquanto o coração escolhe ruir. Essa palavra forte dialoga com toda a tradição bíblica de alertas: Hebreus 10:26–29 falará do que “pisa o Filho de Deus” e “insulta o Espírito da graça”; Hebreus 12:15–17 lembrará Esaú, que depois chorou, mas “não achou lugar de arrependimento”. Jesus havia dito que “sal” que perdeu o sabor “para nada mais presta” (Mateus 5:13); que quem blasfema contra o Espírito não encontra “perdão” (Mateus 12:31–32); que o espírito que volta a uma casa varrida traz sete piores e “o último estado fica pior que o primeiro” (Mateus 12:45; Lucas 11:24–26); que o ramo que não permanece nele é “lançado fora… e queimado” (João 15:6). Pedro pinta o mesmo quadro: quem, depois de ter “escapado das corrupções”, volta a elas, “o seu último estado tornou-se pior do que o primeiro” (2 Pedro 2:20–22). João admite que há “pecado para morte” pelo qual nem se pede (1 João 5:16). E, mesmo assim, a Bíblia mantém uma fresta de súplica: “talvez Deus lhes conceda arrependimento” (2 Timóteo 2:25)—o que só faz a frase adýnaton gar (“impossível”) soar como deve: um choque à autossuficiência, não licença para o desespero leviano. O Deus que permite (6:3) é o Deus que também julga uma apostasia que zomba da luz recebida.

Quem são, então, “aqueles” de que o autor fala? Ele descreve quatro privilégios (que o v.5 completará), começando assim: “os que uma vez foram iluminados” — tous hapax phōtisthentas (“os que uma vez foram iluminados”). A palavra hapax destaca um impacto real; phōtizō fala da luz que chega. A própria carta usa esse verbo para narrar o passado dos leitores: “lembrai-vos dos dias anteriores, depois de serdes iluminados” (Hebreus 10:32). A Bíblia conhece esse “abrir de olhos”: Balaão é apresentado como “o homem de olhos abertos… que vê” (Números 24:3, 15–16); mas ver não é amar — e essa é a tragédia. O evangelho não é sombra: ele ilumina; mas quem, iluminado, decide voltar-se contra a luz, ou tratá-la como consumo, brinca com fogo.

O segundo traço: “provando o dom celestial” — geusamenous tēs dōreas tēs epouraniou (“tendo provado a dádiva do alto”). Geuomai é verbo de paladar: “provai e vede que o Senhor é bom” (Salmos 34:8); Jó pergunta se “o paladar não prova as comidas?” (Jó 6:6). O dom é chamado “celestial” porque desce do Pai: “um homem nada pode receber, se do céu não lhe for dado” (João 3:27); “se conhecesses o dom de Deus…” (João 4:10); “o verdadeiro pão do céu é o que meu Pai dá” (João 6:32); “toda boa dádiva vem do alto” (Tiago 1:17–18). A igreja viveu cercada por esses dons: “recebestes o dom do Espírito Santo” (Atos 10:45; 11:17); Paulo quer “comunicar algum dom espiritual” (Romanos 1:11); diz que a graça foi dada “segundo a medida do dom de Cristo” (Efésios 4:7); lembra a Timóteo “o dom que há em ti” (1 Timóteo 4:14). Mas o Novo Testamento não cansa de avisar: provar não é o mesmo que pertencer. Gente pode dizer “Senhor, Senhor”, “profetizamos… expelimos demônios… fizemos muitos milagres” — e ouvir: “nunca vos conheci” (Mateus 7:21–22). Os setenta voltaram exultando: “até os demônios se nos submetem!”; Jesus respondeu: “não vos alegreis porque os espíritos se vos submetem; alegrai-vos antes por estarem os vossos nomes escritos nos céus” (Lucas 10:19–20). Dons testemunham; não substituem novo nascimento e perseverança.

O terceiro traço completa a imagem: “tornando-se participantes do Espírito Santo” — metochous genēthentas pneumatos hagiou (“tendo sido feitos participantes do Espírito Santo”). Metochos é palavra forte em Hebreus: sermos “participantes de Cristo” (Hebreus 3:14) é colar a vida nele; aqui, o autor fala de participação nas operações do Espírito — exatamente o que ele já havia lembrado: Deus testificou ao evangelho com “distribuições do Espírito Santo” — merismois pneumatos hagiou (Hebreus 2:4, tradução: “divisões/distribuições do Espírito Santo”). Atos 15:8 diz que Deus deu testemunho “dando a eles o Espírito Santo”; Gálatas 3:2, 5 pergunta se recebemos o Espírito “pelas obras da lei” ou “pela audição da fé” — e afirma que Aquele que “vos concede o Espírito” opera entre vós. Ou seja: houve luz, houve gosto do dom, houve participação em operações do Espírito. E, no entanto, o autor pode falar em adýnaton (“impossível”) por causa do que o v.6 explicará: uma rejeição deliberada e perseverante ao próprio Cristo, que transforma toda essa experiência em acusação.

É aqui que as demais passagens tremem juntas. “Se pecarmos voluntariamente, depois de termos recebido o conhecimento da verdade, já não resta sacrifício” (Hebreus 10:26–29): a linguagem é paralela a “iluminados… provado… participantes”. Esaú chorou, mas “não encontrou lugar de arrependimento” (Hebreus 12:17): não porque Deus brinque de esconder perdão, mas porque ele endureceu o coração ao ponto de não querer o que dizia procurar. Jesus, como vimos, descreve a casa varrida, mas vazia (Mateus 12:45; Lucas 11:26); o ramo não permanecendo seca (João 15:6); Pedro vê o cão que volta ao vômito (2 Pedro 2:20–22); João fala no pecado para morte (1 João 5:16). E Paulo, realista, anota que Alexandre “me causou muitos males” (2 Timóteo 4:14): nem todos os que andam por perto andam com Cristo. Tudo isso não diminui o poder da graça; expõe a seriedade da resposta.

Voltemos, então, ao costado entre 6:3 e 6:4. Eanepitrepē ho theos (“se Deus permitir”) mantém a igreja de joelhos; adýnaton gar (“é impossível”) mantém-na sóbria. Phōtisthentas (“iluminados”), geusamenous (“tendo provado”), dōrea epouranios (“dom do alto”), metochous pneumatos hagiou (“participantes do Espírito Santo”) — tudo isso é real e glorioso. Mas a casa não se sustenta com luz sem perseverança, com gosto sem entrega, com dons sem discipulado, com participação de fenômenos sem permanecer no Filho. O mesmo Deus que permite que avancemos à maturidade (6:1–3) é o Deus que nos avisa: brincar com a luz até cansar dela é caminhar para uma terra onde o arrependimento já não é procurado como arrependimento, mas apenas como alívio — e isso, diz o texto, é impossível de fabricar. A única estrada aberta é a antiga e sempre nova: permanecer em Cristo, até o fim.

Hebreus 6:5 descreve pessoas que “provaram a boa palavra de Deus e os poderes do mundo vindouro”. A frase grega desnuda o quadro: kai kalon geusamenous theou rhēma, dynameis te mellontos aiōnos — “e tendo provado a boa palavra de Deus e os poderes do século que há de vir”. O verbo geuomai (tradução: “provar, saborear”) indica contato real, sensível; não é rumor de cozinha, é gosto na língua. Por isso a Escritura inteira gosta dessa metáfora: “provai e vede que o Senhor é bom” (Salmos 34:8); “há sabor… se o alimento não tiver sal?” (Jó 6:6). Mas Hebreus faz aqui um contraste dramático com as parábolas do solo: há gente que “recebe a palavra com alegria”, mas por pouco tempo; não tem raiz, suporta só por algum tempo, e logo tropeça quando vem a tribulação (Mateus 13:20–21; Marcos 4:16–17; Lucas 8:13). Até Herodes “ouvia João de boa mente” (Marcos 6:20), e nem por isso se converteu. Em outras palavras: geusamenous (“tendo provado”) pode descrever um encontro poderoso, com gosto de céu na boca — e ainda assim não significar perseverança. Pedro usa a mesma linguagem para os santos: “se é que já provastes que o Senhor é bom” (1 Pedro 2:3); mas também avisa que há os que “escaparam das contaminações do mundo, conhecendo o Senhor, e se deixam enredar outra vez” (2 Pedro 2:20). O “provar” abre uma porta; não garante que alguém se sente à mesa.

O segundo meio-verso é igualmente contundente: dynameis… mellontos aiōnos — “os poderes do século vindouro”. Hebreus já havia falado desse “mundo por vir” (ho mellōn aiōn, Hebreus 2:5), isto é, a ordem final de Deus sob o domínio do Filho. Quando o evangelho irrompe em curas, libertações, dons e sinais, não se trata de fogos de artifício; são amostras grátis do Reino que vem. Gente viu e sentiu esses poderes — exatamente o que Hebreus 2:4 chamou de “distribuições do Espírito Santo”, merismois pneumatos hagiou (tradução: “partilhas do Espírito Santo”). É possível, então, saborear o futuro no presente e, ainda assim, voltar ao velho século (Gálatas 1:4 chama-o de “presente século mau”). O autor de Hebreus, portanto, não descreve curiosos de feira; descreve pessoas devidamente expostas: provaram a Palavra, provaram o Dom, participaram de operações do Espírito, sentiram no corpo os poderes do amanhã.

É neste ponto que o versículo 6 cai como uma sentença cirúrgica: “e tendo caído, é impossível renová-los outra vez para arrependimento, pois estão crucificando outra vez para si mesmos o Filho de Deus e o expondo à vergonha pública.” Escute em grego e note o fio dos verbos: kai parapesontas, palin anakainizein eis metanoian, anastaurountas heautois ton huion tou theou kai paradeigmatizontas — “e tendo caído (parapesontas), [é impossível] renovar novamente (palin anakainizein) para arrependimento (eis metanoian), enquanto crucificam novamente (anastaurountas) para si o Filho de Deus e o expõem (paradeigmatizontas) ao escárnio.” Repare em duas coisas. Primeiro, palin anakainizein junta “de novo” com “renovar”: não se trata de trocar de igreja ou repetir ritos (e a fé confessa “um só batismo”, Efésios 4:5), mas de voltar ao ponto interior onde Deus faz novas todas as coisas (Tito 3:5 fala da “renovação do Espírito”; Colossenses 3:10 de um “homem renovado”). Segundo, os particípios anastaurountas e paradeigmatizontas estão no presente: “crucificando” e “expondo” como ação atual e contínua. O ponto do autor é este: enquanto alguém persiste em repudiar publicamente o Filho, transformando-o em motivo de escárnio, não há “renovação para arrependimento” que se possa fabricar; não é que o sangue de Cristo seja fraco — é que o sujeito não quer aquilo que o sangue oferece.

Toda a Escritura se alinha detrás dessa afirmação. Quando Davi clama “cria em mim… e renova em mim um espírito reto” (Salmos 51:10), ele pede exatamente anakainizein por dentro — mas o arrependimento ali é quebrantamento e verdade, não teatro. Isaías adverte que os rebeldes “perecerão juntamente” (Isaías 1:28): não porque Deus seja avaro, mas porque o endurecimento toma a casa inteira. Paulo manda o pastor “corrigir com mansidão… na expectativa de que Deus conceda o arrependimento” (2 Timóteo 2:25): arrependimento é dom; e a recusa deliberada do Filho fecha a boca para pedir o dom. Hebreus vai mais longe ao explicar o porquê: “se pecarmos voluntariamente… já não resta sacrifício” (Hebreus 10:26–29); e lembra Esaú que, depois, chorou — mas “não achou lugar de arrependimento” (Hebreus 12:17). Jesus, nos Evangelhos, pinta a mesma gravidade: o sal insípido “para nada mais presta” (Mateus 5:13); quem blasfema contra o Espírito “não tem perdão” (Mateus 12:31–32); o espírito que volta com sete piores deixa o último estado pior que o primeiro (Mateus 12:45; Lucas 11:26); o ramo que não permanece é “lançado fora… e queimado” (João 15:6). Pedro chama isso de cachorro que “volta ao vômito” (2 Pedro 2:20–22). João admite o “pecado para morte” (1 João 5:16). Em todos os quadros, o problema não é falta de luz; é amar as trevas depois de ver a luz.

O coração do versículo está nesta frase: anastaurountas heautois ton huion tou theou — “crucificando novamente para si o Filho de Deus”. Trata-se de repudiar o Cristo como Cristo, declarar sua cruz inútil, alinhar-se à turba que passou diante dele “meneando a cabeça” (Mateus 27:39–44), “zombando” (Marcos 15:29–32), “escarnacendo” (Lucas 23:35–39). É por isso que Hebreus lembrará, adiante, que Jesus “suportou a cruz, desprezando a vergonha” — kataphronēsas tēs aischynēs (Hebreus 12:2, tradução: “desprezando a humilhação”). O verbo aqui é outro: paradeigmatizō (“expor ao opróbrio”), o mesmo espírito de “publicar” a vergonha de alguém em praça pública. O contraste com a profecia é gritante: o dia de Zacarias virá quando “olharão para mim, a quem traspassaram” e haverá choro e graça (Zacarias 12:10–14) — olhar com arrependimento. O apóstata de Hebreus 6 faz o oposto: olha para o Traspassado e ri. Enquanto isso durar, palin anakainizein eis metanoian (“renovar de novo para arrependimento”) é impossível — adýnaton — porque arrependimento sem honrar o Filho é apenas remorso querendo alívio.

Algumas “notas de rodapé” bíblicas ajudam a evitar mal-entendidos pastorais. Primeiro, esse texto não autoriza uma política de desespero: se há quebra do pecado e honra a Cristo, a porta está aberta, porque o próprio Deus é quem renova (Tito 3:5; Colossenses 3:10). Segundo, ele desautoriza imaginar “renovação” como repetição de ritos: a fé não coleciona batismos (Efésios 4:5), nem lança sempre de novo o mesmo alicerce (Hebreus 6:1). Terceiro, ele expõe o perigo de trivializar o santo: “não deis as coisas santas aos cães” (Mateus 7:6); zombar do Filho em praça pública tem consequências. Quarto, ele mostra o fim da via dupla: “o seu fim é perdição” (Filipenses 3:19), enquanto os que não retrocedem guardam a alma (Hebreus 10:39). Por fim, ele aponta para a grande cena final: “verão aquele a quem traspassaram” (Apocalipse 1:7), e a cidade onde o Senhor foi “crucificado” (Apocalipse 11:8) se torna lembrança eterna de que expor o Cordeiro ao escárnio não é ato sem resposta.

Em resumo, Hebreus 6:5–6 retrata gente verdadeiramente exposta à graça: geusamenous (tradução: “que provaram”) o rhēma (tradução: “palavra”) de Deus; tocaram dynameis mellontos aiōnos (tradução: “poderes do século vindouro”). Mas, tendo parapesontas (tradução: “caído”) por repúdio ativo, persistem em anastaurountas… kai paradeigmatizontas (tradução: “crucificar de novo… e expor à vergonha”) o Filho. Enquanto essa postura dura, palin anakainizein eis metanoian (tradução: “renovar de novo para arrependimento”) é adýnaton (tradução: “impossível”). A pregação de Hebreus, contudo, não termina na impossibilidade; ela nos pressiona para o único lugar onde a renovação existe de fato: permanecer no Filho, olhar para o Traspassado com choro e fé, e deixar que o Espírito renove por dentro até o fim.

Hebreus 6:7 é a parábola agrícola que traduz, em imagens de chuva e colheita, tudo o que a carta acabou de dizer sobre luz recebida, dons provados e o perigo de endurecer (6:4–6). O autor escreve: gē gar hē piousa ton ep’ autēs erchomenon pollakis hyeton, kai tiktousa botanēn eutheton ekeinois di’ hous kai geōrgeitai, metalambanei eulogias apo tou theou — “porque a terra que bebe a chuva que muitas vezes chega sobre ela, e produz erva apropriada para aqueles por causa dos quais também é cultivada, recebe bênção da parte de Deus.” Cada termo é escolhido a dedo. Piousa (“que bebe”) e hyeton (“chuva”) evocam o dom que vem de cima; pollakis (“muitas vezes”) sublinha a repetição das visitas da graça; tiktousa botanēn eutheton (“produz erva adequada”) fala de fruto útil, não apenas de crescimento vegetativo; ekeinois di’ hous… geōrgeitai pode ser entendido como “para aqueles por causa de quem é cultivada” ou, no tom antigo da KJ, “por quem é lavrada”: a terra existe para servir aos que a trabalham, e é trabalhada justamente para tirar dela alimento — a ambiguidade (di’ hous: “por quem/para quem”) reforça a ideia de vocação do solo; e metalambanei eulogias (“recebe bênção”) conclui: quando a graça é absorbida e converte-se em fruto útil, Deus abençoa.

A Bíblia inteira já havia preparado nosso ouvido para esse retrato. As bênçãos da aliança, em Deuteronômio 28:11–12, começam no céu e descem para o chão: o Senhor abre “o seu bom tesouro, o céu, para dar chuva” e faz abundar o fruto da terra; é a versão legislativa do nosso hyeton (“chuva”) e eulogias (“bênção”). Os salmos cantam o mesmo ciclo: “tu visitas a terra e a regas… enches de bênçãos” (Salmo 65:9–13); “das tuas câmaras sacias os montes; a terra fica farta do fruto das tuas obras” (Salmo 104:11–13). Isaías 55 junta a chave hermenêutica: “assim como descem a chuva e a neve, e não voltam sem regar e fazer produzir, assim será a minha palavra” (Isaías 55:10–11). Em outras palavras, o hyeton (“chuva”) de Hebreus 6:7 é figura do rhēma (“palavra”) que acabamos de “provar” (6:5): a água que cai é a revelação e a graça que visitam, muitas vezes (pollakis), o campo do coração. Quando essa palavra encontra boa terra, a paisagem vira festa — “os montes e os outeiros romperão em cântico… no lugar do espinheiro brotará o cipreste” (Isaías 55:12–13) —, exatamente o contraste que Hebreus fará no verso seguinte (6:8) entre erva útil e espinhos.

Joel 2:21–26, falando ao povo quebrado, repete a mesma música em tom de restauração: “não temas, terra… o Senhor fez grandes coisas… Ele vos dará a chuva… e comereis abundantemente e vos fartareis.” A terra que bebe (piousa, “que bebe”) volta a dar; é a imagem positiva de 6:7. Tiago 5:7 aplica pastoralmente: sede pacientes “como o lavrador que aguarda o precioso fruto da terra, esperando por ele até que receba a chuva temporã e serôdia.” Hebreus usa a mesma economia: Deus manda a chuva (hyeton), a terra bebe (piousa), o tempo prova (pollakis, “muitas vezes”) o coração, e o fruto aparece — ou não.

O meio do versículo dá ênfase ao que Deus espera encontrar: tiktousa botanēn eutheton — “produzindo erva apropriada”. O Antigo Testamento havia ensinado que o mundo foi criado para frutificar (Gênesis 1:11) e que, sem chuva, “não havia homem para lavrar a terra” (Gênesis 2:5). Deuteronômio 11:11 chamava a terra de Canaã de “terra de montes e vales que bebe a chuva dos céus” — outra vez, o mesmo verbo de Hebreus, agora em prosa mosaica. “Minha doutrina cairá como chuva” (Deuteronômio 32:2): a palavra é água que, quando absorvida, deve virar vida. Por isso a Bíblia promete “chuva no seu tempo; haverá chuvas de bênçãos” (Ezequiel 34:26), “derramarei água sobre o sedento” (Isaías 44:3), “semeai para vós em justiça… porque é tempo de buscar o Senhor, até que chova a justiça” (Oséias 10:12), “abri as janelas… e derramarei bênção sem medida” (Malaquias 3:10). É exatamente isso que Hebreus chama de metalambanei eulogias (“recebe bênção”): o campo que absorve e responde.

A mesma linha atravessa as narrativas: Rebeca “cheira” o campo de Jacó e diz: “o cheiro do meu filho é como o cheiro do campo que o Senhor abençoou” (Gênesis 27:27); Levítico 25:21 promete: “ordenarei a minha bênção” no ano sabático para que o solo renda. “Ele receberá bênção do Senhor” (Salmo 24:5); “rega os seus sulcos… a abençoas” (Salmo 65:10); “voltará trazendo os seus feixes” (Salmo 126:6): a terra que bebe (Hebreus 6:7) entrega. Por isso, quando Jesus procura fruto e não encontra, a figueira seca (Mateus 21:19): o símbolo é duro, mas é o mesmo do nosso texto — chuva sem fruto é convocação para juízo (que 6:8 explicará).

A parábola do semeador coloca todos esses fios no patamar da consciência. A “boa terra” ouve a palavra, entende e produz — “a cento, a sessenta e a trinta” (Mateus 13:23). Outras terras recebem com alegria, mas por pouco tempo (Mateus 13:20–21); noutras, os espinhos (cuidados, riquezas, deleites) sufocam e tornam a palavra infrutífera (Marcos 4:19; Lucas 8:7). Hebreus 6:7–8 é, na prática, a mesma parábola contada em prosa teológica: quando a terra bebe muitas vezes (pollakis) as chuvas da graça e, ainda assim, entrega espinhos e abrolhos, o fim não é bênção, é queima. Por contraste, a terra que bebe e serve — eutheton… ekeinois di’ hous geōrgeitai (“adequada para aqueles por causa de quem é cultivada”) — “recebe bênção de Deus”.

Até os “recíprocos” arrematam a leitura. O pedido de Acsa por “fontes d’água” (Juízes 1:15) ilustra o desejo certo: terra sequiosa que pede água. O discurso de Deus a Jó lembra que Ele faz chover “sobre um deserto onde não há homem” (Jó 38:26): a graça precede e provoca resposta. Jesus declara que o ramo que não dá fruto é cortado (João 15:2) e o que não permanece é lançado fora e queimado (João 15:6): o versículo 7 prepara o elogio; o versículo 8 mostrará o outro desfecho. João Batista exige “frutos dignos de arrependimento” (Lucas 3:8): não basta beber, é preciso frutificar. E quando o Senhor descreve os que se perdem entre espinhos, ele está oferecendo o glossário para 6:8; nosso versículo 7 é, então, o lado luminoso: a boa terra que acolhe o céu e entrega pão.

Tudo converge, portanto, para um apelo simples e profundo. Deus faz descer a chuva (hyeton, “chuva”; Isaías 55:10), muitas vezes (pollakis, “muitas vezes”). Ele fala a sua palavra como água que impregna. Ele cultiva (geōrgeitai, “é trabalhada”) o campo do nosso coração “por causa” de alguém: para que sirvamos “aqueles por quem também é lavrada” — a igreja, os vizinhos, o pobre, o próximo. Se bebemos (piousa, “que bebe”) e produzimos (tiktousa botanēn eutheton, “produz erva apropriada”), “recebemos bênção de Deus” (metalambanei eulogias, “recebe bênção”) — a bênção que a lei prometeu, os salmos cantaram, os profetas figuraram e o evangelho cumpra. E, justamente porque é assim, o verso seguinte pode dizer sem hesitar o contrário. Entre um e outro, Hebreus 6:7 nos chama a ser terra boa: absorver o céu, devolver em fruto, e viver debaixo da bênção que Deus ama derramar.

Hebreus 6:8 acende a face sombria da parábola agrícola do versículo anterior: “mas, se produz espinhos e abrolhos, é reprovada e perto da maldição; e o seu fim é para queima.” O grego, em transliteração, é incisivo: ekpherousa de akanthas kai tribolous adokimos kai kataras engys, hēs to telos eis kausin — “trazendo à luz (ekpherousa, ‘dando à luz/produzindo’) espinhos e abrolhos (akanthas kai tribolous), [é] reprovada (adokimos, ‘desaprovada/rejeitada’), perto de maldição (kataras engys), cujo fim (to telos) é para queima (eis kausin, ‘para fogo/queima’).” O quadro é simples e severo: a mesma chuva do céu (6:7) pode encontrar dois solos; quando o coração, em vez de erva útil, devolve espinho, ele se qualifica com três selos — adokimos (reprovado), kataras engys (à beira de um veredito), telos… eis kausin (um desfecho incinerado).

Essa topografia de espinhos nasce no Éden. Ao ouvir a sentença sobre Adão, a terra “é maldita” por causa do homem e “produzirá espinhos e abrolhos” (Gênesis 3:17–18): eis akanthas kai tribolous em sua primeira aparição — a paisagem moral do mundo decaído. Quando Caim derrama sangue, ele mesmo é declarado “maldito da terra” e a terra “não lhe dará a sua força” (Gênesis 4:11): o solo que não entrega fruto à altura do céu é sinal de juízo. Lameque, ao nomear Noé, suspira por “consolo de nossas mãos cansadas por causa da terra que o Senhor amaldiçoou” (Gênesis 5:29): ansia-se por uma restauração que reverta o espinho. Deuteronômio volta ao tema na linguagem das maldições da aliança: quando Deus “arranca a nação” do solo por sua obstinação, a terra fica como um deserto de sal (Deuteronômio 29:28): é a geografia da kataras engys (“perto da maldição”). Jó, em sua auto-defesa, sabe que, se houver culpa escondida, “em vez de trigo nasça espinheiro” (Jó 31:40): fruto denuncia raiz. Os Salmos põem isso em poesia: “terra frutífera convertida em estéril por causa da maldade” (Salmos 107:34). Isaías canta a canção da vinha (Isaías 5:1–7): Deus cercou, limpou, esperou uvas boas, mas ela deu uvas bravas; o veredito? “farei que cresçam espinheiros e cardos”. Jeremias desenha o homem que confia na carne como arbusto ressequido no deserto (Jeremias 17:6) e explica a lógica da desolação: quando a iniquidade “chega ao ponto” de Deus não mais suportar, a terra “torna-se desolação” (Jeremias 44:22). Jesus encena esse drama na figueira: não achando fruto, diz “nunca mais nasça fruto de ti!”, e ela seca (Marcos 11:14, 21); e, na parábola da figueira estéril, dá-se um prazo para cavar e adubar — se não, “corta-a” (Lucas 13:7–9). Hebreus 12:17 lembra Esaú, que vendeu a primogenitura e, depois, ainda que buscasse com lágrimas, “não achou lugar de arrependimento”: é a biografia de um solo que, tocado mil vezes, só entrega abrolho.

Quando o versículo diz “cujo fim é para queima” — hēs to telos eis kausin —, ele se põe na fila de uma longa tradição bíblica que descreve o destino do inútil infrutífero como lenha. Isaías pinta a cidade desolada: vazia, “seca”, “mulheres a queimar” seus ramos, porque “é um povo sem entendimento” (Isaías 27:10–11): falta de discernimento moral vira madeira seca. Ezequiel 15:2–7 pergunta: que utilidade tem a madeira da videira para se fazer móveis? Nenhuma; serve para fogo — imagem crua do ramo que não dá fruto. Ainda Ezequiel, em 20:47, anuncia contra a floresta do Sul: “o fogo consumirá todo madeiro verde e todo madeiro seco”; a escatologia de Malaquias 4:1 sobe o tom: “o dia vem, ardendo como forno”; João Batista avisa: “toda árvore que não dá bom fruto é cortada e lançada no fogo” (Mateus 3:10), que Jesus repete no Sermão: “toda árvore que não dá bom fruto é cortada e lançada no fogo” (Mateus 7:19). Na cena do juízo, os “bodes” ouvem “apartai-vos para o fogo eterno” (Mateus 25:41); no Cenáculo, o Senhor é ainda mais preciso: “se alguém não permanece em mim, é lançado fora como o ramo, seca, e os colhem, lançam no fogo e ardem” (João 15:6). Hebreus 10:27 falará do “ardor de fogo” que há de devorar os adversários; o Apocalipse fecha o livro com o lago de fogo para os nomes não escritos (Apocalipse 20:15). Tudo isso não é prazer mórbido pelo castigo; é a gramática do telos (“fim”): o que se recusa ao fruto consome-se como combustível.

Os ecos “recíprocos” completam o relevo. Davi, no fim da vida, descreve os “iníquos” como “espinhos” que “se tocam com ferro e com a haste da lança” e “se queimam com fogo” (2 Samuel 23:7): a mesma botânica moral de Hebreus 6:8. Deus lembra a Jó que faz chover até “no deserto, onde não há homem” (Jó 38:26): graça abundante — o problema não é falta de chuva; é rejeição do céu. Salomão observa um campo “cheio de espinhos” e “cercado de urtigas” (Provérbios 24:31): preguiça espiritual produz matagal. Isaías 7:23 avisa que terras outrora boas “se tornarão em espinheiral”; 9:18 diz que a “impiedade queima como fogo” e devora os espinheiros; 27:4, Deus pergunta: “Quem me dará espinhos e abrolhos na guerra? Passarei por eles, os queimarei juntos.” Ezequiel 15:4 reitera: o sarmento “é lançado ao fogo para ser consumido”. Miqueias 7:4 chama até “o melhor” de seu tempo de “espinheiro”: sociedade inteira matagal. Malaquias 4:6 fecha o cânon profético com o risco de “vir e ferir a terra com maldição”: kataras engys de Hebreus 6:8 em uníssono. Jesus, de novo, à figueira sem fruto: “Nunca mais cresça fruto em ti” (Mateus 21:19), e mais adiante o “servo inútil” é “lançado nas trevas” (Mateus 25:30): linguagens irmãs de reprovação. Na parábola do semeador, “os espinhos” — “cuidados do mundo, engano das riquezas, desejos de outras coisas” — “sufocam a palavra e fica infrutífera” (Marcos 4:19): Hebreus 6:8 nos dá o que vem depois do sufocamento — adokimos e kausis. A mesma figueira de Marcos 11:20 amanhece seca das raízes; João Batista chama a produzir “frutos dignos de arrependimento” (Lucas 3:8); Lucas 8:7 repete que os “espinhos sufocam”; Lucas 13:9 encerra o prazo: “se der fruto, bem; se não, corta-a”. E quando Jesus, a caminho da cruz, diz: “Se ao lenho verde fazem isto, que se fará ao seco?” (Lucas 23:31), ele crava a lógica do telos: secura é matéria de incêndio.

Paulo pergunta aos romanos: “Que fruto tínheis, então, das coisas de que agora vos envergonhais? porque o fim delas é morte” (Romanos 6:21): é a sintaxe de to telos eis kausin em prosa soteriológica. Aos coríntios, manda: “examinai-vos… ou não vos conheceis a vós mesmos, que Jesus Cristo está em vós? Se não, já estais reprovados” — adokimoi (2 Coríntios 13:5, “reprovados”): o adjetivo é o mesmo de Hebreus 6:8 (adokimos, “reprovado”). E aos Tessalonicenses, descreve inimigos do Evangelho sobre os quais “a ira… veio sobre eles finalmente” (1 Tessalonicenses 2:16): o plural da kausis se realiza na história.

Note, então, como todas as peças se encaixam. Akanthas kai tribolous (“espinhos e abrolhos”) liga Hebreus 6:8 à maldição do solo (Gênesis 3) e à canção da vinha (Isaías 5); adokimos (“reprovada”) conversa com o exame apostólico (2 Coríntios 13:5) e com Esaú (Hebreus 12:17); kataras engys (“perto da maldição”) soa com as maldições da aliança (Deuteronômio 29; Malaquias 4) e com a figueira seca (Marcos 11; Mateus 21); to telos eis kausin (“o fim é para queima”) reúne a madeira inútil da videira de Ezequiel 15, as árvores infrutíferas cortadas e lançadas no fogo (Mateus 3:10; 7:19), o ramo que não permanece (João 15:6) e o grande dia que arde como forno (Malaquias 4:1), culminando no juízo final (Apocalipse 20:15). Entre 6:7 e 6:8, Hebreus está apenas contando outra vez a parábola do semeador: a mesma chuva cai “muitas vezes”; a boa terra dá erva útil e “recebe bênção”; a terra má se arma de espinhos, reprova-se, cheira à maldição e vira lenha.

E o chamado pastoral? Ele está embutido no contraste. Se a chuva da Palavra tem caído muitas vezes sobre nós, e ainda brotam espinhos, não é hora de discutir meteorologia — é hora de arrancar espinho. O Pai não busca pirotecnia, mas fruto. Ele cava e aduba (Lucas 13:8); tem paciência (Tiago 5:7); e, ao mesmo tempo, fala claro: solo que insiste em akanthas kai tribolous caminha, passo a passo, para adokimos, kataras engys, telos… eis kausin. Em Cristo, porém, há caminho de volta: a coroa de espinhos na sua fronte é o Rei descendo à nossa maldição para nos vestir de fruto (Gálatas 3:13; João 15:2). Quem se rende a ele, permanece, dá fruto, e glorifica o Vinhateiro. Quem ri do Traspassado, eterniza o matagal. A diferença está, como sempre, no que a terra faz com a chuva que recebe.

Depois do trovão de 6:4–6, o autor muda o timbre e fala como pastor: “estamos persuadidos, amados, de coisas melhores e pertencentes à salvação, ainda que falamos desta maneira” (Hebreus 6:9). O grego põe cada nervo à mostra: Pepeisménoi de hēmetha, agapētoi, ta kreissona kai echomena sōtērias, ei kai houtōs laloumen. Pepeisménoi (tradução: “estamos persuadidos/convictos”) diz que a exortação severa não anulou a confiança pastoral; agapētoi (tradução: “amados”) devolve afeto ao ambiente; ta kreissona (tradução: “as coisas melhores”) e echomena sōtērias (tradução: “as que acompanham/aderem à salvação”) nomeiam o alvo: não sinais vistosos e passageiros, mas frutos que ficam quando o espetáculo passa. É o mesmo pulso de “não somos dos que retrocedem para a perdição, mas dos que creem para a conservação da alma” (Hebreus 10:39), a mesma confiança que Paulo tinha ao escrever: “aquele que começou em vós boa obra, há de completá-la” (Filipenses 1:6) e, por isso, “tenho vós no coração” (Filipenses 1:7). Também ecoa o retrato de Tessalônica: “obra da fé, trabalho do amor e firmeza da esperança… sabendo a vossa eleição” (1 Tessalonicenses 1:3–4). Em outras palavras, o autor olha para a comunidade e, apesar de tudo o que acabou de dizer, reconhece nelas os acompanhamentos da salvação.

Quais são essas “coisas melhores”? Toda a carta já as vinha desenhando: a “grande salvação” (Hebreus 2:3) que Cristo, “aperfeiçoado” — teleiōtheis (tradução: “consumado/consagrado”) — se tornou “autor da salvação” (Hebreus 5:9), produz gente humilde e quebrantada em quem o Altíssimo habita (Isaías 57:15), gente bem-aventurada no caminho do Reino (Mateus 5:3–12), gente que creu e confessou (Marcos 16:16), que recebeu de Deus “arrependimento para a vida” (Atos 11:18) e vive de “arrependimento para com Deus e fé em nosso Senhor Jesus” (Atos 20:21). É aquela “tristeza segundo Deus” que gera “arrependimento para a salvação” (2 Coríntios 7:10). E quando a fé cria calos na mão, ela “opera pelo amor” (Gálatas 5:6), amadurece em “fruto do Espírito” (Gálatas 5:22–23) e se deixa educar pela graça “para redimir e purificar um povo zeloso de boas obras” (Tito 2:11–14). Tudo isso são coisas que acompanham — não o brilho instantâneo dos “poderes do século vindouro” provados por um momento, mas a textura de uma vida convertida.

A virada se explica plenamente no versículo seguinte: “Porque Deus não é injusto para se esquecer do vosso trabalho e do amor que para com o seu nome demonstrastes, tendo servido aos santos e servindo ainda” (Hebreus 6:10). Outra vez, o grego acende luzes: Ou gar adikos ho theos epilathésthai tou ergou hymōn kai tēs agapēs hēs enedeixasthe eis to onoma autou, diakonēsantes tois hagiois kai diakonountes. Ou… adikos ho theos (tradução: “Deus não é injusto”) amarra a esperança à justiça e fidelidade de Deus (Deuteronômio 32:4; Romanos 3:4–5; 1 João 1:9): o que Ele começou, Ele julga com equidade (2 Tessalonicenses 1:6–7) e coroa no fim (2 Timóteo 4:8). Epilathésthai (tradução: “esquecer-se”) é negado com força: o Deus que um dia disse “lembro-me do amor do teu noivado” (Jeremias 2:2–3) é o Deus que manda um anjo dizer a Cornélio: “as tuas orações e as tuas esmolas subiram para memorial” (Atos 10:4; 10:31). Neemias orava nessa certeza: “lembra-te de mim para bem” (Neemias 5:19; 13:22; 13:31); o salmista pedia: “o Senhor se lembre de todas as tuas ofertas” (Salmos 20:3). O autor de Hebreus está dizendo: esse Deus vê.

E o que Ele vê? Ergon (tradução: “trabalho”) e agapē (tradução: “amor”) mostrados — enedeixasthe (tradução: “demonstrastes”) — “para o Nome” — eis to onoma (tradução: “por causa/in vista do Nome”). Jesus tinha prometido: quem recebe seus enviados, a Ele recebe (João 13:20); quem dá “um copo de água” “em nome” de discípulo, não perde o galardão (Mateus 10:42; Marcos 9:41); quando a igreja serve os pequeninos, ela o serve (Mateus 25:35–40). É por isso que o Novo Testamento inteiro pulsa com diaconia concreta: “tinham tudo em comum… repartia-se a cada um” (Atos 2:44–45); “não havia necessitado entre eles” (Atos 4:34–35); Tabita era “cheia de boas obras e esmolas” (Atos 9:36–39); as igrejas levantam coletas (Atos 11:29; Romanos 12:13; 15:25–27; 1 Coríntios 16:1–3; 2 Coríntios 8–9) e “fazem o bem a todos, mas principalmente aos da família da fé” (Gálatas 6:10). Filipos enviou “vezes” socorro a Paulo e isso foi “cheiro suave… agradável a Deus” (Filipenses 4:16–18); Colossenses 3:17 resume: “tudo… em nome do Senhor”. A lista continua: “riquezas bem empregadas em boas obras” (1 Timóteo 6:18), homens que “procuraram” o apóstolo “com diligência e o acharam” (2 Timóteo 1:17–18), a fé que “não fecha as entranhas” diante do irmão carecido (Tiago 2:15–17), o amor que “não ama de palavra, mas por obra e em verdade” (1 João 3:17–18; cf. 1 João 3:14). Hebreus 13:16 chamará isso explicitamente de “sacrifícios com que Deus se agrada”.

Note também o par de tempos verbais: diakonēsantes… kai diakonountes — “tendo servido… e servindo ainda”. Deus não está contando um feito isolado; Ele está vendo uma trajetória: amor que serviu e continua servindo. Isso é “obra do amor” que se reconhece lá atrás (1 Tessalonicenses 1:3) e se define no hoje (1 Coríntios 13:4–7; Gálatas 5:13). É por isso que o autor pode chamá-los de “amados” (Hebreus 6:9), apesar dos avisos de 6:4–6: porque a história deles tem cheiro de serviço aos santos. A Escritura inteira confirma que Deus não esquece: “quem se compadece do pobre ao Senhor empresta, e Ele lhe paga” (Provérbios 19:17; cf. Provérbios 14:31); “lança o teu pão sobre as águas, porque depois de muitos dias o acharás” (Eclesiastes 11:1); “o justo jamais será abalado” porque “a sua justiça permanece para sempre” (Salmos 112:6, 9). O Ressuscitado repete às igrejas: “conheço as tuas obras… o teu trabalho… a tua perseverança” (Apocalipse 2:2–3), e promete que “as suas obras os seguem” (Apocalipse 14:13).

Assim, Hebreus 6:9–10 não é um recuo tímido depois de um sermão duro; é a moldura correta da segurança cristã. A certeza não está no nosso brilho, mas no caráter de Deus — ou… adikos ho theos (tradução: “Deus não é injusto”) — e na obra que Ele produz: fé que se arrepende (Atos 20:21; 2 Coríntios 7:10), amor que se doa (Gálatas 5:6; Gálatas 5:22–23), serviço que honra o Nome (Colossenses 3:17) e cuida dos santos ontem e hoje (diakonēsantes… diakonountes). Depois do raio de 6:4–6, o pastor olha a congregação e diz: “vejo em vocês as coisas melhores que acompanham a salvação.” Aplique isso à própria alma: se a palavra tem feito brotar arrependimento, fé, amor e serviço concreto, então há razões bíblicas para uma santa confiança; e, se faltar alguma dessas flores, a mesma palavra que consola também convoca — porque, diante de um Deus que não esquece, cada copo d’água dado “pelo Nome” já tem eternidade no sabor.

Hebreus 6:11 é a mão firme do pastor que, depois de consolar (6:9–10), nos aponta a trilha e diz: “andem nela até o fim”. Ouça o verso em transliteração, com cada dobradiça visível: epithymoumen de hekaston hymōn tēn autēn endeiknysthai spoudēn pros tēn plērophorian tēs elpidos achri telous — “desejamos (epithymoumen, ‘ansiamos/queremos com força’) que cada um de vocês (hekaston hymōn) mostre/demonstre (endeiknysthai) a mesma diligência/ardor (spoudē) em direção (pros) à plena certeza (plērophoria, ‘plenitude/certeza’) da esperança (tēs elpidos), até o fim (achri telous).” O versículo tem três nervos: “diligência”, “plena certeza”, “esperança até o fim”. E cada nervo vibra com a Escritura listada.

Primeiro, a diligência. Spoudē (tradução: “zelo, presteza, diligência”) é a palavra de Romanos 12. Quem lidera, que o faça “com diligência” — en spoudē (Romanos 12:8); e que a igreja não seja “preguiçosa no zelo” — tē spoudē mē oknēroi (Romanos 12:11). É o mesmo espírito do “sede firmes, inabaláveis, sempre abundantes na obra do Senhor” (1 Coríntios 15:58) e do “não nos cansemos de fazer o bem” (Gálatas 6:9). Filipenses 1:9–11 descreve o conteúdo dessa diligência: amor que transborda com conhecimento e discernimento, para “aprovar as coisas excelentes” e “cheios de fruto de justiça” no Dia de Cristo. Filipenses 3:15 chama isso de mentalidade de maduros: os “teleioi” (tradução: “maduros”) pensam assim — perseguem o alvo sem acomodação. Em Tessalônica, Paulo olha a uma igreja já amorosa e pede: “aumentai ainda mais” (1 Tessalonicenses 4:10). E quando o cansaço ameaça, outra vez a mesma palavra bíblica: “não vos canseis de fazer o bem” (2 Tessalonicenses 3:13). Pedro, em duas cartas, amarra uma cinta na cintura do coração: “pondo nisto mesmo toda a diligência (spoudē), acrescentai à vossa fé…” (2 Pedro 1:5–8), porque essa diligência torna a fé “não ociosa nem infrutífera”; e, mais adiante, “sede diligentes para serdes achados por ele em paz, sem mácula e irrepreensíveis” (2 Pedro 3:14). Hebreus 6:11, portanto, não inventa um novo tom; ele amarra todos esses fios e diz: mantenham a mesma spoudē, não com arrancos, mas como hábito santo.

Segundo, a “plena certeza”. O alvo é plērophoria (tradução: “plenitude, certeza plena”), palavra-irmã de outros convites da carta: “aproximemo-nos com plena certeza de fé” — plērophoria pisteōs (Hebreus 10:22). Aqui, o foco é “plena certeza da esperança”. A Bíblia já tinha prometido essa firmeza como fruto da justiça: “o efeito da justiça será paz, e o resultado, repouso e confiança para sempre” (Isaías 32:17). Paulo ora para que os corações sejam “consolados… unidos em amor e para todas as riquezas da plena certeza do entendimento” — plērophoria tēs syneseōs (Colossenses 2:2); lembra que o evangelho chegou “com poder e com o Espírito Santo, e com plena certeza” (1 Tessalonicenses 1:5); e manda: “fazei firme a vossa vocação e eleição” (2 Pedro 1:10), porque a certeza não é um estado nebuloso, é uma vida que se agarra ao que Deus prometeu e comprova essa fé em amor. João dá o mesmo tom relacional: “sabemos que já passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos” (1 João 3:14); “nisto saberemos que somos da verdade e tranquilizaremos o nosso coração” (1 João 3:19). Hebreus 3 já tinha colocado a régua: “se conservarmos firme até ao fim a ousadia e a exultação da esperança” (Hebreus 3:6), e “se guardarmos firme até ao fim o princípio da confiança” (Hebreus 3:14). A “plena certeza” de 6:11 é o brilho sereno dessa perseverança.

Terceiro, a esperança — e esperança “até o fim”. Elpis (tradução: “esperança”) em Hebreus 6 não é sentimento difuso; é âncora. O parágrafo logo à frente dirá que Deus confirmou sua promessa “para que tenhamos forte consolação, nós que… nos refugiamos em reter a esperança proposta, a qual temos como âncora da alma, segura e firme, e que penetra além do véu, onde Jesus entrou por nós” (Hebreus 6:18–20). Paulo traça o crescimento dessa esperança: justificações nos dão “acesso a esta graça”, e “gloriar-se na esperança da glória de Deus” (Romanos 5:2–5) — esperança que não nos envergonha, porque o amor de Deus foi derramado. Ele lembra que “na esperança fomos salvos; mas a esperança que se vê não é esperança… se esperamos o que não vemos, com paciência o aguardamos” (Romanos 8:24–25); por isso, “alegrai-vos na esperança” (Romanos 12:12) e que “o Deus da esperança vos encha de todo gozo e paz no crer” (Romanos 15:13). A tríade permanece: “agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor” (1 Coríntios 13:13). No Espírito, “aguardamos a esperança da justiça” (Gálatas 5:5). Essa esperança tem endereço: “está reservada nos céus” (Colossenses 1:5), e a exortação é “não vos desvieis da esperança do evangelho” (Colossenses 1:23). Ela também consola: “nos deu eterna consolação e boa esperança, pela graça, e conforte os vossos corações e vos confirme” (2 Tessalonicenses 2:16–17). Pedro a chama de “viva”: fomos regenerados “para uma viva esperança… para herança… guardados pelo poder de Deus” (1 Pedro 1:3–5); e ele ancora essa viva esperança em Deus: “para que a vossa fé e a vossa esperança estejam em Deus” (1 Pedro 1:21). João mostra seu pulso ético: “quando ele se manifestar, seremos semelhantes a Ele… e todo o que tem essa esperança purifica-se a si mesmo” (1 João 3:1–3). É isso que Hebreus 6:11 pede: plērophoria tēs elpidos (tradução: “plena certeza da esperança”) que se traduz em santidade, alegria e firmeza.

E então vem a última batida: achri telous (tradução: “até o fim”). A carta já pronunciara esse “até o fim” duas vezes (Hebreus 3:6; 3:14) e voltará a fazê-lo quando lembrar os primeiros dias de fé e ordenar: “não abandoneis a vossa ousadia, que tem grande galardão” (Hebreus 10:32–35). Jesus o colocara no coração do discipulado: “quem perseverar até o fim será salvo” (Mateus 24:13). O Ressuscitado o repete às igrejas: “ao que vence e guarda as minhas obras até o fim, eu lhe darei autoridade sobre as nações” (Apocalipse 2:26). Esperança cristã não é faísca; é brasa que resiste ao vento. Por isso Hebreus 6:11 liga zelo e resistência, certeza e perseverança, amor ativo e horizonte eterno.

Junte tudo e veja o retrato inteiro. O pastor diz: “epithymoumen…” — desejamos sinceramente que vocês mostrem (endeiknysthai, “exibir, comprovar”) a mesma spoudē (zelo que não vacila, Romanos 12:8, 11; Gálatas 6:9; 2 Tessalonicenses 3:13; 2 Pedro 1:5–8; 3:14), rumo (pros) à plērophoria (certeza) da elpis (esperança que o próprio Deus acende e alimenta: Romanos 5:2–5; 8:24–25; 15:13; Colossenses 1:5, 23; 2 Tessalonicenses 2:16–17; 1 Pedro 1:3–5; 1 João 3:1–3), e que isso tudo se estenda achri telous (“até o fim”: Hebreus 3:6; 3:14; 10:32–35; Mateus 24:13; Apocalipse 2:26). No meio, a paz que Isaías prometeu (Isaías 32:17) e as confirmações internas que Paulo e João descrevem (Colossenses 2:2; 1 Tessalonicenses 1:5; 2 Pedro 1:10; 1 João 3:14, 19) fazem da “plena certeza” menos um slogan e mais um modo de viver.

Se você lembrar do versículo anterior (6:10), o caminho fica ainda mais claro: “Deus não é injusto para esquecer o vosso trabalho e o amor…”; Hebreus 6:11 apenas acrescenta o advérbio existencial: continuem. Continuem com a mesma spoudē, até que a “âncora” (6:18–20) nos puxe, de uma vez por todas, para além do véu. Até lá, que a nossa esperança não seja tímida, mas plena (plērophoria), e que a nossa diligência não seja intermitente, mas até o fim (achri telous).

Hebreus 6:12 condensa a exortação de todo o parágrafo numa sentença que vale por um mapa: hina mē nōthroi genēsthe, mimētai de tōn dia pisteōs kai makrothymias klēronomountōn tas epangelias — “para que não vos torneis lerdos (nōthroi, tradução: ‘tardos, indolentes’), mas imitadores (mimētai, tradução: ‘seguidores que reproduzem o exemplo’) dos que, por fé (pistis, tradução: ‘confiança obediente’) e paciência (makrothymia, tradução: ‘longanimidade perseverante’), herdam (klēronomeō, tradução: ‘receber como herança’) as promessas (epangeliai, tradução: ‘declarações juramentadas de Deus’).” O versículo tem dois “nãos” e dois “sins”: não à indolência espiritual; sim a uma imitação inteligente; sim a uma perseverança de fé e longanimidade; não a qualquer “herança” que não venha na forma prometida por Deus. A Escritura inteira, antiga e nova, entra nessa sala e fala com esse texto.

O “não” à indolência retoma a ferida exposta pouco antes: “tendes vos tornado tardos em ouvir” (Hebreus 5:11). O coração preguiçoso pode ser religioso, mas não é treinado; ele gira na cama como a porta nos gonzos, diz o sábio (Provérbios 26:14), e por isso não sai para a seara. Em Provérbios, a morfologia do preguiçoso é ampla: a mão remissa empobrece enquanto a diligente enriquece (Provérbios 10:4); o preguiçoso é fumaça nos olhos de quem o envia (Provérbios 10:26); o caminho do indolente é como sebes de espinhos (Provérbios 15:19); quem é frouxo no trabalho é irmão do destruidor (Provérbios 18:9); a alma do preguiçoso deseja e nada tem, ao passo que a do diligente se farta (Provérbios 13:4); o trabalho com a mão cuidadosa domina, mas a mão remissa será sujeita (Provérbios 12:24); o campo do homem indolente, visto de perto, está coberto de urtigas e muros caídos — e a lição é: “um pouco de sono, um pouco de cochilo… a tua pobreza virá” (Provérbios 24:30–34). Tudo isso explica o imperativo de Hebreus 6:12: mē nōthroi genēsthe (“não vos torneis lerdos”). O Novo Testamento reforça o alerta: o servo que enterra o talento, chamando o Senhor de “duro”, é chamado de “mau e negligente” (Mateus 25:26; e no mesmo quadro, outro enterrou: Mateus 25:18); os ociosos na praça são convocados a ir para a vinha (Mateus 20:3, 6); na prática devocional, o chamado é “no zelo, não sejais remissos” (Romanos 12:11). A carta, mais atrás, já advertira: tornaram-se lentos para ouvir (Hebreus 5:11). E a sabedoria apostólica, que pede confirmação da vocação, coloca o antídoto em forma positiva: “fazei firme a vossa vocação e eleição” (2 Pedro 1:10). Hebreus 6:12, portanto, não acusa sem remédio; aponta o remédio: sair da inércia e entrar no rastro dos santos.

Daí o “sim” à imitação. Mimētai não é copiar gestos; é reproduzir a fé e os passos. A carta voltará a isso: “tendo ao redor tão grande nuvem de testemunhas” (Hebreus 12:1), corramos a carreira; “lembrai-vos dos vossos guias… e imitai a sua fé” (Hebreus 13:7). É o que Paulo pede sem pudor: “sede meus imitadores” (1 Coríntios 11:1); é o que o ancião recomenda: “não imites o mal, mas o bem” (3 João 11). Os profetas e Jó formam um colégio de paciência a ser seguido (Tiago 5:10–11); as santas mulheres de outrora, com Sara à frente, moldam uma esperança obediente (1 Pedro 3:5–6). O próprio texto dá pistas de como imitar: “segui as pisadas da fé de nosso pai Abraão” (Romanos 4:12); “perguntai pelas veredas antigas” e andai por elas (Jeremias 6:16); “se não sabes, ó mais formosa, segue as pegadas do rebanho” (Cantares 1:8). Até as cenas de conquista ensinam o ethos: cuidado com a autoconfiança que envia “dois ou três mil” com displicência (Josué 7:3) — meia entrega custa caro; por outro lado, “guardai com diligência… o mandamento” (Josué 22:5): esse é o ar que Hebreus quer que respiremos.

A matéria-prima a ser imitada é dupla: pistis e makrothymia. A carta dá a Abraão como paradigma próximo: “assim, depois de esperar com paciência, obteve a promessa” (Hebreus 6:15); mais adiante, dirá que ele “obedeceu” sem saber para onde ia, habitou como peregrino, esperou a cidade cujo arquiteto é Deus (Hebreus 11:8–16), e chegou a oferecer Isaque, certo da fidelidade de Deus (Hebreus 11:17). A mesma carta insiste: “tendes necessidade de perseverança” para, depois de haverdes feito a vontade de Deus, alcançardes a promessa (Hebreus 10:36). Jesus já havia dito que a boa terra é a que dá fruto “com perseverança” (Lucas 8:15). Paulo chama de glória essa tenacidade: “glória, honra e incorruptibilidade aos que, perseverando em fazer o bem, procuram” (Romanos 2:7); explica que a esperança se cultiva esperando “com paciência” (Romanos 8:25) enquanto o Espírito socorre a nossa fraqueza na oração (Romanos 8:26); e resume a disciplina do coração: “alegrai-vos na esperança; sede pacientes na tribulação” (Romanos 12:12). Tessalônica ofereceu o modelo: “obra da fé, trabalho do amor e firmeza da esperança” (1 Tessalonicenses 1:3). O Apocalipse traduz esse par de Hebreus 6:12 em refrão pastoral: “aqui está a perseverança e a fé dos santos” (Apocalipse 13:10; 14:12). No nosso versículo, o termo para paciência é makrothymia (longanimidade), primo irmão de hypomonē (perseverança). Pedro, naquela escada de virtudes que combate a nōthria (indolência), coloca hypomonē no meio do caminho (2 Pedro 1:6) e acrescenta que, existindo essas coisas e abundando, não vos deixarão “ocios os nem infrutíferos” (2 Pedro 1:8). É exatamente o que Hebreus quer evitar.

O destino dessa fé paciente é a herança: klēronomein tas epangelias (“herdar as promessas”). A carta começou lembrando que os anjos servem “àqueles que hão de herdar a salvação” (Hebreus 1:14); mais adiante, mostrará Abraão peregrinando na terra da promessa como em terra alheia (Hebreus 11:9), e ainda assim aguardando cumprir-se o que Deus jurou, a ponto de, “provado”, receber de volta o filho da promessa (Hebreus 11:17); e concluirá com heróis que, pela fé, “alcançaram promessas” (Hebreus 11:33). É por isso que Hebreus 10:36 fala outra vez: “tendes necessidade de perseverança, para que, havendo feito a vontade de Deus, alcanceis a promessa”. Jesus cimenta isso na esperança da ressurreição: Deus é “Deus de Abraão, Isaque e Jacó” porque é Deus de vivos (Mateus 22:32; Lucas 20:37–38); a parábola do pobre Lázaro mostra o pobre levado ao seio de Abraão (Lucas 16:22): herança tem rosto e endereço. João simplifica o conteúdo central: “esta é a promessa que Ele nos fez: a vida eterna” (1 João 2:25); e o Apocalipse acrescenta que quem morre no Senhor “descansa dos seus trabalhos, e as suas obras os seguem” (Apocalipse 14:13). Paulo, por sua vez, lembra que a herança não é salário: “se a herança provém da lei, já não provém de promessa; mas pela promessa Deus a deu a Abraão” (Gálatas 3:18), e que todas as promessas têm o seu “sim” em Cristo (2 Coríntios 1:20). Pedro sela a segurança: somos “guardados pelo poder de Deus mediante a fé para a salvação prestes a revelar-se” (1 Pedro 1:5). Hebreus 6:17, logo abaixo do nosso versículo, explicará como Deus, querendo mostrar “a imutabilidade do seu conselho” aos “herdeiros da promessa”, jurou — é isso que torna a herança certa. E, porque a palavra é “de exortação”, o autor pede à igreja que a suporte com coração aberto (Hebreus 13:22): nada mais prático do que ouvir, crer e perseverar.

Quando os “recíprocos” espalhados pela Bíblia passam por Hebreus 6:12, o desenho fica ainda mais nítido. O zelo é uma disciplina constante: “não sejais remissos” (Romanos 12:11), “persisti na graça de Deus” (Atos 13:43), “trabalhai a vossa salvação” (Filipenses 2:12), “com paciência possui as vossas almas” (Lucas 21:19) e “sede perseverantes” mesmo quando o amor esfria (Apocalipse 2:3). A sabedoria manda “ir à formiga” (Provérbios 6:6) e “andar no caminho dos bons” (Provérbios 2:20), repartir com o necessitado (Provérbios 14:21), não ficar “em pé, ocios o” na praça (Mateus 20:3, 6). Tiago pede “paciência” e “longanimidade” (2 Pedro 1:6 em paralelo) para que não sejamos estéreis (2 Pedro 1:8). E, sobretudo, o fio da promessa corre por toda parte: “todas quantas promessas há de Deus, têm nele o sim” (2 Coríntios 1:20); “o próprio Senhor… vos dê eterna consolação e boa esperança” (2 Tessalonicenses 2:16). A herança é de quem segue — não de quem cruza os braços.

No fim, Hebreus 6:12 é um chamado a trocar a moleza pela marcha, a curiosidade pelo discipulado, o gosto momentâneo pela constância amorosa. Nada de nōthroi (lerdos); sim, mimētai (imitadores) daqueles cuja pistis (fé: confiança obediente) e makrothymia (longanimidade: paciência que suporta) os fizeram klēronomein tas epangelias (herdar as promessas). Quem caminha assim não apenas “obtém” coisas; ele se torna herdeiro — e herdeiro anda com os olhos no Pai, até que a promessa vista de longe se torne casa habitada para sempre.

Hebreus 6:13 coloca, no centro do palco, a maneira como Deus amarra a nossa esperança: “Pois, quando Deus fez a promessa a Abraão, como não tinha ninguém maior por quem jurar, jurou por si mesmo.” Em grego, a frase deixa claro o peso jurídico desse ato: tō gar Abraam epangeilamenos ho theos, epei kat’oudenos meizonos eichen omosai, ōmosen kath’ heautou — “porque a Abraão, tendo prometido Deus, como não tinha maior por quem jurar, jurou por si mesmo.” Epangeilamenos (“tendo prometido”) e ōmosen kath’ heautou (“jurou por si mesmo”) andam juntos para nos dizer que a promessa, por si só, já bastaria; o juramento é Deus dobrando a certeza para consolar herdeiros que vacilam.

O passo seguinte do próprio parágrafo (Hebreus 6:16–18) explica por que o juramento divino é tão decisivo. “Os homens juram por alguém maior, e o juramento, para confirmação, é o fim de toda contenda.” O grego expõe o raciocínio: anthrōpoi gar kata tou meizonos omnuousin, kai pasēs autois antilogias peras eis bebaiōsin ho horkos — “os homens juram pelo maior, e o juramento é o termo de toda disputa, para confirmação.” Em seguida, o autor fala dos “dois fatos imutáveis” (promessa e juramento) e da “imutabilidade do seu conselho” — ametahetos (boulē, “propósito/conselho”) — para que “tenhamos forte consolação” (6:17–18). Em suma: ao jurar por si mesmo, Deus põe fim à nossa antilogia (discussão interna), ancorando a esperança no caráter dele.

Tudo isso remete ao momento fundador em que Deus, de fato, jurou. Em Gênesis 22:15–18, logo após a obediência de Abraão no Moriá, o Senhor sela a promessa com juramento: “Por mim mesmo jurei… porque fizeste isto… certamente te abençoarei, e multiplicarei a tua descendência… e em tua descendência serão benditas todas as nações.” É exatamente a cena por trás de Hebreus 6:13. O juramento aqui não acrescenta bondade à bondade divina; acrescenta garantia à nossa fraqueza. É por isso que, séculos depois, Israel cantará esse juramento como a espinha dorsal da sua história: “a aliança que fez com Abraão… o juramento a Isaque” (Salmos 105:9) e “o confirmou… como estatuto perpétuo” (Salmos 105:10). Hebreus lê Salmos 105 como nós deveríamos: o juramento de Deus faz a promessa atravessar as eras.

Quando Isaías 45:23 proclama, na voz do próprio Deus, “Eu jurei por mim mesmo; da minha boca saiu a palavra de justiça”, o texto acerta a mesma tecla de Hebreus 6:13 — só que agora com alcance cósmico: todo joelho se dobrará. A versão grega embute a mesma força: ōmosa kat’ emauton (tradução: “jurei por mim mesmo”). Jeremias repete o refrão em cenas de juízo e graça: “Eu jurei por mim mesmo… esta casa se tornará desolação” (Jeremias 22:5); “Eu jurei por mim mesmo… Bozra será objeto de espanto” (Jeremias 49:13). O ponto, em ambos, é que Deus se compromete com o próprio ser para executar o que diz — seja para quebrar o orgulho das nações, seja para levantar os seus. Miquéias 7:20, na outra mão, transforma o juramento em melodia de misericórdia: “Cumprirás a fidelidade a Jacó e a misericórdia a Abraão, que juraste a nossos pais.” E Zacarias, pai de João, lê o nascimento do Precursor como o relógio do juramento voltando a soar: “para se lembrar da sua santa aliança, do juramento que fez a Abraão” (Lucas 1:73). Em todos esses ecos, Hebreus 6:13 encontra o que ele afirma: quando Deus jura, Ele coloca a sua assinatura de Rei embaixo da promessa, para que ninguém a rasgue.

Um detalhe da lista parece menos óbvio, mas também ilumina a lógica de Hebreus: Ezequiel 32:13 não traz a fórmula “vivo eu”, mas pertence ao bloco dos decretos irrevogáveis de Deus sobre as nações. A crítica contra o Egito é proferida com aquela linguagem de decisão soberana que pontilha Ezequiel (“vivo eu, diz o Senhor Deus” — zō egō, legei Kyrios, tradução: “eu vivo, diz o Senhor” — fórmula que aparece, por exemplo, em Ezequiel 5:11). Hebreus 6:13 bebe da mesma fonte: quando Deus fala como Rei, os seus decretos são tão firmes quanto um juramento; e quando jura, Ele leva essa firmeza ao clímax.

Passemos, agora, pelos “recíprocos”, porque cada um deles conversa, à sua maneira, com o “jurou por si mesmo” de Hebreus 6:13. Gênesis 15:15 mostra Abraão despedindo-se “em paz”, “farto de dias” — não é um juramento formal, mas é a paz de quem viveu sob promessa que Deus mesmo garantiu. Já Gênesis 22:16 repete a fórmula exata do Moriá (“por mim mesmo jurei”), tão central para Hebreus 6 que o autor a tem praticamente em mente palavra por palavra.

Em Êxodo 32:13, Moisés ora e apela ao juramento: “lembra-te de Abraão, Isaque e Israel… aos quais juraste por ti mesmo.” É a aplicação explícita de Hebreus 6:13: oramos com ousadia porque o que pedimos está amarrado ao que Deus jurou. O Deuteronômio volta e meia liga a eleição de Israel ao juramento: “porque o Senhor vos amou e guardou o juramento que fizera a vossos pais” (Deuteronômio 7:8); “olha desde a tua santa habitação… como juraste a nossos pais” (Deuteronômio 26:15); “o Senhor te confirmará por povo santo… como te jurou” (Deuteronômio 28:9). Hebreus 6:13 lê todos esses textos como uma só afirmação: a fidelidade de Deus não flutua; ela é juramentada.

O cronista transforma isso em liturgia: “a aliança que fez… o juramento que jurou” (1 Crônicas 16:16). Neemias 1:5 invoca “o Deus grande e temível, que guarda a aliança e a misericórdia” — maneira de dizer que Deus, tendo jurado, lembra. Salmos 63:11 afirma: “todo aquele que juram por Ele se gloriará” — o povo jura por Deus porque Deus jurou por si, e por isso é confiável. Salmos 89:35 vai ao âmago: “Uma vez jurei pela minha santidade, e não mentirei a Davi.” Salmos 100:5 liga bondade e fidelidade perene — a “verdade” que dura “de geração em geração” —, isto é, a estabilidade da aliança juramentada. E Salmos 110:4 sobe o tom do juramento para a economia do sacerdócio messiânico: “Jurou o Senhor e não se arrependerá: Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque.” A versão grega é direta: ōmosen Kyrios kai ou metamelēthēsetai (tradução: “jurou o Senhor e não se arrependerá”). Se em Hebreus 6 Deus jura para garantir a promessa, em Hebreus 7 Deus jura para legitimar o sacerdócio eterno do Filho — e é o mesmo Deus, amarrando a nossa salvação por todos os lados.

Isaías 49:18 traz a fórmula de juramento na forma viva, “vivo eu”, e aplica-a à restauração: é o “como eu vivo” de Deus garantindo que Sião se vestirá de filhos. Jeremias 32:40 promete uma “aliança eterna” em que Deus não se desviará de fazer o bem (juramento em forma de voto unilateral); 44:26 soa duro: “eu jurei por meu grande nome”; 51:14 idem: “o Senhor dos Exércitos jurou por si mesmo” — em ambos, o juramento é martelo de juízo, e, por isso, serve ao argumento de Hebreus: Deus não desfaz aquilo que Ele mesmo jurou fazer, seja para salvar, seja para julgar. Ezequiel 5:11 tem a mesma fórmula solene: “vivo eu, diz o Senhor Deus” — zō egō, legei Kyrios (tradução: “eu vivo, diz o Senhor”) — para legitimar um veredito irreversível. Daniel 9:27 fala de “confirmar a aliança” — eco útil, porque Hebreus 6:16 chama o juramento de bebaiōsis (tradução: “confirmação”) que dá “fim” à disputa. Oséias 12:4 recua a Jacó e à palavra que Deus lhe falou em Betel, a mesma palavra que mais tarde Gênesis 28 e 35 revestem com promessas que o Senhor reafirma. Amós 6:8 retoma: “o Senhor Deus jurou por si mesmo.” Habacuque 3:9 usa a imagem bélica do arco de Deus “desnudado, segundo os juramentos feitos às tribos” — o compromisso de Deus com a sua palavra é a bainha aberta do seu braço.

Lucas 1:72 volta a Zacarias pela segunda vez (“para cumprir a misericórdia e lembrar a aliança”), e Paulo extrai a consequência doutrinária: “se alguns foram infiéis, a fidelidade de Deus porventura ficará sem efeito?” (Romanos 3:3). Em Romanos 4:16, o raciocínio de Hebreus 6 aparece com outras palavras: “é pela fé, para que seja segundo a graça, a fim de que a promessa seja firme” — firme como uma promessa jurada. Romanos 9:4 lembra que as “alianças” e as “promessas” pertencem a Israel; Gálatas 3:17 diz que uma “aliança anteriormente confirmada por Deus” não pode ser anulada; 3:22 afirma que a Escritura encerrou tudo debaixo do pecado “para que a promessa pela fé em Jesus Cristo fosse dada aos que creem.” Tudo isso está dentro do “jurou por si mesmo” de Hebreus 6:13: Deus construiu a história da salvação sobre promessas confirmadas por Ele mesmo.

A própria carta volta ao tema adiante: em Hebreus 7:6, Melquisedeque abençoa “o que tinha as promessas”; em Hebreus 9:15, Cristo é “Mediador do novo testamento, para que os chamados recebam a promessa da herança eterna” — e é claro, em Hebreus 10:14, por um único sacrifício, Ele “aperfeiçoou para sempre” os santificados, isto é, concretizou o que fora jurado: um sacerdócio e uma salvação irrevogáveis. João nos dá uma linha afiada que se casa com Hebreus 6:13: “Deus é maior que o nosso coração” (1 João 3:20). É precisamente porque não há maior que Deus que Ele jura por si mesmo; se houvesse Alguém acima, Ele juraria por esse “maior”. Por fim, Apocalipse 10:5–6 nos mostra um anjo “erguendo a mão ao céu e jurando por Aquele que vive pelos séculos dos séculos” — cena que dramatiza o que Hebreus 6:13 ensinou: todo juramento sério se apoia no Maior; e quando o próprio Deus jura, Ele coloca o próprio ser como fiador.

O encadeamento, então, é este. Hebreus 6:13 declara o gesto: ōmosen kath’ heautou (tradução: “jurou por si mesmo”). Hebreus 6:16–18 define o efeito: ho horkos para bebaiōsis (tradução: “o juramento como confirmação”), garantindo a boulē ametahetos (tradução: “propósito imutável”). Gênesis 22:15–18 narra a origem histórica desse juramento; Salmos 105:9–10, Isaías 45:23, Jeremias 22:5 e 49:13, Miquéias 7:20 e Lucas 1:73 fazem memória dessa mesma assinatura divina, ora em misericórdia, ora em juízo. E toda a cadeia “recíproca” — de Êxodo 32:13 a Amós 6:8, de Salmos 110:4 a Gálatas 3:17, de Hebreus 9:15 a Apocalipse 10:5 — mostra como a Bíblia inteira lê esse gesto: Deus vincula a nossa salvação à fidelidade dele. É por isso que o autor de Hebreus pode exigir perseverança e, ao mesmo tempo, oferecer consolo. A exigência é esta: caminhem até o fim. O consolo é este: por baixo dos nossos passos há um chão que não cede, porque foi Deus quem disse — e jurou.

Hebreus 6:14 retoma, palavra por palavra, o juramento do Senhor a Abraão e põe essa fala divina como a bigorna sobre a qual a esperança cristã é martelada: legōn· ei mēn eulogōn eulogēsō se kai plēthynōn plēthynō se — “dizendo: certamente abençoando te abençoarei e multiplicando te multiplicarei.” Aqui, duas promessas siamesas — bênção e multiplicação — se estendem como dois rios que nascem numa mesma fonte. Quando Deus diz “abençoando te abençoarei”, Ele está reafirmando a torrente aberta desde Gênesis 12: a força criadora que faz florescer aquilo que, humanamente, já murchou; quando diz “multiplicando te multiplicarei”, Ele confirma que a vida que vem d’Ele não apenas resiste ao tempo, mas se expande apesar do tempo. É por isso que, quando voltamos à história, o eco é inconfundível. Em Gênesis 17:2, Deus “confirma” a aliança e promete “multiplicar” grandemente Abraão. Em Gênesis 48:4, Jacó repete, como quem passa adiante a herança, que o Senhor lhe disse: “Eu te multiplicarei e te farei congregação de povos.” Em Êxodo 32:13, Moisés, intercessor, toma o próprio juramento divino como argumento e diz: “Lembra-te… aos quais juraste… que multiplicarias a sua descendência como as estrelas”; é exatamente o fio de Hebreus 6: Deus jurou, ninguém desfaz. Deuteronômio 1:10 reconhece, com assombro, que o povo já é “inumerável como as estrelas”, e Neemias 9:23 canta que Deus multiplicou os filhos de Abraão “como as estrelas do céu”. Hebreus 6:14 não inventa nada: apenas levanta a lâmina da promessa para que a luz do Velho Testamento a atravesse.

Mesmo os ecos “de resposta” continuam afinados. Em Gênesis 22:16, o próprio juramento (“por mim mesmo jurei”) enquadra a bênção e a multiplicação; Salmos 3:8 lembra que “do Senhor é a salvação” e “sobre o teu povo a tua bênção”: a mesma bênção da promessa é a vestimenta do povo no presente. Isaías 52:6 (“Eu sou aquele que diz: sou eu”) dá o timbre do juramento: quando Deus se nomeia, Ele garante; Ezequiel 37:26 fala de “aliança de paz” e de multiplicação sob o pastoreio do próprio Deus — é a promessa ganhando carne. E se alguém pergunta onde tudo isso desemboca, Hebreus 10:14 responde com Cristo: “com uma só oferta, aperfeiçoou para sempre os que estão sendo santificados.” A bênção-juramento a Abraão chega ao seu cume no Filho: Ele não apenas nos abençoa, Ele aperfeiçoa; não apenas nos multiplica numericamente, mas nos forma como povo consagrado. Em suma, Hebreus 6:14 aponta para trás (ao juramento patriarcal) e para frente (à obra consumada do Messias), e diz: a bênção prometida e a multiplicação jurada são o trilho sobre o qual Deus move a história da salvação.

Por isso, o versículo seguinte, Hebreus 6:15, desce do monte do juramento e nos mostra os passos no vale: “e assim, tendo esperado com paciência, obteve a promessa.” O grego guarda a pedagogia numa linha: kai houtōs makrothymēsas epetuchen tēs epangelias — “e assim, tendo exercido longanimidade/paciência (makrothymēsas), alcançou/obteve (epetuchen) a promessa (epangelias).” Entre o “jurei por mim” de Deus e o “cumpriu-se” do tempo, existe a escola de Abraão: a sala onde se aprende a esperar. E é exatamente isso que a Escritura desenha, fio a fio. A promessa começa em Gênesis 12:2–3 (“abençoarei… em ti serão benditas todas as famílias da terra”), mas encontra Abraão em condição impossível: sem herdeiro (Gênesis 15:2–6), com uma esposa idosa (Gênesis 17:16) e ele mesmo rindo, pasmo, diante do exagero da graça (Gênesis 17:17). A paciência não é passividade: é fé que permanece sob cargas. Quando enfim “o Senhor visitou Sara” e Isaac nasce “no tempo determinado” (Gênesis 21:2–7), o riso muda de tom: o riso da incredulidade vira riso de alegria, e Abraão pode dizer que Deus fez rir — a promessa, tardando ao relógio humano, não atrasou um segundo ao relógio de Deus.

Essa paciência de Abraão se torna matriz para todo o povo. Êxodo 1:7 mostra a multiplicação iniciada (o verbo “encher”, “multiplicar” e “fortalecer” espelha Gênesis 1 e a promessa a Abraão): é o gérmen da palavra “multiplicando te multiplicarei” já germinando em ambiente hostil. Habacuque, profeta da noite, escreve em tabuletas a mesma lição: “a visão ainda é para o tempo determinado… se tardar, espera-o, porque certamente virá, não tardará” (Habacuque 2:2–3). E quando Paulo, em Romanos 4:17–25, interpreta a biografia de Abraão, ele usa a gramática de Hebreus 6:15: fé que contempla “o Deus que vivifica os mortos e chama à existência as coisas que não são”, fé que “contra a esperança creu” e “não enfraqueceu na fé”, fé que “se fortaleceu dando glória a Deus”, certo de que “é poderoso para cumprir o que prometeu.” É isso que “obter a promessa” significa: não arrancar de Deus o que Ele não quer dar, mas perseverar até que Ele dê o que jurou.

É por isso que Hebreus 6:15 está costurado, em volta, por convocações à mesma perseverança. O versículo 12, imediatamente atrás, já tinha dito: não sejais lerdos, mas imitadores “dos que, pela fé e longanimidade, herdam as promessas.” A tradição inteira endossa. Jesus resume a pedagogia da espera: “pela vossa perseverança, ganhareis as vossas almas” (Lucas 21:19). Paulo pinta o retrato do cidadão do Reino: “vida eterna aos que, perseverando em fazer o bem, buscam glória” (Romanos 2:7); e explica o modo da esperança: o que não vemos, com paciência o aguardamos (Romanos 8:25); por isso, “alegrai-vos na esperança; sede pacientes na tribulação” (Romanos 12:12). Ele reconhece em Tessalônica o trio que sustenta a jornada: “obra da fé, trabalho do amor e firmeza da esperança” (1 Tessalonicenses 1:3), e louva nos mesmos irmãos “a vossa paciência e fé em todas as perseguições” (2 Tessalonicenses 1:4). Pede a Timóteo que suporte como bom soldado (2 Timóteo 2:3). A própria carta aos Hebreus repete: “tendes necessidade de perseverança, para que, depois de haverdes feito a vontade de Deus, alcanceis a promessa” (Hebreus 10:36); lembra de Moisés que “perseverou, como quem vê o invisível” (Hebreus 11:27); manda-nos correr “com perseverança a carreira” (Hebreus 12:1). Tiago sela com duas chaves: “bem-aventurado o homem que suporta a provação” (Tiago 1:12) e “sede pacientes… o lavrador aguarda o precioso fruto” (Tiago 5:7). Pedro inclui a paciência na escada das virtudes (2 Pedro 1:6). E o Ressuscitado, caminhando entre os candeeiros, diz: “tens perseverança” — e isso me agrada (Apocalipse 2:3). Tudo isso é Hebreus 6:15 em coro: a promessa é segura porque Deus jurou; a posse é certa porque a fé espera.

Repare, então, no desenho inteiro. Hebreus 6:14 fixa a fonte: eulogōn eulogēsō… plēthynōn plēthynō (“abençoando te abençoarei… multiplicando te multiplicarei”). A história confirma a trilha dessa fonte: Gênesis, Êxodo, Deuteronômio, Neemias, os Salmos, os Profetas — todos testemunham que Deus fez exatamente o que disse. Hebreus 6:15 fixa o caminho: makrothymēsas epetuchen tēs epangelias (“tendo esperado com paciência, obteve a promessa”). A vida de Abraão, o crescimento de Israel, o ensinamento de Habacuque, a teologia de Romanos 4 e a catequese inteira do Novo Testamento repetem a lição: entre o juramento e o cumprimento há uma escola chamada perseverança. É nessa escola que os herdeiros aprendem a respirar — e é assim que, caminhando no rastro de Abraão, o povo de Cristo vive da promessa, espera a promessa e, no tempo certo, obtém a promessa.

Hebreus 6:16 abre a lógica jurídica e pastoral do parágrafo: “os homens, de fato, juram por alguém maior, e o juramento, para confirmação, é para eles fim de toda contenda.” Em grego transliterado, cada engrenagem aparece: anthrōpoi gar kata tou meizonos omnuousin, kai pasēs antilogias peras eis bebaōsin ho horkos — “os homens juram pelo maior; e o juramento é término de toda disputa, para confirmação.” (omnuō = “jurar”; meizōn = “maior”; antilogia = “disputa/contradição”; peras = “fim”; bebaōsis = “confirmação”; horkos = “juramento”.) O autor apela ao uso comum da vida humana: quando falta confiança, chama-se alguém maior como fiador, e a palavra juramentada encerra a discussão. É assim na história patriarcal: Abraão levanta a mão ao Senhor, “Deus Altíssimo”, para garantir que não tomará nada do rei de Sodoma (Gênesis 14:22); Abimeleque pede a Abraão: “jura-me aqui por Deus” (Gênesis 21:23); o poço de Berseba recebe esse nome porque ali se jurou um juramento (Gênesis 21:30–31). É assim também na lida tensa entre Jacó e Labão: “o Deus de Abraão e o Deus de Naor julgue entre nós” — e juraram (Gênesis 31:53). A Lei reconhece a força encerradora do juramento: em disputas de depósito ou guarda, o “juramento do Senhor” resolve a questão (Êxodo 22:11). A mesma seriedade aparece no pacto com os gibeonitas: Israel jurou; mesmo enganado, ficou vinculado (Josué 9:15–20), e, séculos depois, quando Saul violou esse juramento, veio fome sobre a terra (2 Samuel 21:2). Ezequiel transforma essa gramática em tribunal profético: Zedequias quebrou o juramento feito à Babilônia, e Deus diz: “Eu vivente… o meu juramento desprezou… sobre a sua cabeça farei recair” (Ezequiel 17:16–20). Por trás de tudo, pulsa o terceiro mandamento: “não tomarás o nome do Senhor, teu Deus, em vão” (Êxodo 20:7), porque jurar é evocar o Nome como fiador. É por isso que a Bíblia trata fórmulas como “Vivo o Senhor” com respeito (Rute 3:13; 1 Samuel 20:3; 1 Reis 18:15): não são muletas retóricas; são apelos ao Maior que põe fim à antilogia. Jesus, por sua vez, expõe a raiz do erro farisaico: quem jura “pelo templo” ou “pelo céu” está jurando “pelo trono de Deus e por Aquele que nele está sentado” (Mateus 23:20–22). Em suma, Hebreus 6:16 lembra que, entre nós, o juramento é selo de certeza porque invoca alguém maior.

É por isso que o versículo anterior (6:13) já ressoava como martelo: Deus, não tendo alguém maior por quem jurar, jurou por si mesmo — e agora, em 6:17, o autor explica o porquê desse gesto: “por isso, querendo Deus mostrar mais abundantemente aos herdeiros da promessa a imutabilidade do seu conselho, interpôs-se com juramento.” O grego transliterado revela a arquitetura: en hō perissoteron boulomenos ho theos epideixai tois klēronomois tēs epangelias to ametathetōn tēs boulēs autou, emesiteusen horkō — “desejando mais abundantemente Deus mostrar aos herdeiros da promessa a intransferível/imutável (ametathetōn) decisão/conselho (boulē) dele, interveio/interpos-se com um juramento.” Note as palavras-chave: perissoteron (“mais abundantemente”), klēronomoi (“herdeiros”), ametathetos (“imutável, que não muda de lugar”), boulē (“conselho, desígnio”), emesiteusen (“interpôs-se”; o mesmo verbo da família de mesitēs, “mediador”), horkō (“juramento”). O movimento é de condescendência amorosa: a promessa bastaria; mas Deus, conhecendo a fraqueza de nossos corações, dobrou a certeza — promessa + juramento — para produzir “plena certeza” (6:11) e “forte consolação” (6:18).

Cada bloco de referências trouxe conversa com esses termos. Primeiro, o “mais abundantemente” (perissoteron) não é uma palavra vazia; ela faz coro com a abundância que Deus derrama sobre os seus: “serão inebriados da abundância da tua casa” (Salmos 36:8); “comei, amigos; bebei e embriagai-vos de amores” (Cantares 5:1); “ao ímpio, abandono; ao que volta, abundante perdão” (Isaías 55:7); “Eu vim para que tenham vida e a tenham com abundância” (João 10:10); “segundo a sua grande misericórdia, nos regenerou para uma viva esperança” (1 Pedro 1:3). O Deus que quer mostrar “mais abundantemente” é o mesmo que transborda misericórdia, vida, perdão. Ele não se limita a dizer; Ele confirma.

Depois, os “herdeiros da promessa” (klēronomoi tēs epangelias) são o povo inteiro da fé. O versículo 12 já tinha convocado: imitem “os que, por fé e longanimidade, herdam as promessas” (Hebreus 6:12). Essa linhagem inclui Noé, que “se tornou herdeiro da justiça” (Hebreus 11:7), e Abraão, que habitou “na terra da promessa” como estrangeiro (Hebreus 11:9). O Novo Testamento amplia o círculo: se somos filhos, somos “herdeiros; herdeiros de Deus e coerdeiros de Cristo” (Romanos 8:17); “se sois de Cristo, então sois descendência de Abraão, herdeiros segundo a promessa” (Gálatas 3:29); Deus escolheu “os pobres deste mundo para serem ricos na fé e herdeiros do Reino” (Tiago 2:5); até a vida doméstica é catequese disso: marido e esposa, “coerdeiros da graça da vida” (1 Pedro 3:7). Hebreus 1:14 já falara dos anjos servindo “aos que hão de herdar a salvação”. Em 6:17, o juramento é para eles: Deus quis que os herdeiros vivessem sem tremor quanto ao fundamento.

Chegamos ao coração: a “imutabilidade do seu conselho” — to ametathetōn tēs boulēs autou (“o não-transferível, não-mudável do seu desígnio”). A Bíblia inteira sustenta essa rocha. Jó aprende: “Ele está decidido; quem o desviará? O que sua alma deseja, isso faz. Porque cumprirá o que está determinado para mim” (Jó 23:13–14). Os Salmos cantam: “o conselho do Senhor permanece para sempre” (Salmos 33:11); “a tua verdade é escudo” (Salmos 91:4); “os teus testemunhos são certíssimos” (Salmos 93:5); a fidelidade juramentada a Abraão e Isaque é memória viva (Salmos 105:9). Provérbios resume: “muitos propósitos há no coração do homem, mas o conselho do Senhor permanecerá” (Provérbios 19:21). Isaías transforma isso em refrão: “O Senhor dos Exércitos jurou: como pensei, assim sucederá; e como propus, assim se fará” (Isaías 14:24; cf. 14:26–27); “o meu conselho subsistirá, e farei toda a minha vontade” (Isaías 46:10); “como os montes se movem, a minha aliança de paz não será removida” (Isaías 54:9–10); “assim será a minha palavra… não voltará para mim vazia” (Isaías 55:11). Jeremias usa o relógio cósmico como garantia: se alguém puder quebrar a aliança do dia e da noite, então se quebraria a aliança de Deus com Davi e com Levi (Jeremias 33:20–21, 25–26). Malaquias sela: “Eu, o Senhor, não mudo” (Malaquias 3:6). Paulo traduz em teologia: “os dons e a vocação de Deus são irrevogáveis” (Romanos 11:29); e Tiago acrescenta que, no Pai das luzes, “não há mudança nem sombra de variação” (Tiago 1:17). É isso que Hebreus 6:17 quer mostrar: o conselho de Deus não oscila com as marés; por isso Ele jurou, para que nós, os herdeiros, parássemos de oscilar.

Falta uma dobradiça: “inter-pôs-se com juramento” — emesiteusen horkō (tradução: “pôs-se no meio / interveio com um juramento”). O verbo lembra que Deus não apenas garante de longe; Ele entra na cena como fiador. Na vida humana, vimos como o juramento “fecha a contenda” (Hebreus 6:16; Êxodo 22:11); nos relatos patriarcais, vimos “juramentos de paz” selando relações (Gênesis 26:28). Em Deuteronômio 32:40, Deus descreve o gesto do juramento: “Levanto a minha mão aos céus e digo: Eu vivo para sempre” — é a postura do Rei que se interpõe como garantia. Mesmo nos reinos dos homens ecoa a ideia de irrevogabilidade (Ester 8:8): quando um decreto do rei persa levava o selo, ninguém podia revogá-lo — imagem pálida, mas útil, do que significa Deus selar sua promessa. Por isso, a Escritura pode dizer que quem crê “pôs o seu selo de que Deus é verdadeiro” (João 3:33). A história de Davi confirma o uso de “juramento” como reforço da promessa messiânica (Atos 2:30). A igreja ora certa de que Deus fará “tudo quanto a tua mão e o teu conselho previamente determinaram” (Atos 4:28). E Paulo sintetiza: fomos feitos “herança” “segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade” (Efésios 1:11). Por isso podemos “regozijar-nos na esperança” (Romanos 12:12), porque “Fiel é o que vos chama, o qual também o fará” (1 Tessalonicenses 5:24); porque a esperança é “vida eterna, a qual Deus, que não pode mentir, prometeu” (Tito 1:2), e nos fez “herdeiros segundo a esperança da vida eterna” (Tito 3:7). No fim, essa certeza desemboca em doxologia: a entrada no Reino nos será “amplamente suprida” (2 Pedro 1:11) pelo Deus que não quebra a palavra que jurou.

Se juntarmos os dois versículos, o desenho se completa. Hebreus 6:16 lembra como funciona entre homens: um juramento invocando alguém maior encerra a disputa e dá confirmação. Hebreus 6:17 declara como Deus converte isso em consolo para os herdeiros: desejando mais abundantemente nos mostrar que o seu conselho é imutável, Ele entrou no meio e jurou — emesiteusen horkō (tradução: “inter-pôs-se com juramento”). O resto do parágrafo dirá que, com “duas coisas imutáveis” (promessa e juramento) nas quais é impossível (adynaton, tradução: “impossível”) que Deus minta, temos “forte consolação” e uma âncora para a alma (6:18–20). É essa âncora que mantém o barco quando o vento cresce: não a firmeza do nosso punho, mas a firmeza do rochedo ao qual o cabo se prende — o Deus que prometeu, jurou e, por isso mesmo, cumprirá.

Leia o versículo, ouvido por ouvido, até sentir o seu pulso: hina dia duo pragmatōn ametathetōn, en hois adynaton pseusasthai ton theon, ischyran paraklēsin echōmen hoi kataphygontes kratēsai tēs prokeimenēs elpidos — “para que, por duas coisas imutáveis, nas quais é impossível que Deus minta, tenhamos forte consolação, nós, os que corremos para o refúgio, a fim de agarrar a esperança colocada diante de nós.” Cada sintagma é uma porta para a Escritura inteira — e todas se abrem.

As duas coisas imutáveis (duo pragmatōn ametathetōn, tradução: “dois fatos que não mudam de lugar”) são o que o contexto já mostrou: promessa e juramento (Hebreus 6:13–17). A Bíblia confirma que, quando Deus jura, o assunto fica encerrado. Ele mesmo diz “jurei na minha ira” ao excluir a geração descrente do descanso (Hebreus 3:11): o juramento sela um veredito. Ele diz “jurou o Senhor e não se arrependerá: Tu és sacerdote para sempre” (Salmos 110:4), e a nossa esperança no sacerdócio de Cristo repousa nessa palavra juramentada (Hebreus 7:21). E quando Jesus declara “céu e terra passarão, mas as minhas palavras não passarão” (Mateus 24:35), Ele dá ao termo “imutável” o seu som absoluto: promessa divina não se gasta. Hebreus 6:18 está dizendo: Deus dobrou a garantia — prometeu e jurou — para que a nossa alma parasse de tremer.

Por isso a cláusula seguinte brilha: en hois adynaton pseusasthai ton theon — “é impossível a Deus mentir.” A Escritura canta essa impossibilidade como música de família. “Deus não é homem para que minta” (Números 23:19); “o Triunfador de Israel não mente nem se arrepende” (1 Samuel 15:29). Paulo responde às nossas dúvidas com um choque de realidade: “seja Deus verdadeiro e todo homem mentiroso” (Romanos 3:4); “Ele não pode negar-se a si mesmo” (2 Timóteo 2:13); “na esperança da vida eterna, a qual Deus, que não pode mentir, prometeu” (Tito 1:2). João fecha o cerco: quem diz que Deus mentiu faz do próprio Deus um mentiroso (1 João 5:10); quem diz que não tem pecado chama Deus de mentiroso (1 João 1:10). Em Hebreus 6:18, esse coro desemboca num consolo: se Deus promete e jura, e não pode mentir, então a esperança que Ele nos deu não é gaseificada, é pedra.

E qual é o efeito pretendido? ischyran paraklēsin — “forte consolação/encorajamento vigoroso.” O Antigo Testamento já punha o próprio Deus como sujeito do consolo: “Eu, eu mesmo, vos consolo” (Isaías 51:12); “como a mãe consola… eu vos consolarei” (Isaías 66:10–13). No Natal, Simeão vivia “esperando a consolação de Israel” (Lucas 2:25): o Cristo é a mão de Deus sobre o ombro do povo. Paulo chama Deus de “Deus da perseverança e da consolação” (Romanos 15:5) e testemunha “abundam em nós as consolações por Cristo” (2 Coríntios 1:5–7). Se há “alguma consolação em Cristo” (Filipenses 2:1) — e há —, é porque a promessa-juramento de Deus se transformou em presença fiel. Não por acaso, o mesmo Deus “nos deu eterna consolação e boa esperança, pela graça, e conforte os vossos corações e vos confirme” (2 Tessalonicenses 2:16–17). Isso é paraklēsis em estado sólido.

Quem recebe esse bálsamo? hoi kataphygontes — “os que fugiram para o refúgio.” A imagem vem de longe. Ló ouve: “apressa-te, refugia-te ali; não posso fazer coisa alguma enquanto não entrares” (Gênesis 19:22): justiça e misericórdia se encontram numa corrida para um lugar seguro. A Lei providenciou cidades de refúgio para o homicida culposo (Números 35:11–15; Josué 20:3): a vida salva encontra abrigo juridicamente garantido — como a nossa. Os salmos traduzem a teologia em oração: “Deus é o nosso refúgio e fortaleza” (Salmos 46:1); “derramai perante Ele o vosso coração; Deus é o nosso refúgio” (Salmos 62:8). Isaías desenha o Rei justo “como abrigo contra o vento, refúgio contra a tempestade” (Isaías 32:1–2). Zacarias convoca: “voltai à fortaleza, prisioneiros de esperança” (Zacarias 9:12): refúgio e esperança na mesma sentença, exatamente a estrada de Hebreus 6:18. João Batista pergunta aos curiosos: “Quem vos mostrou a fugir da ira vindoura?” (Mateus 3:7) — e Hebreus responde: Deus mesmo, ao erguer Cristo como lugar seguro. É o que Paulo prega quando roga: “reconciliem-se com Deus” (2 Coríntios 5:18–21) e quando descreve os tessalonicenses “esperando dos céus o seu Filho… Jesus, que nos livra da ira vindoura” (1 Tessalonicenses 1:10). Até Noé entra no quadro: “pela fé, temente a Deus, preparou uma arca para salvação da sua família” (Hebreus 11:7): corrida para o abrigo antes que a tempestade caia. É isso que somos: fugitivos que encontraram asilo em Cristo.

E o que fazem os refugiados? kratēsai tēs prokeimenēs elpidos — “agarrar a esperança colocada diante.” Krateō é verbo de mão cerrada: não é tocar, é segurar firme. A Bíblia ensina esse gesto em várias chaves. Joabe, sabendo-se réu, “pegou-se aos chifres do altar” (1 Reis 2:28): imagem dura de um homem que se agarra ao único lugar onde ainda pode haver misericórdia. A sabedoria é “árvore de vida para os que a seguram” (Provérbios 3:18); “apega-te à instrução, não a largues” (Provérbios 4:13). Deus mesmo convida: “Agarre-se à minha força, faça paz comigo” (Isaías 27:5); denuncia a anemia espiritual: “ninguém há que se agarre a Ti” (Isaías 64:7); louva os que “se apegam à minha aliança” (Isaías 56:4). Paulo transforma o gesto em vocação: “peleja o bom combate da fé, toma posse da vida eterna” (1 Timóteo 6:12). Hebreus está dizendo: agarrem a esperança como quem segura um cabo em mar revolto.

E que esperança é essa? hē prokeimenē elpis — “a esperança proposta/colocada diante.” Os colossenses foram catequizados assim: a esperança está reservada nos céus (Colossenses 1:5), é a esperança do evangelho (Colossenses 1:23), é “Cristo em vós, a esperança da glória” (Colossenses 1:27). Paulo a resume em uma frase-símbolo: “Cristo Jesus, nossa esperança” (1 Timóteo 1:1). O termo prokeimenē (“posta diante”) conversa com duas cenas fortes do Novo Testamento. A primeira é a do culto: “a quem Deus propôs (proethēto, tradução: ‘apresentou/publicou’) como propiciação” (Romanos 3:25) — Cristo é o propiciado exposto à fé dos pecadores, a mesa posta diante de nós. A segunda é a da corrida de Jesus: “pela alegria proposta (prokeimenēs charas, tradução: ‘alegria colocada diante’) suportou a cruz” (Hebreus 12:2), enquanto nós “corremos com perseverança a carreira que nos está proposta” (Hebreus 12:1). A mesma palavra liga o que Deus pôs diante de Cristo (alegria) ao que Deus põe diante de nós (esperança). Ele pôs Cristo à vista do mundo; Ele pôs a esperança à vista dos refugiados.

Veja, então, como as referências cantam em coro com cada frase do versículo. “Duas coisas” imutáveis? O juramento do Salmo 110 e de Hebreus 7, e a palavra de Jesus que não passa (Hebreus 3:11; Hebreus 7:21; Salmos 110:4; Mateus 24:35). “Impossível Deus mentir”? A santidade inquebrantável de Números 23:19, 1 Samuel 15:29, Romanos 3:4, 2 Timóteo 2:13, Tito 1:2, 1 João 1:10; 5:10. “Para que tenhamos consolação”? O Deus que diz “eu vos consolo” (Isaías 51:12; 66:10–13), a espera de Simeão (Lucas 2:25), o Deus da consolação (Romanos 15:5), as consolações que superabundam (2 Coríntios 1:5-7), a “consolação em Cristo” (Filipenses 2:1), a “eterna consolação” (2 Tessalonicenses 2:16-17). “Nós, os que corremos para o refúgio”? As cidades de refúgio (Números 35; Josué 20), a pressa de Ló (Gênesis 19:22), o refúgio de Deus (Salmos 46; 62), o Rei-abrigo (Isaías 32:1–2), os “prisioneiros de esperança” (Zacarias 9:12), o aviso contra a ira (Mateus 3:7), o chamado à reconciliação (2 Coríntios 5:18–21) e a espera pelo Libertador (1 Tessalonicenses 1:10). “Agarrar a esperança posta diante”? Joabe agarrado ao altar (1 Reis 2:28); a sabedoria “segurada” (Provérbios 3:18; 4:13); os que se apegam à força e à aliança (Isaías 27:5; 56:4; 64:7); os que “tomam posse” da vida eterna (1 Timóteo 6:12). E de que esperança falamos? Da que está reservada (Colossenses 1:5), do evangelho (Colossenses 1:23), do próprio Cristo (Colossenses 1:27; 1 Timóteo 1:1). Onde ela está? Diante de nós, como propiciação exposta (Romanos 3:25) e como “alegria proposta” (Hebreus 12:1–2) — um alvo tão real que sustenta a corrida.

No fim, Hebreus 6:18 é menos um conceito e mais um abraço. Deus quis amarrar a nossa esperança em dois nós que não se desfazem — epangelia e horkos, promessa e juramento —, respaldados por dois absolutos: ametathetos (tradução: “imutável”) e adynaton pseusasthai (tradução: “impossível mentir”). Ele fez isso “para que tenhamos forte consolação”. Nós, então, fazemos a única coisa sensata: corremos para o refúgio e agarramos a esperança que Ele pôs diante de nós. O resto do parágrafo dirá que essa esperança é uma âncora (6:19). Mas, já aqui, a corrente está presa: do lado de Deus, uma palavra jurada; do nosso, duas mãos fechadas. Isso basta para atravessar qualquer tempestade.

Leia o verso, sinta o peso de cada palavra: hēn hōs ankuran echomen tēs psychēs asphalē te kai bebaian, kai eiserchomenēn eis to esōteron tou katapetasmatos — “a qual [esperança] temos como âncora (ankuran, tradução: “âncora”) da alma (psychēs, tradução: “alma”), segura (asphalē, tradução: “segura/à prova de queda”) e firme (bebaian, tradução: “estável/inabalável”), e [que] entra (eiserchomenēn, tradução: “penetra/entra”) para o interior do véu (eis to esōteron tou katapetasmatos, tradução: “na parte interna, além do véu”). Hebreus 6:19 costura três imagens: uma âncora, uma dupla garantia (“segura e firme”) e um acesso que atravessa o véu. E cada fio puxa toda a Escritura.

A âncora é linguagem de tempestade. Quando a embarcação de Paulo quase se desfaz, os marinheiros “lançam quatro âncoras da popa” e anseiam pelo dia (Atos 27:29); e, na hora crítica, “soltam as âncoras” e confiam que a proa alcance a praia (Atos 27:40). Hebreus toma essa experiência marítima e a converte em teologia: nossa esperança não é um sentimento, é ferro lançado ao fundo certo. O que mantém o navio não é a bravura do tripulante, mas onde a âncora agarra. Aqui, a âncora da alma crava-se além do véu — não no fundo do mar, mas no Santo dos Santos.

A dupla expressão “segura e firme” explica por que essa âncora não cede. A alma “espera em Deus” quando está abatida (Salmos 42:5; 42:11; 43:5): cada refrão é um cabo dado mais uma volta no cabeço. “Somente em Deus, ó minha alma, espera silenciosa… Ele somente é a minha rocha… não vacilarei” (Salmos 62:5–6): isso é asphalē (segura). “Bem-aventurado é aquele que tem o Deus de Jacó por ajuda, sua esperança no Senhor que fez o céu e a terra” (Salmos 146:5–6): se o Criador sustenta as órbitas, sustém a tua esperança — isso é bebaian (firme). “Eis Deus é a minha salvação, confiarei e não temerei” (Isaías 12:2); “foste fortaleza ao pobre, refúgio contra a tempestade” (Isaías 25:3–4): a rocha que cobre do vento é a mesma que segura o ferro. “Eis que ponho em Sião uma pedra provada… quem crer não se apressará” (Isaías 28:16): fé que não se precipita é esperança aprumada. Jeremias desenha o retrato botânico da firmeza: “bendito o homem que confia no Senhor… será como árvore junto às águas… não receia quando vem o calor” (Jeremias 17:7–8). Paulo leva isso ao miolo da promessa: “depende da fé, para que seja segundo a graça, a fim de que a promessa seja segura” (Romanos 4:16) — bebaia no vocabulário da carta. E em Romanos 5 a esperança não decepciona porque o amor de Deus foi derramado (5:5–10); em Romanos 8, nada “poderá separar-nos do amor de Deus” (8:28–39): se nada corta o cabo, a âncora permanece. É por isso que nos mandam ser “firmes, inabaláveis” (1 Coríntios 15:58) — eco direto de bebaian — e descansar no selo: “o fundamento de Deus fica firme” (2 Timóteo 2:19). “Segura e firme” não são adjetivos poéticos; são vereditos: Deus amarrou o cabo do nosso lado ao seu próprio caráter.

Mas a imagem vai além: a esperança “entra para o interior do véu”. O véu marcava a separação do Santo dos Santos. Em Levítico 16:2, Deus alerta: “não entre a qualquer tempo… dentro do véu”; só o sumo sacerdote, “uma vez no ano”, com sangue (Levítico 16:15). Hebreus já nos ensinou a “aproximar-nos com ousadia ao trono da graça” (Hebreus 4:16) porque Jesus é o nosso Sumo Sacerdote; explicará que havia um “segundo véu” (Hebreus 9:3), atrás do qual o sumo sacerdote entrava “uma vez por ano” (Hebreus 9:7). E anunciará a novidade: temos “um novo e vivo caminho” “pelo véu, isto é, pela sua carne” (Hebreus 10:20), e um “grande sacerdote sobre a casa de Deus” (Hebreus 10:21). Quando “o véu do santuário se rasgou de alto a baixo” (Mateus 27:51; cf. Marcos 15:38; Lucas 23:45), Deus aboliu a distância. Agora, a nossa esperança não ancora na antecâmara; ela passa o pano, atravessa o santo lugar e se fixa lá dentro. Isso muda a nossa posição: “Ele nos fez assentar nos lugares celestiais em Cristo” (Efésios 2:6); portanto, “buscai as coisas lá do alto, onde Cristo está, assentado à direita de Deus” (Colossenses 3:1). A âncora puxa de cima: vivemos aqui, mas presos lá.

Essa mesma esperança sustentou os santos e estrutura a nossa vida de “reciprocidades” com o texto. As cidades de refúgio (Josué 20:2) eram postos onde o perseguido viv ia: Hebreus 6:18 já nos chamou de “os que fogem para o refúgio”; agora diz que a nossa âncora prende-se no santuário, o refúgio definitivo. Davi canta um pacto eterno, “bem ordenado e seguro” (2 Samuel 23:5): isso é bebaion, a firma do Rei no decreto. “A lei do Senhor é perfeita… o testemunho do Senhor é fiel/seguro” (Salmos 19:7): o cabo não se apodrece. A rasgadura do véu na morte de Cristo (Marcos 15:38; Lucas 23:45) é a hora em que a amarra encontra o olhal do Santo dos Santos. O Cristo elevado (Atos 1:2) é o nosso ponto de fixação; por isso, “na esperança fomos salvos” (Romanos 8:24) e essa esperança permanece com fé e amor (1 Coríntios 13:13). “Há uma só esperança da vossa vocação” (Efésios 4:4); não devemos nos “desviar da esperança do evangelho” (Colossenses 1:23), antes manter a “solidez” da fé (Colossenses 2:5). O evangelho veio “com poder e plena certeza” (1 Tessalonicenses 1:5), e por isso vestimos “o capacete da esperança da salvação” (1 Tessalonicenses 5:8). O próprio Deus nos deu “eterna consolação e boa esperança” (2 Tessalonicenses 2:16), e nós aguardamos “a bem-aventurada esperança” (Tito 2:13). Fé é a “substância das coisas esperadas” (Hebreus 11:1); fomos “regenerados para uma viva esperança” (1 Pedro 1:3); por isso, “cingi o entendimento… esperai totalmente na graça” (1 Pedro 1:13) e estai “sempre prontos a responder… a razão da esperança” (1 Pedro 3:15). Enquanto isso, “fazei firme a vossa vocação e eleição” (2 Pedro 1:10): a âncora é firme em Deus; o cabo, nas mãos.

E repare como o miolo de Romanos 5 convida a alma a falar consigo: “Por que estás abatida, ó minha alma? Espera em Deus.” É o coro dos Salmos (42:5, 11; 43:5) traduzido na teologia apostólica (Romanos 5:5–10): a esperança não nos deixa na mão. Jeremias 17:7–8 e Isaías 25:4 explicam por que: a raiz não está no clima, mas na fonte; o abrigo não é uma tenda frágil, é fortaleza em tempestade. É por isso que Hebreus 6:19 adiciona asphalē (segura) a bebaian (firme): uma diz que não cai; a outra, que não se move. A alma, então, pode obedecer à ordem da Carta: “sede firmes, inabaláveis” (1 Coríntios 15:58), porque “o fundamento de Deus permanece” (2 Timóteo 2:19).

No fim, a cena é assim: a esperança que Deus prometeu e jurou (6:17–18) é ankuran (âncora) para a psychē (alma). Ela é asphalē e bebaia (segura e firme) porque não se prende a areia, e sim ao Filho que rasgou o véu e entrou. Ela eiserchetai (entra) eis to esōteron tou katapetasmatos (no interior do véu), de onde puxa a nossa vida para cima. Por isso, podemos dizer com todos os textos que nos cercam: há esperança, uma esperança, viva esperança — e ela não é um boato piedoso; é um ferro cravado no Santo dos Santos.

Leia o versículo como quem atravessa um limiar: hopou prodromos huper hēmōn eisēlthen Iēsous, kata tēn taxin Melchisedek archiereus eis ton aiōna — “onde o precursor (prodromos, tradução: ‘batedor/aquele que vai na frente’), por nós (huper hēmōn, tradução: ‘em favor de nós’), entrou (eisēlthen, tradução: ‘penetrou/ingressou’) Jesus, segundo a ordem de Melquisedeque (kata tēn taxin Melchisedek, tradução: ‘conforme a fileira/ordem de Melquisedeque’), sumo sacerdote (archiereus, tradução: ‘sacerdote máximo’) para sempre (eis ton aiōna, tradução: ‘por toda a era/eternamente’).” Cada palavra acende um farol.

Prodromos” — o que vai adiante — é o parente próximo de outro título que a própria carta já deu a Cristo: archēgos (tradução: “pioneiro/capitão”), “aquele que conduz muitos filhos à glória” (Hebreus 2:10). Não é um guia que aponta a trilha à distância; é o que pisa antes, abre passagem e nos puxa por dentro. Foi assim quando Ele disse: “Na casa de meu Pai há muitas moradas; vou preparar-vos lugar… virei outra vez e vos levarei para mim mesmo” (João 14:2–3). O “precursor” não apenas chega; prepara e leva. É a mesma imagem de Miqueias: “o que abre caminho subirá diante deles… o rei irá adiante deles, e o Senhor à sua frente” (Miqueias 2:13). A Bíblia inteira sabe reconhecer esse modo de liderar: “quando põe para fora todas as suas ovelhas, vai adiante delas, e elas o seguem” (João 10:4). Até a travessia do Jordão já dramatizava essa verdade: a arca vai na frente, as águas se abrem, e o povo passa a seco (Josué 3:6). Hebreus 6:20 põe nome ao gesto: prodromos — Cristo cruzou o umbral antes, por nós.

Huper hēmōn” — “por nós” — é a espinha do versículo. Não é só que Ele chegou; Ele chegou representando-nos. A carta martela isso: o Filho, “tendo feito a purificação dos pecados, assentou-se à destra da Majestade” (Hebreus 1:3); “temos um grande sumo sacerdote que penetrou os céus” (Hebreus 4:14); “o ponto principal é: temos tal sumo sacerdote, que se assentou à destra do trono” (Hebreus 8:1). E quando descreve o seu ofício, ela usa o verbo do nosso verso: Ele “entrou (eisēlthen) uma vez por todas, não por sangue de bodes e bezerros, mas pelo seu próprio sangue” (Hebreus 9:12); “entrou no próprio céu para comparecer agora, por nós, diante de Deus” (Hebreus 9:24). É por isso que, ao fim da corrida, Ele é chamado de archēgos kai teleiōtēs tēs pisteōs (tradução: “pioneiro e consumador da fé”), que “pela alegria proposta suportou a cruz” (Hebreus 12:2): Ele abre o caminho e o leva até o fim. Toda a cadeia apostólica concorda: Cristo “está à direita de Deus e intercede por nós” (Romanos 8:34); Deus “nos abençoou com toda sorte de bênção espiritual nos lugares celestiais, em Cristo” (Efésios 1:3), porque o Pai “o assentou à sua direita, acima de todo principado… e o deu como Cabeça à Igreja” (Efésios 1:20–23); Ele “subiu aos céus e está à direita de Deus” (1 Pedro 3:22). E o efeito em nós é real: “os vossos pecados são perdoados por causa do seu nome” (1 João 2:12). Quando Hebreus 6:19 disse que a nossa esperança entra “além do véu”, 6:20 completa: quem entrou lá é por nós — e como nós —, nosso precursor e representante.

O título final explica “como” Ele nos representa: “sumo sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedeque.” A carta nos manda “considerar o apóstolo e sumo sacerdote da nossa confissão, Jesus” (Hebreus 3:1); depois, pela boca do Salmo 110, o Pai diz duas vezes ao Filho: “Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque” (Hebreus 5:6; 5:10). Em Hebreus 7, isso vira doutrina de alicerce: Melquisedeque (Gênesis 14:18), rei de Salém e sacerdote do Deus Altíssimo, abençoa Abraão, recebe dízimos, e seu sacerdócio pré-levítico e sem sucessão aponta para um sacerdócio eterno e superior (Hebreus 7:1–21). O juramento do Salmo — “jurou o Senhor e não se arrependerá” — garante que esse sacerdócio não acaba (Salmos 110:4). Zacarias já tinha insinuado a coroa sentada sobre um “sacerdote no trono” (Zacarias 6:13): realeza e sacerdócio unidos. Hebreus 6:20 diz: é isso que Jesus é agora. E porque é sacerdote, Ele mesmo leva as “ofertas levantadas ao Senhor” que, no passado, eram confiadas aos levitas (Números 18:28), lembrando a cena de Hebreus 7:8: “ali, recebe dízimos aquele de quem se testifica que vive.”

Olhe agora como o fio da ascensão fecha o desenho. “O Senhor subiu ao alto” (Salmos 68:18) — o salmo que a tradição cristã sempre ouviu na ascensão do Messias —; “firmou o rosto para subir a Jerusalém” (Lucas 9:51): não foi arrastado; propôs-se; “depois de falar… foi elevado às alturas” (Marcos 16:19; Atos 1:2). Essa subida não é abandono; é vanguarda. “Vou adiante de vós” (João 10:4), “entrarei primeiro” (Hebreus 6:20), “e depois vos tomarei para mim” (João 14:3). Por isso a Igreja canta vitória como quem volta de uma batalha vencida pelo seu Rei (2 Crônicas 20:27), e caminha atrás dEle como quem atravessa um rio que já foi aberto (Josué 3:6). Tudo converge para a casa de Deus: “temos um grande sacerdote sobre a casa de Deus” (Hebreus 10:21). É essa casa que agora está aberta, porque o “véu” — katapetasma (tradução: “cortina/vedação”) — foi rasgado (Mateus 27:51). Ele, o prodromos, entrou onde nenhum filho de Adão podia pôr o pé — e entrou por nós.

Volte, por um momento, ao início do versículo e perceba a ordem: prodromos… huper hēmōn… eisēlthen. Primeiro, o modo (precursor); depois, o beneficiário (por nós); enfim, o ato (entrou). Nada aqui é decorativo. Se Jesus fosse apenas um exemplo, poderia ir na frente e nos abandonar; se fosse apenas nosso benfeitor distante, poderia agir por nós sem pôr os pés onde era proibido; mas Ele é as duas coisas: vai adiante por nós entrando de fato no Santo dos Santos. Daí, todo o restante da carta respira: “confessemos Aquele que assentou-se à direita da Majestade” (Hebreus 1:3), “retenhamos a confissão” porque “temos um grande sacerdote” (Hebreus 4:14), “acerquemo-nos com ousadia” (Hebreus 10:21). E porque Ele é archiereus eis ton aiōna (tradução: “sacerdote para sempre”), a nossa confiança é de longo curso: “permanecei firmes e inabaláveis” (1 Coríntios 15:58); “o fundamento de Deus fica firme” (2 Timóteo 2:19). Se tudo isso é verdadeiro — e é —, então toda bênção “nos lugares celestiais” (Efésios 1:3) já começou a pingar na nossa cabeça, porque o nosso Cabeça já está lá (Efésios 1:20–23).

No fim, Hebreus 6:20 nos dá um mapa da vida cristã em uma frase. A âncora (6:19) prende-se onde Jesus está; e Jesus está além do véu, à frente, por nós, para sempre, como sacerdote-rei na linha de Melquisedeque. É por isso que a esperança não nos envergonha: o cabo que seguramos na mão está amarrado ao precursor que, hoje mesmo, vive e intercede — e que logo voltará para nos levar ao lugar que preparou.

Índice: Hebreus 1 Hebreus 2 Hebreus 3 Hebreus 4 Hebreus 5 Hebreus 6 Hebreus 7 Hebreus 8 Hebreus 9 Hebreus 10 Hebreus 11 Hebreus 12 Hebreus 13

Bibliografia

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