Tiago 1:1-27 — Explicação por Versículos
Tiago 1.1-27
A. A Atitude Cristã em Relação às Provas, 1.2-4
Meus irmãos (v. 2) era uma expressão que os cristãos primitivos lembravam do seu contexto judaico. Neste caso, irmãos incluiria os cristãos judeus e os cristãos gentios. A palavra que fecha o versículo 1, “saúde” (regozijar-se), é retomada no versículo 2, por meio da palavra gozo. E como se Tiago estivesse dizendo: “Desejo a vocês gozo; e vocês devem considerar puro gozo todas as dificuldades que podem lhes sobrevir”.1 Tentações (peirasmoi) é uma palavra que tem um sentido duplo de provações exteriores e tentações interiores. Neste contexto, a melhor tradução é “provações” (ARA).
Não podemos escolher ter ou não ter provações; provavelmente Deus não podia deixar que escolhêssemos quanto ao que é bom para nós! Não cabe a nós decidir se vamos ter ou não provações; apenas podemos escolher qual será a nossa atitude em relação a elas. Aqui recebemos o conselho de Deus: “Quando as provações e tentações se acumulam em suas vidas, meus irmãos, não as vejam como intrusas, mas recebam-nas como amigas!” (Phillips). No entanto, as dificuldades não devem surgir por iniciativa nossa. Não é quando infligimos sofrimento a nós mesmos, mas quando “caímos” nas dificuldades, é que podemos considerar que foram colocadas em nosso caminho por Deus e devem ser vistas como uma fonte de alegria em vez de tristeza.2
Estar alegre no meio da aflição é uma tarefa difícil! Mas este é o conselho de Deus aqui, e o autor se apressa em explicar a razão (cf. Romanos 5.3-5; 1 Pe 1.6-7). O “sangue, suor e lágrimas” da vida cristã têm um propósito. Eles são um dos meios para o nosso cresci mento rumo à semelhança com Deus. O atleta pode encontrar gozo no rigor do seu treinamento enquanto mantiver em mente a sua meta de vencer a corrida. O cristão pode encontrar gozo, até mesmo nas provações, quando percebe que essas provações são um meio para tornar-se mais semelhante a Cristo. Ele pode, em certos momentos, estar tão próximo de Deus que pode considerar a provação um grande gozo. Nesse conselho, Tiago está ecoando o ensinamento do nosso Senhor (Mateus 5.11-12).
Ter grande gozo parece não harmonizar com várias tentações. Se as provações são múltiplas (ASV), a graça triunfante de Deus é ainda mais abundante. A atitude cristã deve ser mais do que mera tolerância; ela deve ser triunfante. Se obstinadamente enrijecermos nossos queixos, rangermos os dentes e aguentarmos com um espírito decaído, ainda não alcançamos a atitude que a Palavra de Deus requer de nós aqui. Nossos fardos podem ser pesados, mas não devemos permitir que toda nossa energia e esforços sejam despendidos em suportar o que precisamos suportar. Se nossas dificuldades não nos fazem bem, elas nos fazem mal. Enquanto levamos nossos fardos de maneira corajosa, podemos experimentar o gozo do Senhor: gozo apesar de todos esses fardos; uma felicidade profunda à medida que percebemos que os fardos não podem nos subjugar; uma clara percepção de comunhão com Cristo à medida que Ele carrega a parte mais pesada do nosso fardo; gozo real no fato de que por meio dessas provações gozamos da “comunhão dos seus sofrimentos” (Filipenses 3.10) e estamos sendo moldados à sua semelhança. Aprova da nossa fé (v. 3) fortalece nossa paciência. Jesus disse: “E na vossa paciência que ganhareis a vossa alma” (Lc 21.19, ASV). Tiago não nos dá este conselho com base na sua autoridade pessoal. Sabendo que significa: “Descubram por conta própria”. O tempo do verbo sugere uma ação progressiva e contínua — descobrindo continuamente. O apóstolo diz, na verdade: “Procurem ser alegres e perseverantes e vejam se não é a melhor maneira de lidar com as suas provações”.
E por que deveríamos continuar provando? Tasker responde: “Para que os cristãos sejam perfeitos e completos, avançando até alcançar a vida equilibrada de santidade perfeita e íntegra”.3 Essa é a vontade de Deus para o cristão. A exortação aponta para uma santidade representando o alvo mais elevado da maturidade cristã. Mas essa maturidade não deve estar dissociada do cumprimento do mandamento do nosso Senhor e da sua provisão para alcançar esse elevado nível de santidade. A palavra perfeitos é a mesma que Jesus usou quando instruiu seus seguidores: “Sede vós, pois, perfeitos, como é perfeito o vosso Pai, que está nos céus” (Mt 5.48).
Em Tiago 1.2-6, encontramos alguns dos frutos que crescem quando procuramos desenvolver “Gozo no Meio da Provação”:
1) Paciência (v. 3);
2) Oração — pedir a Deus (v. 5);
3) Fé (v. 6).
B. A Oração pelo Melhor de Deus, 1.5-8
No pensamento final do versículo 4, encontramos a palavra “faltar”. Essa mesma palavra aparece novamente no versículo 5. E há mais uma conexão. Tiago acabou de dar aos seus companheiros cristãos uma tarefa excessivamente difícil: “Prezados irmãos, acaso a vida de vocês está sendo cheia de dificuldades e tentações? Então estejam felizes” (1.2. LL). Bede interpreta a conexão entre esses versículos como a pergunta natural do crente: “Como posso entender a provação desse ponto de vista? Necessita-se de uma sabedoria mais elevada”.4 Tiago conhece a resposta para essa pergunta: E, se algum de vós tem falta de sabedoria, peça-a a Deus (v. 5).
1. A Natureza da Sabedoria (1.5)
Que tipo de sabedoria Tiago exorta seus irmãos em Cristo a pedir? E mais do que conhecimento e vai além de qualquer realização humana natural. Robertson escreve: “Em Tiago, a sabedoria é o uso correto das oportunidades no viver santo. E viver como Cristo viveu, de acordo com a vontade de Deus”.5 Mayor compara essa oração pela sabedoria à oração de Paulo pelo Espírito.6 Moffatt diz o seguinte acerca dessa sabedoria:
“Essa sabedoria significava uma vida que interpretava a lei divina como a regra de fé e moral; a ênfase recaía na exigência moral e espiritual [...] O que Tiago quer dizer com a sabedoria é que ela é o dom da alma por meio da qual o crente reconhece e percebe a regra divina de vida chamada justiça”7 (cf. 1.20; 3.17-18). Knowling é mais específico em sua interpretação: “Tiago [...] atribui este elevado lugar à sabedoria ao conhecê-la não somente no livro da Sabedoria [...] mas em homens ‘cheios do Espírito Santo e de sabedoria’ (At 6.3), e como deve tê-la percebido nEle, ‘que é maior do que Salomão’ [...] descrito como ‘cheio de sabedoria’ (Lc 2.40)”.8 Knowling cita Beyschlag que interpreta a sabedoria no pensamento de Tiago como “o dom d.e Deus que prepara o homem para toda boa obra [...] não sendo essencialmente diferente daquilo que é conhecido numa passagem paralela de o dom do Espírito Santo (Lc 11.13)”.9
2. O Dom de Deus (1.5)
A evidência certamente aponta para a ideia de que esta sabedoria da qual Tiago escreve é o melhor dom (presente) que Deus tem para dar ao seu povo. Na verdade, trata-se dEle próprio por intermédio do seu Espírito Santo. Jesus concluiu: “E qual o pai dentre vós que, se o filho lhe pedir pão, lhe dará uma pedra? [...] se vós, sendo maus, sabeis dar boas dádivas aos vossos filhos, quanto mais dará o Pai celestial o Espírito Santo àqueles que lho pedirem?” (Lc 11.11,13). A sabedoria que um seguidor de Cristo deve pedir — este “uso correto das oportunidades no viver santo”, este “dom da alma por meio do qual o crente reconhece e percebe [...] justiça” — o autor acredita ser o dom prometido do Espírito Santo.
A sabedoria por todas as decisões futuras da vida cristã não é dada em um único momento, mas Aquele que é a Fonte de todas as escolhas cristãs sábias é prometido como um dom de Deus para aqueles que pedem pela sua presença. Jesus disse o seguinte acerca do Espírito Santo prometido: “Mas, quando vier aquele Espírito da verdade, ele vos guiará em toda a verdade” (Jo 16.13). Se faltar ao homem aquilo (sabedoria) que precisa para viver a vida cristã, ele deve pedir a Deus, que a todos dá liberalmente e não o lança em rosto; e ser-lhe-á dada (v. 5). Quando Tiago falou da generosidade divina, pode ter lembrado das palavras do nosso Senhor: “porque ele dá o Espírito sem limitações” (Jo 3.34, NVI).
3. Um Dom Recebido pela Fé (1.6a)
Se alguém sente falta de poder para enfrentar suas provações com gozo, precisa pedi-la a Deus. Peça-a, porém, com fé. Para que o nosso pedido seja concretizado, precisamos ser absolutamente sinceros. Será que realmente queremos o tipo de ajuda que Deus escolhe dar-nos ou secretamente esperamos encontrar um caminho mais fácil? Temos fé suficiente na sabedoria e no amor de Deus para permitir que nos transforme em pessoas semelhantes a Ele, por meio do dom da sua própria vida? Esse dom, semelhantemente a todo dom espiritual de Deus, vem pela fé: “E necessário que aquele que se aproxima de Deus creia que ele existe e que é galardoador dos que o buscam” (Hb 11.6). Com fé “implica oração [...] que pede por sabedoria [...] e que por meio dela o que pede se torna o cristão completo que deve ser”.10
4. O Dom de uma Alma Unificada (1.6b-8)
O coração dividido não é caminho para triunfar na provação. Se estivermos com o coração dividido, vamos receber somente a metade — ou menos! Seremos como a onda do mar (v. 6), que em um momento apressa-se em direção à praia da fé e esperança e no momento seguinte volta-se para o oceano da descrença. Em nosso comportamento em relação a Deus não deve haver inconstância, em que queremos que parcialmente as coisas ocorram do nosso jeito e parcialmente do jeito de Deus. Esta instabilidade é a marca de um homem de coração dobre (v. 8; gr., dipsychos, lit., dupla alma), um homem de afeições divididas e uma vontade não subjugada, desejando segurar os dois mundos.11 É essa inconstância que não permite que uma pessoa encontre o gozo em suas provações e é essa mesma disposição que vai bloqueá-la de receber a ajuda que precisa de Deus. Uma pessoa deve crer de toda sua alma que há ajuda em Deus. Com base nessa fé resoluta é que uma pessoa pode esperar o dom que está procurando — ser-lhe-á dada (v. 5). E o dom é a singeleza de coração que procuramos manifestar no pedido: Um coração conformado, submisso, meigo, O trono do meu grande Redentor, Onde somente Cristo fala, Onde Jesus reina soberano. (Charles Wesley)
C. Verdadeiras Riquezas, 1.9-11
Os versículos 9-11 não apresentam uma conexão direta com os versículos 5-8, mas estão relacionados com o tema dos versículos 2-4. Entre as provações que o cristão do primeiro século enfrentava constavam as privações da pobreza, junto com a exploração pelos ricos e poderosos. O irmão abatido (v. 9) é um cristão infligido pela pobreza, um dos “meus irmãos” (v. 2) e não apenas um pobre qualquer. O rico (v. 11) parece o homem que confia em suas riquezas e não é, portanto, um verdadeiro seguidor de Cristo. No entanto, comentaristas diferem nesse ponto. Se o rico é uma pessoa abastada e impiedosa, então os versículos 10-11 são uma advertência severa ao fim trágico de uma vida impiedosa. Se, por outro lado, o rico (v. 10) é um cristão abastado, esses versículos são uma advertência igualmente severa aos convertidos que dependem da sua riqueza material.
1. Origem da Verdadeira Alegria (1.9-10a)
O irmão cristão (v. 9) pode regozijar-se mesmo debaixo da opressão da pobreza. Ele não tem prazer nas suas privações, mas possui a fonte da verdadeira alegria que eleva o seu espírito acima das limitações materiais. A exaltação é o que a comunhão com Cristo faz pelo sentimento de dignidade de uma pessoa diante de Deus. Quando um homem sabe que pertence a Cristo e aprendeu a valorizar os valores espirituais da vida, não precisa de muitas vantagens materiais para ser um homem satisfeito e alegre (Cf. Fp 4.10-13).
2. O Fracasso da Segurança Falsa (l.l0b-11)
Semelhantemente, o único motivo da verdadeira alegria para o rico (v. 10) é que ele experimentará abatimento. Essa humilhação é a reorientação de valores que o rico experimenta quando ele segue a Cristo. O rico que se torna um discípulo logo aprende o que seu Mestre ensinou: “A vida de qualquer não consiste na abundância do que possui. Mais é a vida do que o sustento, e o corpo, mais do que as vestes” (Lc 12.15, 23). Tiago ilustra a segurança a curto prazo de todos os recursos materiais e meramente humanos com uma figura bíblica familiar (cf. Is 40.6-8; 1 Pe 1.24). A flor da erva provavelmente refere-se às esplendorosas flores silvestres da Palestina que cresciam nas pastagens (cf. “lírios do campo”, Mt 6.28). O sol com ardor (v. 11) era uma figura conhecida para todos que habitaram na Palestina. O vento leste quente do deserto da Síria (veja mapa 2) podia transformar os pastos verdes em pastos secos em um único dia. A formosa aparência do seu aspecto perece é graficamente traduzido da seguinte maneira: “A flor murcha, suas pétalas caem e o que era encantador aos olhos, perde-se para sempre” (NEB). Tiago deixa seu ponto claro: assim se murchará também o rico. A expressão em seus caminhos implica que se refere ao rico impiedoso que confia em suas riquezas. As palavras podem referir-se às jornadas de um comerciante rico e suas atividades desassossegadas em acumular riquezas.
Sabe-se que Paulo extraía suas metáforas das ocupações humanas — construção, agricultura, disputas atléticas e lutas. Tiago, por outro lado, semelhantemente a Jesus, prefere cenas da natureza: “onda do mar” (1.6), “flor do campo” (1.10), “curso da natureza” (3.6), “toda a natureza, tanto de bestas-feras como de aves” (3.7), “fonte” (3.11), “a figueira” (3.12), “o precioso fruto da terra” (5.7) e “o céu deu chuva” (5.18).
D. Entendendo Prova e Tentação, 1.12-18
A palavra tentação (v. 12) tem dois significados gerais. Um desses significados refere-se a aflições, perseguições ou provações diante de circunstâncias providenciais. E nesse sentido que Tiago usa a palavra mais no início desse capítulo e no versículo 12. Temeroso com a possibilidade de que seus leitores pudessem achar que a tentação interior tivesse o mesmo significado das provações exteriores, Tiago discute nos versículos 13-18 o significado mais amplo do termo como um convite para o pecado.
1. Recompensa pela Perseverança (1.12)
O versículo 12 não está intimamente relacionado com o versículo 11, mas continua a discussão acerca das provações vista nos versículos 2-4. Tiago afirma nesse ponto que o homem que enfrenta provações com coragem e gozo é um homem bem-aventurado (feliz, cf. 5.11). Apalavra nos lembra das Bem-aventuranças (Mt 5.10-12) e é encontrada frequentemente no Antigo Testamento (e.g., SI 1.1-3) bem como em 1 Pedro 3.14; 4.14. A coroa era usada pelos judeus para representar a felicidade suprema. Aqui a coroa da vida pode referir-se a alguma passagem específica do Antigo Testamento, e.g., a tradução da Septuaginta de Zacarias 6.14: “A coroa será dada àqueles que perseverarem”. Sofre a tentação (“persevera na provação”, NVI; “suporta, com perseverança, a provação”, ARA) deve ser entendido como enfrentando as provações de acordo com a recomendação dos versículos 2-4. Quando for provado traz consigo o significado de “depois de ter sido aprovado” (ARA; cf. Rm 14.18; 16.10; 2 Tm 2.15). O alvo final do cristão é a vida eterna. E uma qualidade de vida que começa aqui e agora, mas o clímax encontra-se além do túmulo. Esse alvo é aqui chamado de a coroa da vida, um símbolo que é expresso da seguinte maneira em Mateus 25.21: “Bem está, servo bom e fiel”.
2. A Tentação não Vem de Deus (1.13)
As dificuldades da escolha moral trazem a “coroa da vida” quando as enfrentamos com perseverança, mas elas também podem suscitar perguntas na mente. Quando isso ocorre, passamos da área das provações para o campo da tentação. Tiago tem em mente um homem que busca uma desculpa pelos seus fracassos em ser perseverante. Esse homem diz: “Essa tentação é pesada demais para mim; a culpa é de Deus”. O autor deixa claro que nenhum homem que sente um impulso de pecar deve dizer: De Deus sou tentado (v. 13). Deus permite as provações para tornar-nos fortes, mas Ele nunca nos incita a fazer o mal. Deus é um Deus santo; seu plano de redenção foi planejado para destruir o pecado. Por causa da sua natureza, Deus não pode ser tentado pelo mal; incitar uma das suas criaturas a pecar seria uma violação do seu propósito ao enviar o seu único Filho. Deus permite a possibilidade do mal nas suas formas atraentes no mundo moral, mas Ele não quer que caiamos em tentação.
3. A Tentação Vem de Dentro (1.14)
Tiago conhecia os poderes sobrenaturais do mal que agiam no mundo (cf. 3.6), mas aqui ele procura ressaltar o envolvimento e a responsabilidade pessoal do homem ao cometer pecados. O engodo do mal está em nossa própria natureza. Ele está de alguma forma entrelaçado com a nossa liberdade. A questão é: “Será que eu preferiria ser livre, tentado e ter a possibilidade de vitória ou ser um ‘bom’ robô?” O robô está livre de tentação, mas ele também não conhece a dignidade da liberdade ou o desafio do conflito e não conhece nada acerca da imensa alegria quando vencemos uma batalha.
Tiago diz que cada um é atraído e engodado pela sua própria concupiscência. Essa palavra epithumia (“desejo”, RSV) pode ter um significado neutro, nem bom nem mal. Assim, H. Orton Wiley escreve: “Todo apetite é instintivo e sem lógica. Ele não identifica o erro, mas simplesmente anela pelo prazer. O apetite nunca se controla, mas está sujeito ao controle. Por isso o apóstolo Paulo diz: ‘Antes, subjugo o meu corpo e o reduzo à servidão, para que, pregando aos outros, eu mesmo não venha de alguma maneira a ficar reprovado’ (1 Co 9.27)”.12 Este talvez seja o sentido que Tiago emprega aqui. No entanto, na maioria dos casos no Novo Testamento, epithumia tem implicações maléficas. Se for o caso aqui, quando um homem é seduzido para longe do caminho reto, isso ocorre por causa de um desejo errado. Tasker escreve: “Este versículo, na verdade, confirma a doutrina do pecado original. Tiago certamente teria concordado com a declaração de que ‘a imaginação do coração do homem é má desde a sua meninice’ (Gn 8.21). Desejos concupiscentes, como nosso Senhor ensinou de maneira tão clara (Mt 5.28), são pecaminosos mesmo quando ainda não se concretizaram em ações lascivas”.13 Se essa interpretação for verdadeira, há aqui mais uma dimensão na origem da tentação. Desejos errados podem ser errados não somente porque são incontrolados, mas porque, à parte da presença santificadora do Espírito, eles são carnais.
4. A Tragédia do Desejo Consumado (1.15)
No versículo 14, concupiscência provavelmente refere-se a qualquer atração para o mal. A linguagem, no entanto, é mais comumente associada à indução ao pecado sexual. Tiago usa essa figura no versículo 15 para traçar o curso do mal, iniciando com um pensamento errado, que resulta em um ato pecaminoso e termina com o julgamento de Deus. Um pensamento errado dá à luz quando lhe damos o consentimento da vontade. Segue-se então o ato em si. Sendo consumado não se refere tanto ao ato completado do pecado, mas sim ao acúmulo de atos maus que constitui uma vida pecaminosa. Phillips associa este versículo ao versículo 16 e o interpreta da seguinte forma: “E o pecado com o tempo significa morte — não se enganem, meus irmãos!”.
5. Deus Dá somente Coisas Boas (1.16-17)
O versículo 16 é com frequência tratado como uma transição do pensamento dos versículos 13-14 para os versículos 17-18. A mudança é brusca: Não erreis. Não vagueiam tanto no seu pensamento a ponto de acreditar que qualquer provação ou tentação, com um propósito mal, vem de Deus. Deus somente dá o que é bom — e Ele é a Fonte de todas as coisas boas. Deus nos fez o tipo de pessoas que somos e quando a criação estava completa Ele viu que tudo “era muito bom” (Gn 1.31). Moffatt traduz a primeira parte do versículo 17 da seguinte maneira: “Tudo que recebemos é bom e todos os nossos dons são perfeitos”.
Pai das luzes (v. 17) indubitavelmente tem um duplo sentido. Este termo se refere a Deus como o Criador das luzes do universo físico — sol, lua e estrelas. Mas Ele também é o Pai de toda nossa iluminação espiritual e de todas as bênçãos. Tiago contrasta aqui as mudanças de hora em hora no sol e lua com o caráter imutável de Deus. As luzes nos céus podem mudar de hora em hora e lançar sombras onde previamente haviam lançado luz. Mas no caráter de Deus “não há variação, nem sombra de mudança” (ASV). Ele é imutável. Segue-se como consequência certa do caráter imutável de Deus de que em seu tratar conosco “não há a menor variação ou sombra de inconsistência” (Phillips).
6. A Glória do Plano de Deus (1.18)
Quando o autor menciona nos, a quem ele se refere: aos leitores em geral ou aos cristãos? Os comentaristas têm pontos de vista divergentes. A verdade é significativa em qualquer um dos casos. Se entendermos nos como que significando homens criados à imagem de Deus, o significado é claro. Deus nos fez da maneira que somos — segundo a sua vontade. A razão para nossa liberdade, provas, perplexidades e problemas morais envolvendo escolha é que deveríamos ser semelhantes a Ele — como primícias das suas criaturas. Ele nos criou com liberdade para escolher o mal ou com liberdade para escolher o bem para que fôssemos em certo sentido os criadores do nosso próprio espírito, a glória coroada da sua palavra criativa (cf. Hb 11.3) Podemos, no entanto, com sólidas evidências exegéticas entender nos como que referindo-se à Igreja cristã. Robertson coloca o seguinte título para esse versículo: “O Novo Nascimento”. Deus, que é nosso Pai por meio da criação, é também nosso Pai por meio da redenção. Homens redimidos do pecado são a glória coroada dos propósitos de Deus para a vida humana — “os primeiros espécimes da sua nova criação” (Phillips). A palavra da verdade é a verdade do evangelho. Knowling vai mais adiante e afirma: “Não podemos esquecer que o nosso Senhor (Jo 17.17-19) fala da ‘palavra’ que é verdade, por meio da qual os discípulos devem ser santificados”.14 O propósito final de Deus é conduzir-nos à vitória por meio dos nossos testes para tornar-nos semelhante a Ele em santidade e amor.
E. Obedientes à Verdade Divina, 1.19 -27
No versículo 18, Tiago havia mencionado a “palavra da verdade” por meio da qual os homens são nascidos em Deus. Visto que esta Palavra divina nos trouxe para Deus, devemos continuar sendo guiados por ela à medida que vivemos para Ele. Um espírito aberto e receptivo para a Palavra de Deus e para a orientação do seu Espírito Santo sempre é o caminho para fazermos progresso nas coisas de Deus. Um espírito rebelde, combativo e queixoso não opera a justiça de Deus (v. 20). Essa receptividade contínua em relação à verdade de Deus é o elo que liga as exortações dos versículos 19-27.
1. Abandone a Pressa no Falar (1.19abc)
Hayes nos lembra que Tiago não tem muito a dizer a respeito de pecados da carne, tão característicos dos gentios do primeiro século. Em vez disso ele nos adverte em relação aos pecados que os judeus estavam mais inclinados a praticar — orgulho, impaciência e outros pecados do temperamento e da língua.16 Dessa forma, o apóstolo cita três preceitos que provavelmente eram conhecidos aos seus leitores: Todo o homem seja pronto para ouvir, tardio para falar, tardio para se irar (v. 19). Visto que ele está prestes a apresentar uma advertência severa, Tiago inicia suas palavra com uma expressão de profunda afeição e nela identifica-se com os seus ouvintes — meus amados irmãos. Parece mais certo considerar o ouvir e o falar em um sentido geral, em vez de restringir o significado (como alguns fazem) ao ouvir e falar a mensagem do evangelho. Tiago mais tarde (vv. 21-25) trata especificamente do relacionamento do homem com a “palavra” salvadora.
Zeno ressalta que um homem tem dois ouvidos mas somente uma boca; ele, portanto, deveria ouvir duas vezes mais do que falar. Há uma conexão íntima entre o ouvir e o falar; também entre o falar e a ira. Aquele que ouve mais atentamente entende melhor o seu próximo; entender leva a um falar ponderado e a uma resposta branda que “desvia o furor”. O falar impensado, por outro lado, com frequência produz a palavra pesada que “suscita a ira” (Pv 15.1).
2. Abandone a Ira (1.19d,20)
A ira quase sempre machuca tanto o nosso próximo como a nós mesmos. A ira carnal sempre machuca. Portanto, todo o homem deve ser tardio [...] para se irar (v. 19). Ele deve abandonar a ira que não opera a justiça de Deus (v. 20). A justiça de Deus significa conduta certa, i.e., fazer o que Deus quer (cf. Mt 6.33). A ira carnal não só nos leva a uma conduta sem amor e a desagradar a Deus, mas esse comportamento irado em um cristão professo levanta dúvida na mente dos observadores e, dessa forma, diminui o progresso do Reino de Deus. Poteat comenta: “A única ira que o homem pode ter é uma ira que Cristo sentiu (cf. Mc 3.5). Esse tipo de ira não é a expressão de uma petulância particular mas de um ressentimento público contra o comportamento e as ações que levam outros a sofrer sem culpa da pessoa irada”.17 Robertson esboça a verdade do versículo 19 da seguinte forma: 1) Ouvir brilhante (v. 19a); 2) Silêncio eloquente (v. 19b); 3) Ira insensível (v. 19c-f).18
3. Abandone todo o Mal (1.21)
Pelo que dá a entender que há uma ligação com o texto anterior. Tiago acabou de falar da ira e de sua relação com a vontade de Deus. Sua mente agora se move agora para o contexto mais amplo da vontade de Deus e o mal do homem. Toda imundícia e acúmulo de malícia não transmite uma verdade clara para o leitor de hoje. Phillips traduz esse texto da seguinte maneira: “Livrando-se, portanto, de toda impureza e de todo tipo de mal”. A NASB traduz: “Colocando de lado toda imundícia e toda impiedade”. Rejeitando (apothemenoi) está no tempo aoristo e sugere uma clara quebra com tudo que é contrário à vontade de Deus. Robertson compara o significado deste texto com a figura de Paulo de despojar-se do “velho homem” de pecado e revestir-se do “novo homem” de justiça (Ef 4.2; Cl 3.8). Ele comenta: “Certamente o mal aumenta se não for checado e arrancado pela raiz”.19 Acúmulo de malícia (kakia, maldade) não deve ser entendido como “mais do que necessário”. A maldade “por ínfima que seja já é excesso”.
O despojar de todo o mal é a condição para a recepção subsequente da palavra [...] enxertada (melhor, “implantada”, NVI). Moffatt apresenta a figura da semente e do solo. Ele interpreta: “Prepare um solo de modéstia humilde para com a Palavra que lança suas raízes no interior com poder para salvar a sua alma”. Knowling observa que ‘“a palavra’ descrita dessa forma é raramente distinguível do Cristo que habita em nós”.20 Essa é a palavra a qual pode salvar a vossa alma. “Ela traz uma salvação presente aqui e agora (Jo 5.34); é uma nova vida de pureza. Ela ajuda na salvação progressiva do homem completo na sua batalha com o pecado e no crescimento na graça (2 Tm 3.15). Ela leva à salvação final no céu com Cristo em Deus (1 Pe 1.9). O evangelho é o poder de Deus para a salvação (Rm 1.16)”.21
4. Aja de Acordo com a Palavra (1.22-25)
Tiago em nenhum lugar chega mais próximo dos ensinamentos do seu Irmão e Senhor do que na ênfase dessa passagem. Jesus declarou: “Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no Reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus” (Mt 7.21). Tiago ecoa esse ensinamento na forma imperativa:22 E sede cumpridores da palavra e não somente ouvintes, enganando-vos (v. 22). Tiago provavelmente tinha em mente o cenário de uma típica congregação cristã primitiva com o seu estilo de adoração típica da sinagoga. O líder lia textos do Antigo Testamento e do Novo Testamento para a edificação dos ouvintes. Mayor sugere que o imperativo aqui não significa simplesmente “sede”, mas sim, “mostrem-se cada vez mais”.23 O homem que ouve a verdade, mas não a aceita, e molda sua vida de acordo com essa verdade, é semelhante a um homem que olha para sua imagem no espelho (v. 23), mas não presta atenção naquilo que vê. O propósito do espelho é mostrar-nos o que somos — para revelar-nos qualquer mancha de sujeira que precisa ser limpa ou sinais de doenças que precisam ser curadas. Seu rosto natural é literalmente “o rosto do seu nascimento”. Ross observa: “O espelho da Palavra de Deus revela o homem como ele é; ele mostra que há algo seriamente errado com a natureza que trouxe para o mundo com ele”.24 No versículo 25, Tiago continua descrevendo a figura de um espelho, mas sua imagem não pode transmitir toda a verdade. Um espelho reflete somente o rosto que está diante dele, mas a Palavra de Deus nos mostra tanto o que é a nossa natureza humana quanto o que é o ideal divino para nós. A palavra no versículo 22 é no versículo 25 chamada de a lei perfeita da liberdade. A lei de Deus para o homem não é reforçada pela compulsão externa, mas é livremente aceita como o desejo e alvo daqueles que são guiados por ela. Somos assegurados que aquele que atenta bem [...] e nisso persevera [...] será bem-aventurado. Phillips diz: “O homem que olha [...] e torna isso um hábito [...] alcança a verdadeira felicidade”. A medida que continuamos a nos concentrar na “glória do Senhor” revelada em sua Palavra, Paulo declara que “somos transformados de glória em glória” (2 Co 3.18).
5. Religião — Falsa e Verdadeira (1.26,27)
Nos versículos 22-25, temos observado as obrigações do cristão para realizar toda a vontade de Deus. Aqui temos uma aplicação particular. O versículo 26 volta ao tema do controle da fala introduzido no versículo 19 e discutido mais detalhadamente em 3.1-18. A frase Se alguém entre vós cuida ser religioso (v. 26) pode dar uma impressão errada. O grego dokei significa “de acordo com a sua avaliação”. Não é ao hipócrita mas ao auto-iludido que Tiago está escrevendo; a próxima cláusula engana o seu coração, deixa isso claro. A palavra religioso (threskos) refere-se à religião nas suas formas e cerimônias exteriores. O autor está preocupado com aqueles cuja religião consiste de rituais mas carece de santidade. Cartas Vivas apresenta uma paráfrase impressionante: “Se alguém diz que é cristão, mas não controla a sua língua afiada, está apenas enganado-se a si mesmo e a sua religião não vale nada”.
No versículo 26, o problema está na língua descontrolada. No versículo 27, o problema está na indiferença à necessidade humana e “o contágio da lenta mácula do mundo”. Tiago não está dando aqui uma completa definição da religião cristã. O que ele discute não é o todo, mas sim as duas partes indispensáveis da religião pura e imaculada (v. 27). A preocupação social e a conduta santa são o corpo no qual o Cristo vivo é a Alma vivente. Knowling26 ressalta que os dois títulos equilibram de maneira apropriada as duas cláusulas que se seguem: Para com o Pai — visitar os órfãos e as viúvas. Para com Deus — guardar-se da corrupção do mundo. Tiago usa o termo mundo num sentido empregado em outros textos do Novo Testamento. Este mundo é a “ordem” ou esfera da vida humana separada de Deus porque já não é mais uma expressão da sua vontade .
Notas
1 Alfred Plummer, “The General Epistle of St. James and St. Jude”, The Expositor’s Bible (Nova York: A. C. Armstrong and Son, 1903), p. 62.
2 Ibid, p. 63.
3 Op. cit., p. 41.
4 Citado em Mayor, op. cit., p. 35
5 Studies in the Epistle of St. James (Nova York: George H . Doran Co., 1915), p. 63.
6 Op. cit., p. 36.
7 “The General Epistle of James, Peter and Judas”, The Moffatt New Testament Commentary, ed. James Moffatt (Nova York: Harper and Brothers Publishers, sem data), p. 11.
8 “The Epistle of St. James”, Westminster Commentaries, ed. Walter Lock (Londres: Methuen and Co, 1910). p. 9.
9 Ibid., p. 9.
10 R. C. H. Lenski, The Interpretation of the Epistle to the Hebrews and of the Epistle of James (Columbus: Wartburg Press, 1946), p. 530.
11 Andrew McNab, “The General Epistle of James”, The New Bible Commentary, ed. F. Davidson, et al. (Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Co, 1953), p. 11-19.
12 Christian Theology (Kansas City: Beacon Hill Press, 1943), vol. II, 49.
13 Op. cit., pp. 46-7.
14 Op. cit., p. 26.
16 Op. cit., vol. Ill, p. 1.562.
17 “James” (Exposition), The Interpreter’s Bible, ed. George A. Buttrick, et al. (Nova York: Abingdon Cokesbury Press, 1951), vol. XII, p. 31.
18 Op. cit., pp. 89-92.
19 Ibid., p. 94.
20 Op. cit., p. 30.
21 A. T, Robertson, op. cit., p. 95.
22 “O autor dessa epístola fala com autoridade [...] Sua posição oficial deve ter sido reconhecida e não questionada. Ele está tão certo da sua reputação em relação aos seus leitores como está em relação à integridade da sua mensagem [...] Encontramos 54 imperativos nos 108 versículos desta epístola” (ISBE, vol. Ill, p. 1562).
23 Op. cit., p. 64.
24 “The Espitles of James and John”. The New International Commentary on the New Testament (Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1954), p. 40.
25 Op. cit., p. 36.