Salmos 1: Significado, Devocional e Exegese

Salmos 1

O Salmo 1 inaugura o Saltério com uma declaração programática de natureza sapiencial, posicionando-se como um portal teológico e literário que condiciona a leitura de todos os demais salmos. Ele não é apenas o primeiro em ordem, mas o primeiro em princípio: estabelece, logo na abertura, o contraste fundamental entre dois caminhos — o do justo e o do ímpio — sobre o qual se desenrola a espiritualidade hebraica e a teologia da aliança. Assim como Filipenses 3 marca uma virada retórica e teológica na epístola paulina, Salmos 1 marca a virada existencial de todo leitor: ele define a bem-aventurança não como resultado de ritos ou pertencimento étnico, mas como fruto de uma vida enraizada na Torá. É, portanto, tanto um manifesto ético quanto uma convocação litúrgica: orienta o indivíduo à sabedoria da obediência, ao prazer na lei de Deus, e ao afastamento progressivo da impiedade.

Este salmo, em sua estrutura bipartida, rejeita a indiferença espiritual e impõe ao sujeito o imperativo da escolha: ou se deleita na instrução divina, ou se dissipa no caminho dos pecadores. Ao contrário do legalismo externo, aqui a justiça nasce da interioridade: o justo “medita de dia e de noite” na Torá, sendo comparado a uma árvore frutífera, enquanto o ímpio é como a palha — volátil, estéreo, sem peso ou permanência. O Salmo 1, assim, apresenta uma teologia da interioridade aliada a uma escatologia moral: não basta o comportamento, é o enraizamento na Palavra que define o destino eterno. Sua função é moldar o leitor para que se aproxime do restante do Saltério com o coração instruído, e não apenas com os lábios preparados para o cântico. Trata-se de um chamado inicial à verdadeira piedade — uma piedade que não é decorativa, mas frutífera.

I. Estrutura e Estilo Literário

O Salmo 1 divide-se nitidamente em duas seções simétricas que refletem a dicotomia entre o justo (vv. 1–3) e o ímpio (vv. 4–6), sendo estruturado como um poema de antítese moral e escatológica. A construção é deliberadamente contrastiva: enquanto os três primeiros versículos descrevem o caminho da bem-aventurança, os últimos três delineiam a futilidade do ímpio e seu fim inevitável. O versículo central (v. 3) funciona como um eixo poético, apresentando a metáfora da árvore plantada junto a ribeiros de águas — símbolo da estabilidade, da frutificação e da continuidade vital do justo. Já o versículo 4 quebra bruscamente essa imagem com a figura da palha, desfeita pelo vento, remetendo à instabilidade, improdutividade e inutilidade do ímpio.

O estilo é marcadamente sapiencial, reminiscente de Provérbios e de textos deuteronômicos, com forte uso de paralelismo sinônimo e antitético. O versículo inicial (“Bem-aventurado o homem que...”) segue a fórmula beatífica típica da literatura de sabedoria, mas seu desenvolvimento possui uma progressão negativa cuidadosamente construída: “não anda... não se detém... não se assenta”, sugerindo uma degradação gradual — do conselho ao comportamento, e deste à pertença identitária com os ímpios. Essa cadência descendente contrasta com a progressão ascendente do justo, cuja vida é nutrida pela constante meditação na Torá. Há ainda recursos estilísticos de ritmo ternário, repetição enfática e inclusio semântica — a mesma palavra “caminho” (hebraico: derek) aparece no início e no fim do salmo (v. 1 e v. 6), encerrando o poema como um inclusivo arco retórico que enfatiza a escolha fundamental entre dois destinos.

II. Texto Hebraico e a LXX

O texto massorético (MT) de Salmos 1 é filologicamente estável, sem grandes variações entre os manuscritos medievais e os testemunhos do Mar Morto. Contudo, a Septuaginta (LXX) apresenta nuances interpretativas que revelam um esforço hermenêutico helenístico de traduzir a espiritualidade da Torá para contextos mais universalizados. No versículo 2, por exemplo, o hebraico ūvetorātô yehgeh (“na sua lei medita”) é traduzido na LXX como en tō nomō autou meletēsei, preservando a ideia de meditação contínua, mas inserindo o termo grego nomos, cuja conotação jurídica e filosófica amplia o campo semântico da “Torá” hebraica.

A imagem da árvore no versículo 3 é traduzida na LXX como dendron to pephuteumenon para tas diexodous tōn hydatōn, reforçando o plantio intencional e bem-sucedido da árvore, ao passo que a Vulgata traduz plantatum secus decursus aquarum, ligando o crescimento da árvore aos “cursos” das águas — mais próximo da irrigação deliberada que do mero acaso natural. A expressão hebraica final tzedāqîm (v. 6), geralmente traduzida como “justos”, aparece na LXX como dikaioi, o que aproxima ainda mais o texto dos conceitos paulinos de justiça, especialmente em Romanos 4 e Gálatas 3, onde a justiça pela fé é tematizada. A comparação com a LXX, portanto, não apenas auxilia na compreensão exegética dos vocábulos, mas revela também a recepção do Salmo 1 como texto fundacional para a teologia cristã nascente, especialmente no que tange ao papel formativo da Palavra de Deus e ao destino escatológico dos justos.

III. Versículo-Chave

Salmo 1:2“Antes tem o seu prazer na lei do Senhor, e na sua lei medita de dia e de noite.”

Este versículo ocupa o centro espiritual e temático do salmo, funcionando como o eixo que sustenta toda a lógica da bem-aventurança. O verbo hebraico hegeh (“medita”) não indica mera leitura superficial, mas murmuração constante, internalização ruminativa da Torá — uma atividade contínua que envolve não apenas a mente, mas também o coração e os afetos. O termo “prazer” (ḥēpēṣ) eleva o cumprimento da lei acima da obrigação: o justo não apenas cumpre a Torá — ele a deseja, deleita-se nela, encontra nela sua fonte de identidade. A meditação diuturna na Palavra não é apenas uma prática espiritual, mas um modo de vida que produz frutos sazonais, resistindo à esterilidade e ao colapso ético dos ímpios. Este versículo sintetiza o ideal do ḥāsîd, o piedoso, cuja vida é construída sobre a interiorização da revelação divina.

IV. Intertextualidade com o Antigo e o Novo Testamento

O Salmo 1 dialoga amplamente com toda a tradição da sabedoria veterotestamentária e estabelece conexões profundas com o pensamento profético e apostólico. A bem-aventurança inicial (“Ashrê hā’îsh...”) remete diretamente à fórmula deuteronômica da bênção condicional (cf. Deuteronômio 28:1–2), reiterando a lógica da aliança: o justo será abençoado porque permanece fiel à instrução divina. O contraste entre justo e ímpio ecoa Provérbios 10–15 e é retomado em textos como Jeremias 17:7–8, onde o justo também é comparado a uma árvore plantada junto às águas — imagem que Paulo reformulará espiritualmente em 1 Coríntios 3:6–9, ao descrever os crentes como lavoura de Deus, alimentada por sua Palavra.

No Novo Testamento, a figura do homem justo que medita na Palavra encontra seu cumprimento perfeito em Jesus, o verdadeiro Bem-Aventurado, que recusa os conselhos do maligno (Mateus 4:1–11), vive em comunhão constante com a vontade do Pai e é o próprio cumprimento da Torá (Mateus 5:17). A linguagem do Salmo 1 ressoa nos discursos escatológicos do próprio Cristo, sobretudo em Mateus 7:13–27, onde dois caminhos, dois tipos de árvores e dois destinos são apresentados como alternativas morais inescapáveis. Além disso, o julgamento final, onde os ímpios “não subsistirão na congregação dos justos” (v. 5), antecipa a separação escatológica de Mateus 25:31–46 — as ovelhas e os bodes, os justos e os ímpios, a vida eterna e a perdição. O Salmo 1, portanto, não apenas inaugura o Saltério, mas serve de moldura canônica para toda a ética bíblica e escatologia do Reino.

V. Lição Teológica Geral

O Salmo 1 propõe uma teologia da interioridade fecunda, onde a vida não é medida por acúmulo de feitos, mas pela qualidade da relação com a Palavra de Deus. Ele rejeita o formalismo vazio e a superficialidade moral, para afirmar que a verdadeira prosperidade espiritual nasce da meditação constante, amorosa e prazerosa na Torá. O justo não é o que apenas se abstém do mal, mas o que se nutre do bem — e o bem aqui é definido como a revelação escrita de Deus. A imagem da árvore não promete ausência de dificuldades, mas estabilidade e frutificação no tempo certo; já a imagem da palha denuncia a fragilidade dos projetos humanos desconectados da vontade divina.

O Salmo encerra com uma visão escatológica nítida: dois caminhos, dois destinos. A teologia aqui é binária, não ambígua: ou se pertence à congregação dos justos — aqueles cuja vida é nutrida pela Palavra — ou se dissolve com os ímpios, cujo fim é o perecimento. O versículo final não é apenas uma advertência, mas uma promessa: “o Senhor conhece o caminho dos justos” — isto é, Ele vela, preserva, conduz e reconhece aqueles que o amam por meio da obediência. O Salmo 1 é, portanto, a porta estreita do Saltério e da vida piedosa, uma convocação a viver de forma deliberada, fundamentada e frutífera, antes de entrar no grande templo da adoração que se estende por todos os demais salmos.

VI. Comentário de Salmos 1

Salmos 1:1a Bem-aventurado o varão que não anda segundo o conselho dos ímpios... (Hb.: ʾašrê hāʾîš ʾăšer lōʾ hālak baʿăṣat rešaʿîm — A expressão inicial de Salmos 1:1a constitui uma exortação sapiencial condensada em forma de exultação ética, cuja estrutura gramatical e morfológica revela um denso tecido teológico e existencial. O termo ʾashrê, plural construto do substantivo abstrato derivado da raiz ʾ-š-r (“seguir o caminho reto”, “prosperar”), funciona aqui como uma exclamação que transcende uma simples bênção declarativa: trata-se de uma celebração da felicidade duradoura e profunda, situada em um plano ético e espiritual. Essa forma nominal, intensificada pelo uso no plural, assume em hebraico o valor de interjeição enfática, como também se vê em passagens como Deuteronômio 33:29 e Salmos 32:1. A sua tradução por “Bem-aventurado” é adequada, mas ainda assim não alcança todo o espectro da noção hebraica de uma vida ajustada ao eixo divino da justiça. Há também um fundo etimológico compartilhado com o termo ʾăšūr (“passo”, “caminho”), conforme aparece em Salmos 17:5, o que reforça a imagem do justo como alguém cuja vida segue uma trilha firme e deliberada — o que harmoniza com o restante da sentença poética.

A construção seguinte, hāʾîsh, com o artigo definido, não designa um homem qualquer, mas sim um arquétipo ético individualizado. O uso de ʾîsh em lugar de ʾādām ou gĕber é relevante: o primeiro tende a denotar a humanidade genérica e o segundo, o vigor físico; ʾîsh, porém, carrega conotações de responsabilidade, individualidade e escolha moral consciente. Assim, “o varão” não é apenas alguém masculino, mas a personificação de quem se encontra diante da sabedoria divina e da malícia humana, optando por uma e rejeitando a outra. A frase inteira se estrutura em torno da relativização de sua conduta: ʾăšer lōʾ hālak... — “que não anda...”. O pronome relativo ʾăšer introduz uma proposição descritiva, em que a negação lōʾ precede um verbo em forma perfeita, hālak (“andou”), indicando uma recusa já estabelecida e continuamente verdadeira, como demonstrado pelos gramáticos (cf. Gesenius §126; Ewald §135). O perfeito hebraico aqui exprime uma permanência negativa de conduta: não se trata apenas de um episódio passado, mas de uma disposição durável, típica da literatura sapiencial, onde as ações se tornam identitárias.

O verbo hālak, da raiz h-l-k, é empregado figurativamente no hebraico bíblico para designar estilo de vida, trajetória moral, padrão de conduta. O uso da preposição com ʿēṣāh (baʿăṣat) introduz uma esfera de orientação, conselho, deliberação — a esfera na qual o justo se recusa a transitar. A palavra ʿēṣāh, derivada da raiz y-ʿ-ṣ (“aconselhar, deliberar, planejar”), não se refere aqui meramente a conselhos casuais, mas a uma orientação fundamental de vida, uma cosmovisão — como se lê também em Jó 5:13 e Salmos 33:10–11, onde os conselhos dos ímpios são frustrados por YHWH. O termo não aponta apenas para palavras recebidas, mas para sistemas éticos que moldam comportamentos; trata-se de um campo de influência intelectual e moral. A LXX verte esse segmento como en boulē asebōn (“no conselho dos ímpios”), utilizando boulē como correspondente de ʿēṣāh. Esse termo grego — com suas conotações de conselho deliberativo, desígnio estratégico ou plano político — revela que a Septuaginta compreendeu o termo hebraico em sua amplitude e profundidade, evitando reduzi-lo a mera opinião pontual.

A palavra rĕšāʿîm, plural de rāshāʿ, indica os “ímpios”, mas sua definição não se limita à ideia de “pecadores” em sentido genérico. Conforme reforçam os paralelos de Isaías 57:20 e Provérbios 4:14–17, os rĕšāʿîm são os desordenados moralmente, aqueles que vivem em oposição à justiça divina, instáveis como mar revolto, desprovidos de firmeza ética. A raiz r-š-ʿ, segundo algumas tradições semíticas, como o árabe clássico, remete à ideia de frouxidão moral, solapamento da retidão, em contraste com ṣedeq (justiça), que evoca rigidez e estabilidade. A construção baʿăṣat rĕšāʿîm, com a preposição , indica o envolvimento no ambiente deliberativo desses ímpios — não apenas o ato de escutar conselhos, mas a assimilação do espírito, do sistema ético, da disposição interior que orienta suas decisões.

O paralelismo dessa linha com os verbos e substantivos subsequentes — ʿāmad (“parar, permanecer”), yāshav (“sentar-se”), ḥaṭṭāʾîm (“pecadores”), lēṣîm (“escarnecedores”) — estabelece uma progressão climática, tanto na forma verbal (de movimento a fixidez) quanto na gravidade moral (do ímpio genérico ao escarnecedor blasfemo). Mas já aqui, no primeiro hemistíquio, essa progressão começa com a rejeição da esfera cognitiva e deliberativa do ímpio. O homem justo não é apenas aquele que evita ações más, mas aquele que, desde o princípio, não se associa ao padrão mental, ao horizonte ético dos que estão desligados de Deus. Assim, o versículo 1a inaugura o salmo não com uma proposta moral genérica, mas com uma demarcação existencial profunda: o justo define-se por aquilo que não absorve, por onde não começa a andar, por conselhos que não admite em seu coração.

Este princípio se enraíza na tradição deuteronomista e sapiencial, como se vê em Deuteronômio 6:7, onde se ordena que as palavras da torah sejam meditadas ao andar, sentar e levantar — a totalidade da vida é moldada pela Palavra de Deus. Em contraste, o ímpio também anda, também se senta, também permanece — mas no conselho que rejeita a aliança. Por isso, o salmo não apresenta apenas um modelo de vida feliz, mas um veredito divino sobre o destino da mente e do passo humano. O homem bem-aventurado é aquele cujo pensamento, direção e identidade não são moldados pela plausibilidade cultural dos ímpios, mas pela meditação constante e resistente da torah — como se desenvolverá no verso seguinte. Essa abertura do Saltério, portanto, define a verdadeira felicidade não como um bem-estar circunstancial, mas como o resultado de uma postura negativa ativa: não caminhar, não participar, não comungar com o sistema que se opõe à retidão. É uma bem-aventurança que começa com o “não”.

A maior parte das versões clássicas em inglês, notadamente King James Version, American Standard Version, Darby, Literal Translation of the Holy Bible, Jewish Publication Society e Revised Version, apresentam-se notavelmente fiéis ao hebraico, tanto em sua estrutura quanto em sua teologia. Todas mantêm o núcleo da expressão “Blessed is the man” como tradução de ʾashrê hāʾîsh, o que, embora não capture totalmente a força pluralizante e exclamativa do hebraico (que poderíamos traduzir literalmente como “Oh, as felicidades do homem...”), ainda assim preserva o sentido sapiencial de bem-aventurança como estado ético diante de Deus. A opção por “walks not in the counsel of the wicked” ou sua variação arcaica “walketh not” traduz adequadamente a combinação verbal lōʾ hālak e mantém o perfeito hebraico em sua função gnômica, ou seja, um comportamento contínuo e habitual de recusa. Essa leitura é corroborada pelos principais exegetas hebraicos como Ewald, Gesenius e Delitzsch, que enfatizam que o perfeito aqui não deve ser lido como passado simples, mas como característica existencial. O complemento baʿăṣat rĕšāʿîm é bem refletido por essas versões através da fórmula “in the counsel of the wicked” ou “of the ungodly”, ainda que o termo “ungodly” não expresse totalmente a ideia semítica de alguém moralmente frouxo e eticamente instável, como indica o campo lexical de rāshāʿ.

Outras traduções, como a New English Translation (NET), God's Word (GW), International Standard Version (ISV) e Berean Study Bible (BSB), propõem uma leve expansão interpretativa da expressão hebraica. Quando lemos “does not follow the advice of the wicked” ou “does not take the advice of wicked people”, há um movimento semântico que abandona a literalidade da metáfora do caminhar (hālak) para traduzi-la como uma adesão deliberada ao conteúdo da ʿēṣāh. Embora essa mudança seja tecnicamente defensável — já que hālak é amplamente usado como metáfora de conduta e ʿēṣāh carrega nuances de “conselho normativo” ou até “projeto de vida” —, a estrutura verbal-poética hebraica é suavizada, e perde-se um pouco da gradação intencional construída nos três verbos hālak, ʿāmad e yāshav. Em termos teológicos, essas versões têm o mérito de ampliar a inteligibilidade da progressão moral negativa — ou seja, começam a sugerir que o problema do ímpio não é apenas ético, mas também intelectual, desde o assentimento interior à cosmovisão errada. Contudo, sua expansão interpretativa pode obscurecer a força estética da cadência hebraica, cujo ritmo serve à própria teologia do Salmo.

Algumas versões procuram reconstruir a estrutura hebraica poética com liberdade estilística, como a Lexham English Bible, a Brenton (baseada na LXX), a Septuaginta em inglês (ABP+), a The Passion Translation (TPT), a New Century Version (NCV), a Contemporary English Version (CEV), a Good News Bible (GNB) e a Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH). Em todas essas versões, o paralelismo verbal é parcialmente diluído em função de uma tentativa de adaptação cultural, tornando o texto mais acessível a públicos contemporâneos. Por exemplo, a CEV afirma: “God blesses those people who refuse evil advice and won't follow sinners or join in sneering at God.” Aqui, há uma paráfrase total da estrutura original. A bem-aventurança é transformada em uma ação divina presente (“God blesses”), o sujeito muda de o homem individual para “those people” (perde-se hāʾîsh como arquétipo moral), e os verbos poéticos são reescritos como formas negativas compostas: “refuse”, “won’t follow”, “join in sneering”. Teologicamente, essa abordagem remove a tensão deliberada entre presença e ausência, entre não caminhar e não se permitir ser moldado pela esfera do ímpio. Em vez disso, desloca a ênfase para um tipo de moralização comportamental leve, retirando do texto o seu poder sapiencial de julgar disposições e caminhos. O mesmo vale para a TPT, que começa com “What delight comes to the one who follows God’s ways!” — eliminando o “não” enfático do início hebraico e transformando a negativa ética em afirmação positiva. Isso inverte, de certo modo, o eixo do versículo, pois no texto hebraico a bem-aventurança começa com o que se rejeita.

Dentre as versões em português, a Almeida Revista e Corrigida (ARC) e a Almeida Revista e Atualizada (ARA, ainda que não listada aqui, presumivelmente similar) são fiéis ao texto original, conservando o paralelismo e as três negativas explícitas com seus respectivos complementos: “Bem-aventurado o varão que não anda segundo o conselho dos ímpios...”. A tradução preserva o valor do perfeito hebraico de hālak, e mantém o substantivo ʿēṣāh com o valor coletivo-normativo de “conselho”, o que é essencial à compreensão sapiencial do texto. Já versões como a Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH) e a Nova Versão Transformadora (NVT), ao introduzirem paráfrases como “Felizes são aqueles que não se deixam levar pelos conselhos dos maus”, acabam diluindo tanto a força do termo ʾashrê quanto o valor dos verbos hebraicos, preferindo traduções dinâmicas com termos como “não se deixam levar” e “não seguem o exemplo”. Ainda que essas versões se destinem a públicos não especializados, teologicamente podem suavizar a densidade ética e escatológica do texto: o Salmo 1 não trata meramente de influência, mas de participação ontológica em um caminho que conduz à destruição (como mostrará o v.6). Nesse sentido, versões como a NTLH e GNB, embora úteis em leitura pastoral, não são adequadas para fundamentação doutrinária rigorosa, pois omitem o crescendo negativo que parte do conselho até o assento dos escarnecedores.

Por fim, a tradução da Septuaginta (LXX), representada na versão ABP+, apresenta: “Blessed is a man who went not in counsel of impious ones...” A tradução grega preserva com notável fidelidade a estrutura tripartida, utilizando boulē para ʿēṣāh, asebōn para rĕšāʿîm, e os verbos gregos eporeuthē, estē, ekathēto para as formas hebraicas hālak, ʿāmad, yāshav. O tempo aoristo grego foi muitas vezes criticado como sendo excessivamente pontual, mas na LXX ele funciona como uma expressão de realidade permanente: quem nunca participou dessas esferas morais. Essa leitura se alinha com a tradição de Ewald e Delitzsch, que defendem o perfeito hebraico como valor atemporal e descritivo da conduta habitual do justo. Portanto, a LXX — embora com temporalidade diferente — reflete com rigor a progressão ética e estrutural do hebraico.

Em suma, podemos afirmar que versões formais como KJV, ASV, LITV, Geneva, TLV, JPS, LSV, AFV e DRB mantêm-se absolutamente fiéis ao original hebraico, tanto na sua cadência poética quanto no seu escopo teológico. Versões interpretativas como NET, GW e ISV, embora não literais, ampliam de maneira produtiva o entendimento da esfera ética e deliberativa da palavra ʿēṣāh. Por outro lado, traduções dinâmicas e parafrásticas, como CEV, TPT, NTLH e GNB, ainda que pastorais, distorcem ou suavizam a densidade poética, moral e sapiencial do versículo, deslocando a ênfase da negativa construtiva do justo para um discurso positivo genérico. A fidelidade ao texto hebraico exige não apenas tradução de palavras, mas reconstrução estética e teológica da sua visão de mundo — algo que apenas as versões mais literais e comprometidas com a estrutura sapiencial hebraica conseguiram conservar com rigor.

A abertura do Saltério com a fórmula ʾashrê hāʾîsh — “Bem-aventurado o varão...” — estabelece de imediato um horizonte teológico e existencial: não estamos diante de uma bênção declarativa proferida por Deus, como se vê nas fórmulas sacerdotais (yĕvārēkĕkā YHWH, Números 6:24: “O Senhor te abençoe e te guarde”), mas de uma afirmação sapiencial observacional que revela um juízo ontológico sobre o homem justo. A forma plural intensiva ʾashrê, como observaram Delitzsch e Ewald, carrega não apenas a ideia de felicidade, mas de um estado de bem-estar ético-espiritual construído sobre o alinhamento da vida humana com a ordem divina. A raiz ʾ-š-r, ligada semanticamente à ideia de caminhar reto, liga felicidade a direção, beatitude à trajetória — o bem-aventurado não é simplesmente alguém que “recebe” uma graça, mas alguém cuja vida participa estruturalmente da harmonia da justiça divina. “Bem-aventurado é aquele cuja transgressão é perdoada, e cujo pecado é coberto” (Salmos 32:1) mostra o mesmo uso da estrutura ʾashrê como exaltação de um estado de reconciliação com Deus, não como recompensa externa, mas como condição interna. No Novo Testamento, essa bem-aventurança sapiencial é retomada diretamente por Jesus no Sermão da Montanha: “Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus” (Mateus 5:8), onde a felicidade é definida não por conquistas, mas por uma qualidade do ser.

Teologicamente, isso significa que o Salmo 1 já inicia fazendo uma distinção ontológica entre dois modos de ser: o do justo — o ʾîsh — e o dos rĕšāʿîm, os ímpios. A individualização enfática da expressão hāʾîsh, “o homem”, torna esse sujeito uma figura arquetípica: ele representa o humano em sua vocação essencial, aquele que resiste à dissolução da consciência, que não é moldado por conselhos humanos, mas cujas deliberações fluem de um coração conformado com a torah de YHWH (como dirá o verso 2: “Antes tem o seu prazer na lei do Senhor, e na sua lei medita de dia e de noite”). Essa oposição entre o indivíduo justo e a coletividade dos injustos ecoa passagens como Provérbios 4:14–15 (“Não entres pela vereda dos ímpios, nem andes no caminho dos maus. Evita-o, não passes por ele...”), e está em perfeita harmonia com a exortação paulina de Romanos 12:2: “E não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente.” Filosoficamente, portanto, esse varão não é apenas o “homem religioso”, mas o ser que se recusa a abdicar de sua liberdade moral, que rejeita a imersão inconsciente na coletividade dos injustos, que não aceita os modos dados de pensar e decidir impostos pela cultura da impiedade. O justo é, aqui, o homem que se desvia do fluxo dominante. Essa separação moral ativa também é proposta em Jeremias 15:17: “Nunca me assentei na roda dos que se alegram, nem me regozijei; por causa da tua mão me assentei solitário”, e encontra seu eco cristão em Tiago 4:4: “Qualquer que quiser ser amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus.”

A negativa lōʾ hālak baʿăṣat rĕšāʿîm não é apenas uma proibição moral; ela configura um princípio ontológico de separação. O verbo hālak, lido pelos exegetas como um perfeito de valor atemporal, aponta para um modo de ser contínuo: o justo é aquele cuja conduta nunca se rendeu, nem ocasionalmente, ao domínio da ʿēṣāh dos ímpios — termo que, como apontam Hupfeld e os gramáticos clássicos, carrega não apenas o sentido de “conselho” superficial, mas o de “plano deliberado”, “esfera de orientação interior”, “modelo de racionalidade”. Essa ideia de ʿēṣāh como núcleo racional das escolhas é amplamente atestada em Jó 21:16 (“Eis que o bem deles não está nas suas mãos; longe de mim esteja o conselho dos ímpios”) e Salmos 33:10 (“O Senhor desfaz o conselho das nações”). A ʿēṣāh dos ímpios não é uma simples opinião errada, mas uma estrutura de pensamento que, se acolhida, forma o início de uma cadeia de progressiva alienação da justiça. Paulo, em 1 Coríntios 3:19, alude a esse mecanismo quando diz: “Porque a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus.”

A não-participação nesse sistema começa por rejeitar seu ponto de partida: o andar no seu conselho. Não se trata de uma mera recusa moral, mas de um ato de não adesão ontológica. Esse discernimento do caminho remete à escolha entre dois modos de vida — tema recorrente em toda a Escritura, como em Deuteronômio 30:19: “Tenho proposto diante de ti a vida e a morte, a bênção e a maldição; escolhe, pois, a vida.” O justo é aquele que se mantém fora do campo gravitacional do conselho dos ímpios, como também afirma 2 Coríntios 6:14: “Que comunhão tem a luz com as trevas?” A mesma lógica retorna em Apocalipse 18:4: “Sai dela, povo meu, para que não sejas participante dos seus pecados.”

O Salmo 1:1a, portanto, não é apenas um versículo introdutório, mas um mapa filosófico da alma. Ele nos apresenta a possibilidade de uma vida arraigada na não adesão, no distanciamento ativo de uma lógica dominante que oferece conselhos, caminhos e assentos. O justo é definido, antes de tudo, por aquilo que não faz — e nisso está o paradoxo teológico do Salmo: a felicidade começa com a recusa. Começa com a negação da assimilação, com a interrupção da caminhada que se inicia com o conselho e culmina na zombaria. Isso ecoa a advertência de Provérbios 1:10: “Filho meu, se os pecadores te quiserem seduzir, não consintas.” Filosoficamente, é o retrato do homem que escolhe não ser arrastado pela entropia moral de seu tempo — e teologicamente, é a figura do redimido que desde já começa a habitar o mundo escatológico da justiça divina, cujo fim será mostrado apenas no último versículo: “O caminho dos ímpios perecerá” (Salmos 1:6). O justo é, portanto, aquele que desde já vive segundo o fim que permanece. Sua bem-aventurança não é acidental: é causal, ontológica, absoluta. É a vida do homem cujos pés não caminham no curso deste mundo (Efésios 2:2), mas cuja alma é governada pelo conselho do Altíssimo (Salmos 73:24).

Salmos 1:1b ...nem se detém no caminho dos pecadores... (Hb.: ûbederek ḥaṭṭāʾîm lōʾ ʿāmād — A cláusula ûbĕderek ḥaṭṭāʾîm lōʾ ʿāmad (“nem se deteve no caminho dos pecadores”) representa a segunda negativa do versículo, reforçando e intensificando o retrato do homem justo por meio de uma estrutura poética altamente deliberada. Essa linha é construída com paralelismo sintático e semântico, onde cada componente se alinha a um campo semântico distinto e cumulativo, avançando do movimento transitório para a permanência e, finalmente, à associação plena, como se verá no terceiro hemistíquio. Aqui, a progressão avança do conselho dos ímpios (campo deliberativo) para o caminho dos pecadores (campo comportamental), o que reflete não apenas uma gradação moral, mas também uma sofisticação retórica e teológica: o justo não apenas recusa ouvir conselhos perversos, mas também rejeita permanecer no espaço simbólico de práticas injustas.

A conjunção inicial û- (וּ) é um waw copulativo com vocalização shureq, conectando esta cláusula à anterior sem qualquer marca de waw consecutivo. Não há conversão temporal aqui, o que é coerente com a estrutura sapiente, descritiva e não narrativa do Salmo. A ausência do waw conversivo impede qualquer leitura de sequência temporal ou narrativa típica (wayyiqtol ou weqatal), reforçando que se trata de uma descrição estática, atemporal e ética do justo. A preposição (בְּ), prefixeda a derek (דֶּרֶךְ), estabelece a esfera de influência ou localização figurativa da ação verbal. O substantivo derek (forma comum singular com sufixo indefinido) designa, conforme largamente atestado no Antigo Testamento (cf. Deuteronômio 5:33; Isaías 55:7; Provérbios 2:12), não apenas uma trajetória física, mas um modo de vida ou conduta. Em termos sintáticos, bĕderek ḥaṭṭāʾîm funciona como um adjunto adverbial de lugar figurado, qualificando a ação verbal de ʿāmad como ocorrendo (ou não) dentro do domínio moral dos pecadores.

O termo ḥaṭṭāʾîm (חַטָּאִים) é o plural masculino do substantivo ḥaṭṭāʾ (חַטָּא), derivado da raiz triliteral ḥ-ṭ-ʾ (ח-ט-א), cujo significado básico é “errar o alvo”, daí seu uso teológico para indicar “pecar”, ou seja, desviar-se da norma divina. Esta raiz aparece nos sete binyanim com predominância no qal e no piel. A forma ḥaṭṭāʾ é um substantivo intensivo, com terminação fortemente marcada pela reduplicação da segunda consoante radical (ṭ), sinal de intensificação ou habitualidade, indicando aquele que peca reiteradamente. A forma plural intensifica a ideia de coletividade corrupta e sistemática. A oposição entre rĕšāʿîm (ímpios) na primeira cláusula e ḥaṭṭāʾîm (pecadores) nesta segunda já é observada por Delitzsch: enquanto os primeiros representam uma disposição ética em desordem, os segundos representam o hábito da transgressão concreta, a infração reiterada da torah.

O verbo ʿāmad (עָמַד), por sua vez, encontra-se aqui na forma qal perfeito 3ª pessoa do singular masculino. O binyan qal (קַל) é o tronco mais básico do sistema verbal hebraico, indicando ação simples e ativa. A morfologia do perfeito em hebraico bíblico é composta por sufixos que identificam pessoa, número e gênero — neste caso, o sufixo zero de 3ms (ʿāmad) denota um sujeito masculino singular. O aspecto perfeito (qatal) expressa uma ação completa, considerada como unificada e encerrada, mas no contexto poético e sapiencial, como observam Gesenius (§126) e Ewald (§135), essa forma muitas vezes transmite não um tempo passado, mas uma ação atemporal, habitual ou descritiva. Portanto, a tradução “nem se deteve” é teologicamente acertada, pois respeita esse valor habitual: o homem justo é caracterizado não apenas por não ter parado, mas por nunca se permitir estar de pé — isto é, por nunca ter se mantido — no caminho dos pecadores.

Sintaticamente, lōʾ ʿāmad é o predicado negativo, com lōʾ (לֹא), advérbio de negação absoluta, atuando sobre o verbo principal ʿāmad. Essa combinação forma uma negação enfática da ação de parar, permanecer, sustentar-se — ou, como propõem as fontes, de “firmar-se” ou “estar disposto a ficar”. Isso encontra eco em textos como Jeremias 7:2 (“Põe-te à porta da casa do Senhor”) e Isaías 7:2 (“os corações... tremeram como árvores do bosque são movidas pelo vento”), onde ʿāmad assume conotações de estabilidade ou exposição. No presente versículo, a recusa do justo em ʿāmad entre pecadores é uma recusa em compartilhar do seu fundamento, de estar no mesmo chão moral, de partilhar da mesma posição diante do mundo.

Comparativamente, essa construção aparece em paralelo semântico em textos como Salmos 26:4–5: “Não me assento com homens falsos... odeio a congregação dos malfeitores”, onde o justo novamente é definido por sua dissociação geográfica e moral. Em Provérbios 4:14–15, encontramos uma construção quase idêntica com uso de derek: “Não entres pela vereda dos ímpios, nem andes no caminho dos maus. Evita-o, não passes por ele; desvia-te dele e passa de largo”, o que confirma a tradição do uso do “caminho” como metáfora de sistema de vida, e de “andar” ou “ficar” como engajamento deliberado.

Portanto, ûbĕderek ḥaṭṭāʾîm lōʾ ʿāmad articula, com precisão morfológica e profundidade teológica, a figura do justo como aquele que não se estabiliza em meio à prática moralmente desviada. Ele não assume a postura de quem tolera o mal por inércia, nem compartilha do solo cultural em que os pecadores se firmam. Sua fidelidade é revelada não apenas por seus atos ativos de adoração (como se verá no v.2), mas também por sua negativa tenaz em ocupar posições de neutralidade diante do pecado. O perfeito verbal, a estrutura negativa e o uso da preposição locativa contribuem conjuntamente para pintar um retrato não apenas do que o justo evita, mas da profundidade de sua alienação ativa em relação aos caminhos dos transgressores. O Salmo revela, assim, que a bem-aventurança não é o prêmio por boas ações, mas o nome da condição daqueles que, desde o princípio, recusam participar da arquitetura moral da iniquidade.

A segunda cláusula de Salmos 1:1 — ûbĕderek ḥaṭṭāʾîm lōʾ ʿāmad — representa um desenvolvimento significativo na progressão poética e teológica do versículo, e sua tradução exige sensibilidade para três aspectos interligados: (1) o valor figurado de derek (“caminho”) como estilo de vida ou modo de conduta; (2) o uso da preposição para indicar inserção, pertencimento ou permanência dentro desse “espaço existencial”; e (3) o valor do verbo ʿāmad no perfeito do qal como recusa habitual de permanência ativa e firme entre os pecadores reincidentes (ḥaṭṭāʾîm). Com base na exegese morfológica e teológica desenvolvida a partir das fontes enviadas, podemos agora avaliar criticamente as dezenas de traduções fornecidas quanto à sua fidelidade lexical, sintática e teológica a essa cláusula central.

As versões mais fiéis ao texto hebraico, que traduzem com exatidão tanto o paralelismo verbal quanto o valor semântico de derek e ʿāmad, são as que mantêm a fórmula “nor stood in the way of sinners”, ou suas variações verbatim. Essa construção aparece em: KJV, ASV, Darby, LITV, AFV, TLV, Geneva, JUB, WEB, WEBA, RV, HRB, UASV+, LSV, ISV. Todas essas versões são rigorosas na manutenção do paralelismo verbal e na estrutura negativa cumulativa do versículo. O uso de “stood” traduz adequadamente o verbo ʿāmad no perfeito do qal, que tem aqui valor gnômico (como demonstrado pelos gramáticos clássicos), exprimindo um estado duradouro e característico: o justo é definido por nunca se colocar ou permanecer no caminho existencial dos pecadores. “In the way” é uma tradução literal de bĕderek, que aqui significa mais do que mera estrada: trata-se, como mostram textos como Provérbios 4:14 e Isaías 55:7, de uma conduta contínua, de uma esfera de vida moralmente desviada. Já “of sinners” é uma boa equivalência para ḥaṭṭāʾîm, plural intensivo do substantivo que designa os que transgridem repetida e concretamente a torah. Essa fidelidade sintática preserva a lógica da progressão entre as três cláusulas do versículo e mantém a força pedagógica da antítese entre justo e ímpio.

Entre as traduções que, embora não sigam literalmente a estrutura verbal, ampliam o sentido com um grau de liberdade responsável — isto é, que enriquecem a compreensão teológica sem distorcer o texto original — estão: NET, BSB, GW, Brenton (LXX), ISV, TLV. A NET, por exemplo, traduz como “or stand in the pathway with sinners”. Aqui, embora a inserção de “with” não esteja no hebraico, a ideia de comunhão ética com os pecadores está implícita na preposição e é confirmada por contextos paralelos como Salmos 26:4–5. Já o uso de “pathway” em vez de “way” amplia a ideia do “caminho” como trajetória contínua e socialmente trilhada. A BSB, com “or set foot on the path of sinners”, oferece uma leitura criativa que, embora não literal, acerta ao transmitir o gesto inicial da permanência, funcionando como uma espécie de paráfrase que ilumina o valor semântico de ʿāmad. A tradução da Brenton, baseada na LXX, diz: “and has not stood in the way of sinners” — o que, curiosamente, reafirma a fidelidade da Septuaginta à estrutura hebraica original, mesmo usando o aoristo grego (ἔστη) para traduzir o perfeito hebraico. O tempo grego preserva o valor pontual da ação, mas no contexto poético, assume também o valor gnômico de estado contínuo — o que confirma a adequação da LXX nesse ponto.

Há, entretanto, versões que optam por uma abordagem dinâmica e interpretativa, que embora tornem o texto mais acessível, o fazem ao custo de enfraquecer ou distorcer a estrutura gramatical e o paralelismo da poesia hebraica. A GNB traduz: “who do not follow the example of sinners”. Aqui há uma substituição explícita do verbo ʿāmad (“parar”, “ficar”) por “seguir o exemplo”, o que dissolve a metáfora posicional e converte o movimento estático de permanência em uma ação de imitação. Embora teologicamente não se possa dizer que está incorreta, essa leitura impõe ao texto um dinamismo que ele não possui em sua forma hebraica. A CEV oferece: “won’t follow sinners”, fundindo essa cláusula com a anterior, eliminando a progressão do paralelismo e achatando a dimensão sintática da poesia hebraica. O verbo ʿāmad desaparece da construção, e a imagem poética de alguém que “para no caminho” — ou seja, que consente em uma conduta estabelecida — é trocada por uma ação genérica de “seguir”. Versões como a TPT e a NTLH fazem ainda mais concessões estilísticas e homiléticas. A NTLH, por exemplo, traduz: “que não seguem o exemplo dos que não querem saber de Deus”. Ainda que essa leitura seja teologicamente aceitável, ela força o texto a uma paráfrase interpretativa que elimina o gesto físico-existencial de “ficar de pé” no caminho errado. Do ponto de vista da fidelidade ao hebraico, há aqui uma perda significativa, pois o Salmo 1 se vale precisamente da espacialidade física como metáfora moral — “andar”, “parar”, “sentar” — para descrever o processo de conformação com o pecado.

Em síntese, as traduções mais exatas e teologicamente rigorosas são aquelas que preservam as categorias espaciais, morais e verbais do hebraico original: “nor stood in the way of sinners” respeita a forma verbal perfeita qal de ʿāmad, o sentido figurativo de derek, a preposição como inserção ontológica e a intensidade plural de ḥaṭṭāʾîm. Versões como KJV, ASV, Darby, LITV, HRB, LSV, TLV, JUB, RV mantêm esse padrão com excelência. Versões como NET, ISV, BSB, Brenton aumentam o entendimento teológico sem comprometer a integridade estrutural. Já versões como CEV, GNB, NTLH, TPT distorcem a progressão original, trocando imagens concretas por abstrações moralizantes, e embora possam ser úteis para exposição pastoral, não são adequadas para estudo exegético ou teológico rigoroso. A fidelidade à estrutura do paralelismo hebraico não é apenas uma questão estilística, mas de teologia poética: pois é no gesto de recusar o lugar do pecado que o justo revela sua verdadeira identidade. Traduções que eliminam essa espacialidade, portanto, cortam a tensão espiritual que o versículo constrói.

A cláusula ûbĕderek ḥaṭṭāʾîm lōʾ ʿāmad, “nem se deteve no caminho dos pecadores”, contém um princípio teológico e filosófico de extrema profundidade, pois articula, por meio de uma imagem espacial e física, o segundo estágio de uma progressiva configuração moral: primeiro a escuta (o conselho dos ímpios), agora a permanência (no caminho dos pecadores), e em seguida, como se verá, a identificação plena (assentar-se entre escarnecedores). A recusa em permanecer de pé no caminho dos pecadores não representa apenas uma conduta ética exterior, mas uma postura ontológica de separação deliberada — uma negação da comunhão com estruturas de existência construídas sobre o hábito do erro e a prática sistemática da transgressão. O justo é, aqui, definido negativamente, não por suas virtudes ativas (que virão no versículo seguinte), mas por sua dissociação radical da trajetória coletiva daqueles que constantemente falham diante da norma divina.

Teologicamente, o “caminho” (derek) sempre foi mais do que uma metáfora topográfica; ele é, em toda a tradição bíblica, a forma de vida, o ethos que caracteriza a rota moral e espiritual do indivíduo. Desde Deuteronômio 5:33 — “Andareis em todo o caminho que o Senhor vosso Deus vos tem ordenado” — até Isaías 30:21 — “Este é o caminho, andai por ele” —, o termo derek carrega consigo a ideia de orientação providencial, de caminho divinamente estabelecido que deve ser discernido e seguido. Em oposição, o “caminho dos pecadores” é um anti-caminho, uma via deformada, construída por práticas reiteradas de transgressão. Os ḥaṭṭāʾîm (pecadores) são, como mostram textos como Provérbios 1:10–19, os que se reúnem para o mal e formam um sistema coeso de perversidade. O Salmo 1, portanto, denuncia não apenas indivíduos isolados, mas uma “via social do pecado”, um ambiente existencial que busca absorver e normalizar o desvio.

Filosoficamente, essa linha do salmo denuncia o perigo da imobilização no mal. O verbo ʿāmad, “ficar de pé”, normalmente evoca estabilidade, mas aqui é estabilidade no erro — uma permanência perigosa. O sujeito que antes apenas ouvia conselhos já agora se encontra parado no meio do caminho corrompido. Essa imagem é profundamente reveladora da antropologia bíblica: o ser humano é um ser do movimento, da travessia, da peregrinação (cf. Hebreus 11:13: “confessaram que eram estrangeiros e peregrinos na terra”). Parar no caminho do pecado é, portanto, abdicar do dinamismo escatológico que impulsiona o justo. É recusar a vocação de caminhar para Deus e deter-se na estagnação do erro. Por isso, o justo é descrito como aquele que, mesmo podendo parar, não o faz — ele é o homem em tensão constante com a cultura da transgressão. Essa recusa o conecta diretamente à exortação de Jeremias 6:16: “Ponde-vos nos caminhos, e vede, e perguntai pelas veredas antigas, qual é o bom caminho, e andai por ele; e achareis descanso para as vossas almas.” Aqui, a ordem é parar para discernir, não para permanecer. O Salmo 1 inverte: quem já discerniu não precisa deter-se entre os que se desviam.

No Novo Testamento, essa teologia do “caminho” é retomada com força particular. Jesus afirma em João 14:6: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida”; a vida cristã não é um ponto estático, mas um caminhar em Cristo. Paulo exorta os cristãos em Efésios 5:15: “vede prudentemente como andais, não como néscios, mas como sábios”, fazendo eco direto à sabedoria do Salmo 1. A ideia de que há caminhos que conduzem à destruição — e que a permanência neles não é inocente — é também afirmada em Mateus 7:13: “Entrai pela porta estreita; porque larga é a porta, e espaçoso o caminho que conduz à perdição, e muitos são os que entram por ela.” Esse “caminho espaçoso” é exatamente o derek ḥaṭṭāʾîm — a vereda dos que pecam continuamente.

A recusa de permanecer no caminho dos pecadores é, assim, uma decisão escatológica. O justo sabe que seu corpo, seus passos, seu tempo, não podem ficar à mercê de uma estrada que se opõe ao Reino de Deus. Ele não pode habitar o meio do erro sem se corromper por ele. Como bem descreve Salmos 26:4–5: “Não me assentarei com homens falsos... odeio a congregação dos malfeitores.” A recusa é frontal, total. Não se trata de indiferença ou de neutralidade. O justo é aquele cuja identidade se define também por sua ausência dos espaços que reproduzem o pecado como cultura. Ele vive sob o juízo da presença — sua ausência é ativa, é protesto, é santidade.

Por fim, o aspecto mais radical desse versículo é sua antropologia moral: o homem justo é, aqui, alguém que é capaz de negar a convivência. Ele não normaliza o que é estruturalmente desviado. Ele não banaliza o desvio alheio em nome da tolerância. Ele sabe que permanecer no caminho dos pecadores é o primeiro passo para tornar-se um deles. E ele, ao rejeitar isso, é declarado bem-aventurado — não porque se isola em arrogância moral, mas porque sabe que a comunhão com o erro não pode produzir vida. O Salmo 1:1b, assim, define com precisão o que a vida cristã reafirmará: “Sai dela, povo meu, para que não sejas participante dos seus pecados” (Apocalipse 18:4). A santidade começa pelo desvio do desvio. É o não que liberta. É a recusa que salva.

Salmos 1:2a Antes tem o seu prazer na lei do Senhor... (Hb.: kî ʾim bĕtôrath YHWH ḥēpṣô — O versículo 2a do primeiro salmo — “Mas o seu prazer está na lei do Senhor” — começa com a conjunção adversativa kî ʾim (כִּי אִם), cuja função sintática é introduzir um contraste decisivo com o comportamento anterior descrito no v. 1. A construção kî ʾim aparece em contextos hebraicos para reforçar uma oposição enfática após uma cláusula negativa, funcionando como “antes, pelo contrário” ou “mas sim” (cf. Gênesis 32:28; Jeremias 7:23). A partícula (כִּי), que frequentemente pode significar “porque”, “de fato” ou “quando”, aqui exerce valor enfático condicional-excludente, equivalente à estrutura “mas se” ou “antes se”. A presença do ʾim (אִם), que comumente introduz condições, aqui não traz hipótese real, mas destaca a única exceção aceitável diante do que foi negado: não andar, não se deter, não se assentar... mas deleitar-se. Assim, temos aqui uma estrutura disjuntiva retórica: ashrê (feliz é...) não aquele que se envolve com os ímpios, mas sim aquele cujo prazer repousa sobre a torá de YHWH.

O sujeito da sentença — o homem bem-aventurado — tem como contraposição positiva o verbo ḥēfeṣ (חָפֵץ), um qal perfeito masculino singular da raiz ח־פ־ץ, que no contexto nominal é substantivado com o uso de ḥēfeṣ (חֵפֶץ), traduzido como “prazer”, “deleite”, “inclinação interior”. Em Salmos 1:2, o termo aparece em forma de substantivo masculino singular com sufixo de terceira pessoa singular (ḥepṣō, חֶפְצוֹ), significando “o seu prazer”, “a sua inclinação”. O uso morfológico no estado construto com a expressão seguinte — betōrat YHWH (בְּתוֹרַת יְהוָה) — sinaliza um elo sintático forte, denotando que o objeto do prazer do justo não é genérico, mas plenamente definido: na torá de YHWH. Aqui, torá (תוֹרָה), substantivo feminino singular em estado absoluto, vem com a preposição bĕ- (בְּ), com valor locativo ou instrumental, designando o meio ou o campo sobre o qual repousa o deleite do justo. Importa destacar que o termo torá vem da raiz verbal י־ר־ה (yarah), que originalmente denota “lançar”, “apontar”, “dirigir” (cf. Salmos 64:7; Êxodo 15:25), e por extensão passou a designar “ensino”, “instrução”, “direção” — sendo essa a acepção empregada neste versículo, ainda que envolva evidentemente sua aplicação normativa e ética.

Na LXX, temos: ἀλλ’ ἢ ἐν τῷ νόμῳ Κυρίου τὸ θέλημα αὐτοῦ (all’ ē en tō nómō Kyríou to thélēma autoû) — “mas na lei do Senhor está o seu querer”. Aqui, a preposição ἐν (en, “em”) (+ dativo) corresponde com acuidade ao - hebraico, e νόμος (nómos, “lei”) traduz adequadamente torá. Contudo, a opção grega por τὸ θέλημα (to thélēma, “o querer, a vontade”) em vez de τὸ τέρψις (to térpsis, “prazer, deleite”) sugere uma nuance mais volitiva do que afetiva. Ainda que semanticamente o campo semântico se sobreponha parcialmente, pois o “prazer” do justo na torá implica sua vontade moldada por ela, a LXX transfere o centro afetivo da expressão para a esfera racional e ética da vontade — o que talvez tenha sido influenciado por um viés de leitura sapiencial do texto.

Do ponto de vista do aspecto verbal, o versículo 2a contém um predicado nominal: não há verbo explícito em hebraico, mas a estrutura exige que o verbo hāyāh (הָיָה – “ser, estar”) esteja implícito como cópula: “Mas [ele] é aquele cujo prazer está na torá”. Essa elipse verbal é comum no hebraico poético, e a ausência do verbo ser confere mais densidade à relação entre sujeito e predicado. Esse paralelismo sintético é importante também para delimitar a transição entre o v. 1 e o v. 2, marcando a passagem do negativo ao positivo por meio de uma proposição estática, mas profundamente intencional: o justo é caracterizado não por seus movimentos ou interações sociais (como andar, deter-se, assentar-se), mas por sua postura interior contínua — ḥepṣō bĕtōrat YHWH.

A força teológica do versículo repousa sobre a centralidade da torá como expressão do relacionamento do justo com Deus. Enquanto o v. 1 descreve o afastamento das influências ímpias nos três níveis (conselho, caminho, assento), o v. 2a apresenta o fundamento positivo da bem-aventurança: o prazer que nasce não de experiências religiosas subjetivas, mas do contato íntimo com a instrução divina. Em termos comparativos, o mesmo termo ḥēfeṣ é usado em Salmos 40:8 (lāʿăśōt rĕṣōnĕkā ʾĕlōhāy ḥāpāṣtî, “em fazer a tua vontade, ó Deus, tenho prazer”), e em Isaías 58:2, onde o povo “tem prazer em se chegar a Deus” (ḥēfeṣ ḏĕraḵay). Em ambos os casos, o deleite não é sentimentalismo vazio, mas disposição moral profunda.

O uso do bĕtōrat YHWH como expressão totalizante encontra paralelo em Josué 1:8 (lōʾ-yāmûš sēfer hattōrāh hazzeh mipîkā...), onde o livro da torá deve ser continuamente meditado para que haja sucesso, e também em Deuteronômio 6:6-7, onde os mandamentos devem estar no coração e ser ensinados continuamente. Assim, Salmos 1:2a participa de um contexto mais amplo da teologia deuteronomista, que enxerga a torá como a fonte normativa do relacionamento pactual entre YHWH e Israel. Em contraste com os ímpios que seguem o ʿēṣāh dos malvados, o justo encontra sua orientação no torat YHWH, onde há verdade, justiça e vida (cf. Salmos 19:7-11; 119:97).

Em suma, a estrutura sintática de Salmos 1:2a é marcada por paralelismo antitético em relação ao v. 1, elipse verbal com predicação nominal, construção morfológica do substantivo em estado construto, uso locativo da preposição bĕ-, e conotação semântica de prazer ético-volitivo em ḥepṣō. A tradução da LXX, embora fiel na maior parte, desloca levemente o eixo afetivo para o domínio da vontade. O termo torá, no centro semântico do versículo, é aqui tratado como instrução divina que dirige, forma e deleita o justo — não como um código legalista, mas como expressão da presença e voz viva de Deus. É este prazer profundo, não nas experiências religiosas subjetivas, mas no ensino de YHWH, que configura a base existencial e teológica da bem-aventurança bíblica.

A análise crítica e teológica das traduções de Salmos 1:2a, à luz da exegese hebraica e da comparação com a LXX, revela nuances importantes sobre fidelidade ao texto original e impacto teológico da formulação. O hebraico kî ʾim bĕtōrat YHWH ḥepṣō carrega um contraste enfático e uma construção semântica densa: a conjunção adversativa kî ʾim indica oposição radical ao versículo anterior, o substantivo ḥepṣō expressa um prazer interior ativo, e o termo torá aponta para instrução normativa e espiritual. A ausência do verbo ser (hāyāh) exige inserção interpretativa coerente. Assim, toda tradução que mantém esses três pilares — a oposição enfática, o prazer interior do justo e o objeto da torá como instrução divina — demonstra fidelidade textual e teológica.

As versões que apresentam altíssimo grau de exatidão semântica, sintática e teológica são: KJV, ASV, LITV, MKJV, UASV+, AFV, JPS, RV, Webster, Darby, Geneva, TLV, JUB, WEB, WEBA, ESV, BSB, DRB. Todas essas conservam a expressão “mas o seu deleite está na lei do Senhor” (ou “em Sua lei”), traduzindo com precisão o substantivo ḥepṣō como “deleite” ou “prazer”, reconhecendo o valor positivo interno e a relação profunda do justo com a torá. Preservam ainda a preposição bĕ- com valor locativo (“em sua lei”), evitando interpretações instrumentais ou causais equivocadas. Teologicamente, essas versões reforçam a ideia de que a bem-aventurança não nasce de ações, mas de uma disposição interior moldada pela palavra divina — uma noção consistente com textos como Salmos 19:7–10, Salmos 119:92 e Josué 1:8.

As versões ABP+, LXX, Vulgata preservam com precisão estrutural a forma do hebraico e ajudam a identificar o sentido subjacente, mas revelam desvios sutis na semântica do termo ḥepṣō. A LXX traduz como τὸ θέλημα αὐτοῦ (to thélēma autoû, “a sua vontade”) em vez de ἡ τέρψις (hē térpsis) ou ἡ εὐδοκία (hē eudokía), deslocando o foco do prazer afetivo para a decisão volitiva. Isso não configura distorção, mas deslocamento interpretativo. A Vulgata (Latina), com voluntas eius, segue a mesma linha. Essas traduções favorecem uma leitura mais racional ou volitiva da relação com a torá, que pode enriquecer o entendimento teológico ao evocar a conformação da vontade do justo à vontade de Deus, mas o fazem à custa do elemento afetivo original do hebraico. Ainda assim, permanecem em grau alto de fidelidade conceitual.

Já as versões como Cepher, HRB, TLV, ISV, LSV, MKJV, que optam por transliterar “Torah” em vez de “lei”, refletem fidelidade à terminologia hebraica original, o que pode enriquecer teologicamente a recepção do texto ao vincular o versículo à tradição judaica e ao conceito de instrução divina mais amplo que uma mera norma jurídica. Embora “Torah” possa ser menos acessível ao leitor comum, sua manutenção tem o mérito de manter o peso canônico e pactual do termo, sem reduzir a torá a simples conjunto de mandamentos. Teologicamente, essa escolha amplia o campo semântico e reforça a identidade bíblica da torá como fonte de sabedoria, vida e justiça (cf. Provérbios 3:1–2; Deuteronômio 6:6–9). Portanto, essas versões não apenas são fiéis, como enriquecem a compreensão teológica do versículo.

Por outro lado, traduções como CEV, ERV, GNB, GW, NET, TPT, Portuguese KJA introduzem reformulações semânticas mais significativas, que comprometem a precisão do hebraico e podem obscurecer o ensino original. A CEV, por exemplo, diz: “a lei do Senhor os faz felizes”, convertendo o prazer do justo numa reação externa provocada pela torá, e não em sua disposição interior. A ERV e GNB seguem caminhos semelhantes ao dizer que eles “amam os ensinamentos do Senhor” ou “encontram alegria em obedecer à lei do Senhor” — interpretações que deslocam o foco do prazer centrado no texto e no relacionamento com Deus para um comportamento moral ou volitivo. A versão NET é particularmente problemática ao traduzir torá como “commands” (“mandamentos”) e ḥepṣō como “finds pleasure in obeying”, o que representa uma redução funcionalista da torá e transforma o deleite interior numa ação prática — invertendo a ordem do versículo. A TPT vai ainda mais longe, com a frase “His pleasure and passion is remaining true to the Word of ‘I Am,’” — uma expansão interpretativa fortemente subjetiva, mística e anacrônica, não sustentada pelo hebraico.

Em termos de fidelidade e valor teológico, essas versões reformuladas perdem a precisão exegética ao tentar dinamizar a linguagem. Elas não distorcem necessariamente o ensino geral da piedade bíblica, mas redesenham o versículo conforme moldes modernos que esvaziam o paralelismo poético e a força semântica da construção hebraica. Ao transformar “deleite na torá” em “obedecer aos ensinamentos” ou “ser feliz por causa da Palavra”, essas versões abandonam a estética hebraica da interioridade espiritual que configura o justo, e o fazem em nome da inteligibilidade contemporânea.

Portanto, a maioria das versões clássicas anglo-americanas (KJV, ASV, RV etc.), assim como as que mantêm a terminologia hebraica (TLV, HRB), podem ser consideradas (1) exatas e leais ao original e (2) teologicamente enriquecedoras. A LXX e a Vulgata estão próximas disso, com um leve deslocamento para o campo volitivo. As versões populares e contemporâneas simplificadas, ainda que bem-intencionadas, acabam (3) distorcendo o texto original ao reconfigurar o núcleo afetivo e devocional da relação do justo com a torá. A exegese hebraica e os paralelos veterotestamentários exigem que o termo ḥepṣō seja compreendido como prazer interno e constante, não como comportamento ou resposta ética, e que torá permaneça como instrução divina abrangente, e não apenas “mandamentos” ou “ensinamentos religiosos”. Assim, o peso da tradição e da precisão deve sempre prevalecer sobre tentativas de paráfrase ou simplificação.

O prazer que o Salmo 1:2a descreve não é uma negação de todos os demais prazeres humanos, mas sim a ordenação suprema de todos os afetos da alma em direção à revelação divina. O texto afirma: “כי אם בתורת יהוה חפצו” (ki ʾim be-tōrat YHWH ḥepetṣō) — “mas na torá de YHWH está o seu prazer”. A palavra ḥepetṣō deriva do substantivo ḥēp̱eṣ (חֵפֶץ), cujo campo semântico inclui desejo profundo, prazer, afeição voluntária, inclinação amorosa e compromisso. O verbo correspondente ḥāp̱ēṣ (חָפֵץ) aparece em contextos onde o objeto do desejo é buscado com diligência, afeição e alegria — como em Isaías 53:10, onde se diz que “ao Senhor agradou [ḥāp̱ēṣ YHWH] moê-lo, fazendo-o enfermar”, revelando que tal “prazer” implica em propósito deliberado, ainda que envolva dor e entrega.

O prazer descrito no versículo não é hedônico no sentido sensorial, mas espiritual e racional, enraizado na vontade, na meditação, na repetição constante e na adesão ao que é bom por natureza. A torá — aqui não apenas como a Lei mosaica, mas como todo o corpo da instrução divina — torna-se a fonte de gozo constante, e não um fardo. Como demonstra Salmos 119:92: “Se a tua lei não fora o meu deleite, há muito teria eu perecido na minha angústia”, e também Salmos 119:97: “Oh! quanto amo a tua lei! É a minha meditação todo o dia”. O justo não encontra nesse prazer um contentamento isolado, mas um fundamento que dá sentido a todos os outros prazeres legítimos da existência.

Esse prazer se interpõe com os demais prazeres humanos — alimentares, estéticos, relacionais — não como um antagonista, mas como regulador. O prazer nas Escrituras é transformador, purificador e espiritualizante: orienta o corpo, a mente e os afetos. Provérbios 2:10 afirma: “Quando a sabedoria entrar no teu coração, e o conhecimento for agradável (naʿēm) à tua alma...”, ou seja, há uma estética moral que enobrece o deleite. Não se trata de repressão, mas de reordenação. O prazer do justo é qualitativamente distinto do prazer efêmero dos ímpios, cujo fim é ruína — como ensina Salmos 16:11: “Na tua presença há fartura de alegrias; à tua direita há delícias perpetuamente”.

Filosoficamente, essa concepção se aproxima, em certo sentido, de noções da filosofia grega — especialmente no estoicismo e no pensamento platônico — mas também a transcende. Para Platão, o verdadeiro bem, o agathón, é o fim último da alma racional; para os estóicos, a ataraxia (tranquilidade da alma) provém da conformidade à razão universal. Contudo, enquanto a filosofia grega, especialmente na sua vertente estóica, tende a valorizar a razão como princípio supremo e impessoal, o salmista eleva a torá pessoal de YHWH como revelação concreta e relacional — é o Deus que fala, ensina, disciplina, consola. A sabedoria bíblica não é abstração, mas relacionamento. A palavra de YHWH é “doce ao paladar, mais que o mel” (Salmos 119:103), não apenas porque é racionalmente bela, mas porque é existencialmente fiel.

Na vida de Jesus, este prazer se manifestou como obediência amorosa e constante meditação da Palavra do Pai. João 4:34 registra: “A minha comida é fazer a vontade daquele que me enviou e realizar a sua obra.” E em Lucas 2:49, Jesus afirma: “Não sabíeis que me convém tratar dos negócios de meu Pai?” Sua afeição pela Escritura era tal que, mesmo em sua tentação no deserto (Mateus 4:1–11), Ele a invoca como sustento. O ḥēp̱eṣ messiânico por fazer a vontade de Deus é eco do Salmo 1:2, e a encarnação da torá viva é Ele mesmo, o Logos (João 1:14), a Palavra que se fez carne e cuja comida era o cumprimento da revelação divina.

Teologicamente, esse prazer é superior porque é eterno, verdadeiro e transformador. A meditação na Palavra liga o justo à eternidade, eleva sua alma e o separa dos caminhos destrutivos do ímpio (Salmos 1:6). Ao contrário dos prazeres efêmeros e enganosos deste mundo, que produzem vício, inquietação e morte (Tiago 1:14–15), o prazer na torá conduz à sabedoria, retidão e à própria presença de Deus (Salmos 73:25–26: “A quem tenho eu no céu senão a ti? E na terra não há quem eu deseje além de ti.”).

Portanto, o prazer que o justo encontra na torá é único não por ser o único prazer que existe, mas porque é aquele em que todos os demais prazeres se subordinam, são purificados e ganham sentido. Esse prazer é o início da bem-aventurança descrita no v. 1, e é também sua sustentação. O justo é bem-aventurado porque o seu prazer é a Palavra de Deus. Sua alma encontrou seu repouso, seu alimento, sua âncora — e, portanto, não se deixa arrastar pelo conselho dos ímpios, nem se apega à companhia dos escarnecedores. Como diz Jeremias 15:16: “Achadas as tuas palavras, logo as comi, e a tua palavra foi para mim o gozo e a alegria do meu coração.”

Salmos 1:2b ...e na sua lei medita de dia e de noite. (Hb.: ûbĕtôrātô yehgeh yômām wālāylāh — A segunda metade de Salmos 1:2 forma uma construção sintática que não apenas completa o paralelismo poético com o primeiro hemistíquio, mas aprofunda a ideia de devoção contínua à instrução divina. O verbo central da frase, yeheggeh, é a chave para a compreensão da natureza da piedade expressa no versículo e sua manifestação contínua na vida do justo.

Do ponto de vista morfológico e gramatical, o verbo yeheggeh é uma forma imperfeita (yiqtol) da raiz הָגָה (h-g-h), conjugada na 3ª pessoa do masculino singular no binyan qal, voz ativa simples. O aspecto imperfeito indica uma ação incompleta, habitual ou contínua, o que harmoniza com a ideia de meditação constante, “dia e noite”. Essa conjugação projeta a prática devocional como algo habitual, reiterativo e sem interrupção. O mesmo padrão de ação contínua pode ser observado, por exemplo, em Josué 1:8, onde Deus ordena: “wəhāgîtā bô yōmām wālāylāh”, “nele meditarás de dia e de noite”. Aqui, o verbo wəhāgîtā está no perfeito com waw conversivo, reforçando uma instrução contínua com valor de futuro — o que reafirma que o hegeh não é uma ação isolada ou pontual, mas parte integrante da existência do homem justo.

Quanto ao seu significado lexical, hāgāh possui um campo semântico rico. Em seu sentido original, significava “rosnar”, “murmurar”, “emitir sons baixos”, evoluindo depois para “meditar”, “ruminar” e “pensar profundamente”, pois a meditação na cultura semita era muitas vezes verbalizada de forma suave, como murmúrio. Essa nuance sonora se mantém em Isaías 31:4, onde se lê: “Kikʾêyāh ʾaryêh wekaḵkĕfîr ʿal-tarpô ʾăšer yiqqāreʾ ʿālāyw mĕlō roʿîm miqqōlām lōʾ yēḥāt ûmēhamônām lōʾ yaʿănê” — a palavra hamōnām, “seu tumulto” tem origem da mesma raiz conceitual da emissão sonora que hāgāh sugere.

O sujeito da oração é oculto, mas retoma o “justo” (ha’îsh) do versículo 1, e o objeto direto está na forma de construto com sufixo pronominal: uḇəṯōrātō (וּבְתוֹרָתוֹ), literalmente “em sua torá”, ou seja, “na sua lei”. A preposição בְּ aqui, na forma composta com o waw copulativo (וּבְ), não denota mera localização, mas imersão, interiorização: o justo se encontra inserido, imerso na torá do Senhor. A forma תּוֹרָה (tôrāh) deriva da raiz יָרָה (y-r-h), que significa “lançar”, “apontar”, “instruir” — assim, torá significa mais do que “lei” em sentido jurídico, implicando instrução, orientação, revelação pedagógica da vontade de Deus. Em Neemias 8:8, lemos que Esdras e os levitas liam a torá e “explicavam o sentido”, mostrando que torá é aquilo que deve ser compreendido, internalizado, refletido.

A expressão “yōmām wālāylāh”, traduzida como “de dia e de noite”, constitui um merismo, figura retórica que designa a totalidade através de extremos, indicando atividade ininterrupta, contínua, o que se repete nas orações de Davi (Salmos 55:17) e nas lamentações do exílio (Lamentações 2:18). A ausência de verbos auxiliares entre o verbo principal e a locução temporal mostra a fluidez típica da poesia hebraica, e a posição final de yōmām wālāylāh carrega um peso enfático.

Na Septuaginta, essa ideia é representada por: “ἐν τῷ νόμῳ αὐτοῦ μελετήσει ἡμέρας καὶ νυκτός” (en tō nómō autoû meletēsei hēméras kai nyktós). O verbo grego μελετήσει (meletēsei, de meletáō), no tempo futuro, voz ativa do indicativo, reforça o aspecto habitual da ação — “meditará”, “ruminará”. É notável que meletáō, em contextos helenísticos, pode significar “exercitar-se em”, “praticar com diligência”, indicando que o conceito bíblico de “meditação” inclui tanto o pensar quanto o aplicar. Em 1 Timóteo 4:15, Paulo usa esse verbo: “ταῦτα μελέτα, ἐν τούτοις ἴσθι” (taûta mélata, en toútois ísthí) — “medita estas coisas, ocupa-te nelas”, reforçando que a verdadeira meditação é prática e transformadora.

Portanto, Salmos 1:2b constrói um quadro literário e teológico em que o justo não apenas encontra prazer intelectual na torá, mas vive uma vida moldada por sua contínua internalização e vocalização. O verbo yeheggeh, no seu aspecto imperfeito qal, acentua a constância do processo; a presença da torá com sufixo pronominal mostra apropriação pessoal da Palavra; a estrutura merística da expressão temporal evidencia intensidade e exclusividade. Esse versículo não é mera descrição poética, mas fundação antropológica de uma espiritualidade hebraica que faz da voz interna do texto divino o pulsar permanente da alma humana.

Com base na exegese rigorosa de uḇetōratô yehgeh yômām wālaylā (ובְּתוֹרָתוֹ יֶהְגֶּה יוֹמָם וָלָיְלָה), a análise crítica e teológica das dezenas de traduções enviadas revela distintos níveis de fidelidade ao texto hebraico, cujas implicações semânticas, gramaticais e teológicas são densas e exigem atenção minuciosa. O cerne da construção verbal repousa sobre yehgeh, um qal imperfeito do verbo hāgāh (הָגָה), que em sua forma imperfeita comunica uma ação inacabada, contínua ou habitual. Isso é reforçado pela construção adverbial hebraica yômām wālaylā (“dia e noite”), um merismo que não se refere à leitura literal ininterrupta da Torá, mas à sua presença constante como objeto de interiorização, ruminação e repetição devocional. O uso de bĕtōratô com a preposição indica localização interna — é na Torá que se dá essa ação de murmurar meditativamente. Tendo isso em vista, pode-se avaliar com precisão a justeza das traduções.

As versões que mais se aproximam da literalidade sem perda teológica são: AFV, ASV, BSB, Darby, DRB, ESV, Geneva, JPS, JUB, KJV, KJVA, LEB, LITV, MKJV, RV, UASV+, WEB, WEBA, Webster, YLT. Todas essas mantêm a fórmula clássica “medita dia e noite” (ou equivalentes), com o verbo “meditar” como tradução direta de yehgeh, e com a preposição “em” a indicar a localização interior da prática. Essa fidelidade se mostra não apenas linguística, mas teológica, pois preserva o dinamismo do verbo hebraico, que implica murmúrio contínuo, vocalização mental, recitação pessoal e reflexiva, tal como em Josué 1:8 e Salmos 119:97. As versões que utilizam “medita” mantêm a ambivalência sonora e reflexiva do hebraico, diferentemente de versões que enfraquecem o sentido vocalizado e habitual do verbo.

Algumas traduções acrescentam riqueza semântica ou desenvolvem teologicamente o conceito, como a ISV (“he meditates in his instruction”), TLV (“Torah of Adonai”), Cepher e HRB (“Torah of Yahuah/YHWH”). Essas versões não distorcem, mas ampliam a percepção do leitor quanto à identidade do objeto meditado: “Torá” em vez de “lei”, restituindo o vocábulo técnico original e evitando os equívocos culturais do termo “lei” em contextos ocidentais modernos. Tal escolha reforça a continuidade entre a instrução de Deus revelada a Israel e a revelação cristológica posterior (João 5:46–47), promovendo um ganho teológico. Entretanto, seu uso da transliteração (“Torá”) exige leitores familiarizados com termos hebraicos e, portanto, pode não ser acessível a todos os públicos.

Outras versões, contudo, tomam liberdades que comprometem o vínculo com o texto hebraico. A CEV (“they think about it day and night”) e a ERV (“they think about the LORD’s teachings”) substituem o verbo “meditar” por “pensar” ou “refletir”, eliminando a dimensão vocal da prática hebraica. Ao fazê-lo, apagam o aspecto ativo, concreto e físico que hāgāh carrega — especialmente como murmúrio, recitação ou sussurro — e convertem a prática em um ato exclusivamente interior e abstrato, o que não corresponde ao perfil da piedade hebraica. A GNB (“they find joy in obeying the Law... they study it”) e a NET (“he finds pleasure in obeying the LORD’s commands... he meditates”) optam por reformular a expressão e inserir no primeiro membro do versículo a ideia de obediência ou estudo, o que, embora teologicamente aceitável, é exegética e sintaticamente ilegítimo, pois yehgeh não significa obedecer nem estudar, mas murmurar reflexivamente. Essas versões deslocam o foco da ação descrita, promovendo uma leitura moralizante e externa, quando o texto celebra uma prática de interiorização e deleite contínuo.

A versão TPT (The Passion Translation) apresenta o exemplo mais interpretativo e teologicamente eisegético: “His pleasure and passion is remaining true to the Word of ‘I Am,’ meditating day and night in the true revelation of light”. Aqui, embora a ideia de “meditating day and night” esteja presente, ela é cercada por construções doutrinárias alheias ao vocabulário hebraico — como “Word of ‘I Am’” e “revelation of light” — que são inserções teológicas não justificadas pelo hebraico massorético nem pela Septuaginta (cf. LXX: kai en tō nomō autou meletēsei hēmeras kai nuktos). A tradução, portanto, é expansiva e adorna o texto com camadas doutrinárias modernas que podem confundir a exegese original.

A versão GNB traduz yehgeh por “study it”, o que enfraquece a ideia do deleite constante e da repetição murmural, transformando o verbo num simples ato intelectual acadêmico, o que não corresponde à realidade do justo bíblico, cuja ação é existencial, afetiva e ritual.

Por fim, versões como CEV, ERV, NET e GNB, apesar de acessíveis ao público leigo, sacrificam nuances essenciais do verbo hebraico e inserem interpretações teológicas que escapam ao escopo do versículo, enquanto TPT excede todos os limites aceitáveis de tradução ao reescrever o texto segundo uma espiritualidade particularizada. Em contraste, versões como KJV, JPS, ASV, ESV e LITV demonstram fidelidade lexical e teológica, mantendo o verbo “meditar”, a preposição correta, e o merismo “dia e noite”, oferecendo ao leitor um retrato exato da piedade descrita pelo salmista. Assim, a justeza teológica e gramatical depende não só da literalidade, mas da manutenção dos traços semânticos, fonológicos e devocionais próprios de hāgāh, sem os quais a espiritualidade do versículo se dilui.

A expressão “mas na sua lei medita de dia e de noite” (Salmos 1:2b) eleva a meditação à categoria de expressão teológica fundamental da piedade bíblica. A ação de meditar — verbo yeheggeh (imperfeito qal de הָגָה, “murmurar, ruminar”) — não é apenas intelectual, mas profundamente espiritual e encarnacional: ela descreve um processo de assimilação contínua, um sussurrar interno em que a alma mastiga, volta a mastigar e deglute o conteúdo da revelação de Deus. Isso se manifesta como prática, afeto e presença. A ideia de que o justo medita “dia e noite” não designa literalmente o ato de passar vinte e quatro horas em leitura, mas antes expressa — por meio de um merismo hebraico (como em Gênesis 8:22; Salmos 113:3) — a ideia de continuidade plena: o justo organiza seu tempo, seus afetos e sua consciência ao redor da presença da Palavra.

A Bíblia hebraica estabelece a meditação como um ato vocalizado, com ressonância corpórea. A raiz הָגָה aparece, por exemplo, em Josué 1:8: “Não se aparte da tua boca o livro desta lei; antes, medita nele dia e noite”. O verbo ocorre com a preposição בְּ (“nele”), e o imperativo “medita” (וְהָגִיתָ) está no qal com o waw conversivo, ressaltando uma prática volitiva e ativa. Aqui, meditação é inseparável da fala, pois trata-se de manter o texto nos lábios como um ruminante mantém o alimento na boca — ele volta e revolve. Também em Salmos 77:12 e 119:97 a meditação é fonte de alegria e discernimento: “Quanto amo a tua lei! É a minha meditação todo o dia” (Salmos 119:97). Assim, “meditar” não significa apenas refletir, mas responder intimamente à voz de Deus com mente, alma e boca.

No Novo Testamento, embora o termo “meditar” não seja frequentemente traduzido assim, seu conceito está presente. Em 1 Timóteo 4:15, Paulo exorta: “Medita estas coisas; ocupa-te nelas, para que o teu aproveitamento seja manifesto a todos” (meléta taûta). A palavra grega meletáō, que na LXX traduz hāgāh, também implica exercício diligente, preparação contínua, repetição prática. Em Filipenses 4:8, Paulo apresenta uma espécie de catálogo meditativo: “tudo o que é verdadeiro, honesto, justo, puro... nisso pensai” — o verbo aqui é logízesthe, no presente do imperativo médio/passivo, indicando ação contínua e reflexiva. Já em Colossenses 3:16, o verbo “habite” (ἐνοικείτω, enoikeítō) é usado para indicar a permanência da Palavra de Cristo na vida do fiel, com o efeito imediato de ensinar e admoestar com sabedoria — ou seja, a meditação se manifesta em ação.

Na vida de Jesus, vemos essa dinâmica realizada em sua humanidade perfeita. Aos 12 anos, ele é encontrado no templo “ouvindo e interrogando os doutores” (Lucas 2:46), o que sugere atividade reflexiva, dialógica e constante. Na tentação do deserto (Mateus 4:4), sua resposta a Satanás mostra que ele ruminava as Escrituras, citando Deuteronômio 8:3 — “nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus”. A meditação para Jesus não é passividade mística, mas arma espiritual. No Sermão da Montanha, ao reinterpretar a Torá, Jesus mostra que sua interiorização das Escrituras era profunda, amorosa e penetrante (Mateus 5–7). Toda sua vida é uma “meditação vivida” da Palavra.

O “dia e noite” de Salmos 1:2b, portanto, não aponta para literalismo rígido, mas para permanência, constância, integração. Assim como “orar sem cessar” (1 Tessalonicenses 5:17) não significa repetir orações 24 horas, mas manter um estado contínuo de comunhão, “meditar de dia e de noite” implica viver sob o influxo constante da Palavra, com ela moldando nosso pensar, sentir, falar e decidir.

No campo da filosofia, há uma ponte notável entre a meditação hebraica e a contemplação grega. Para Platão, no Fedro e na República, o ideal filosófico é contemplar o bem e o verdadeiro até que a alma se transforme à imagem do objeto contemplado. Aristóteles, por sua vez, no Ética a Nicômaco, declara que a vida contemplativa (βίος θεωρητικός) é a mais alta, pois aproxima o homem da atividade dos deuses. No entanto, a diferença fundamental está no objeto e na direção: enquanto a meditação hebraica é relacional, pessoal e voltada para a revelação divina, a contemplação grega é, em muitos casos, abstrata, racional e voltada para arquétipos impessoais. A Bíblia, ao contrário, insiste que a meditação não é voltada para ideias puras, mas para uma voz viva: “falou o Senhor” (Êxodo 19:9; Hebreus 1:1).

Essa diferença é abissal: o justo bíblico não medita em leis cósmicas impessoais, mas na torá — instrução viva e pessoal de YHWH. Ainda assim, há pontos de convergência: a ideia de que o pensamento molda o ser, de que aquilo que contemplamos nos transforma (2 Coríntios 3:18: “contemplando... somos transformados de glória em glória”), e que a mente deve ser disciplinada e purificada (Romanos 12:2: “transformai-vos pela renovação da vossa mente”).

Assim, a meditação dia e noite em Salmos 1:2b representa uma vida convertida à Palavra, absorvida por ela, conformada a ela — uma prática que começa com a murmuração e termina em transformação. Em termos bíblicos, é o equivalente a comer o rolo (Ezequiel 3:3), guardar a Palavra no coração para não pecar (Salmos 119:11), e permanecer em Cristo como o ramo permanece na videira (João 15:4–7). Tudo isso indica que a meditação contínua não é uma obsessão fanática, mas uma expressão do maior mandamento: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, alma, força e entendimento” (Lucas 10:27). Amar é meditar. Meditar é viver com a Palavra dentro — dia e noite.

Salmos 1:3a Pois será como a árvore plantada junto a ribeiros de águas... (Hb.: wehāyā kĕʿēṣ šātûl ʿal-palge-māyim — O versículo “E será como a árvore plantada junto a ribeiros de águas” inicia uma das imagens mais icônicas da teologia sapiencial hebraica: a descrição do justo por meio de uma analogia botânica profundamente teológica, existencial e escatológica. O hebraico diz: “wehāyā keʿēṣ šātûl ʿal-pālǝgê-māyim”. A estrutura é introduzida por wehāyā, forma conjugada do verbo hāyāh (הָיָה), “ser, tornar-se, acontecer”, no Qal, conjugado na terceira pessoa do singular, no perfeito (indicando uma ação já estabelecida ou seu estado resultante), com prefixo de waw consecutivo, indicando aqui um futuro narrativo: “e ele será”. Esse waw conversivo do perfeito é clássico em sequências poéticas ou narrativas com valor prospectivo, como se vê também em Deuteronômio 28:2 e 2 Samuel 7:9, onde ações futuras, certas e determinadas são expressas pelo qatal com waw. Essa forma verbal reforça a inevitabilidade da bênção — não é condicional, mas um resultado garantido da meditação constante na torá (v. 2).

A metáfora central é keʿēṣ (כְּעֵץ), “como árvore”, com o prefixo comparativo ke- e o substantivo ʿēṣ no estado absoluto, masculino singular, indicando uma árvore concreta, símbolo da permanência, estabilidade e vitalidade. O substantivo ʿēṣ (árvore) é usado recorrentemente no Antigo Testamento como símbolo moral ou escatológico: Provérbios 11:30 diz “pǝrî-ṣaddîq ʿēṣ ḥayyîm” (“o fruto do justo é árvore de vida”), enquanto Jeremias 17:8 — um paralelo direto de Salmos 1:3 — repete a mesma construção, apresentando o justo como uma árvore “plantada junto às águas” que “não receia quando vem o calor”.

O verbo šātûl (שָׁתוּל), “plantado”, é um particípio passivo Qal, masculino singular, da raiz šāṯal (שָׁתַל), que aparece raramente fora dos Salmos e de Jeremias (cf. Jeremias 17:8, 31:5). Trata-se de um verbo distinto do mais comum nāṭaʿ (נָטַע), “plantar”, e tem conotação de algo cuidadosamente transplantado, cultivado deliberadamente — não uma árvore selvagem, mas uma planta de jardim irrigado. Esse detalhe é teologicamente crucial: o justo não apenas nasce como tal, mas é transplantado e posicionado com intenção, como o servo do Senhor em Isaías 61:3, chamado de “ʿēṣê-ṣedeq, maṭṭaʿ YHWH” (“árvores de justiça, plantação do Senhor”).

A expressão ʿal-pālǝgê-māyim (עַל־פַּלְגֵי־מָיִם), “junto a ribeiros de águas”, é formada por três elementos: a preposição ʿal (“sobre, junto a”), o plural construto pālǝgê (“divisões, canais, ramos de curso d’água”) e o substantivo māyim (“águas”). A palavra pālag (פָּלַג) significa “dividir, repartir”, e seu substantivo derivado peleg denota canais artificiais de irrigação, não rios naturais. Isso é confirmado pelo uso em Jó 38:25 (“Quem abriu canal para o aguaceiro?”), bem como por referências agrárias em Eclesiastes 2:6, onde Salomão diz: “fiz para mim açudes de águas, para regar com eles o bosque em que reverdeciam as árvores”. Trata-se, portanto, de uma alusão técnica à prática agrícola do Crescente Fértil: como em Deuteronômio 11:10, onde o Egito é regado “com o pé”, ou seja, por canais controlados manualmente. A imagem, portanto, não é apenas poética: é uma construção teológica de providência e constância — o justo é plantado em um sistema de nutrição constante, orientado pelo Divino Jardineiro.

Na Septuaginta, o versículo é traduzido: “kai estai hōs xylon to pephuteumenon para tas diexodous tōn hydatōn” (“e será como a árvore que foi plantada junto às saídas das águas”). A expressão xylon para “árvore” preserva a neutralidade do hebraico ʿēṣ (sem espécie determinada), mas o verbo pephuteumenon (πεφυτευμένον) é o particípio perfeito passivo de phuteuō (φυτεύω), “plantar”, que aparece também em Mateus 15:13: “Toda planta que meu Pai celestial não plantou será arrancada”. O uso do perfeito passivo na LXX enfatiza um ato consumado com efeito contínuo: o justo foi plantado e permanece plantado. Já a expressão para tas diexodous tōn hydatōn (“junto às saídas das águas”) traduz pālǝgê-māyim com certa ampliação semântica: diexodous (saídas, desvios) implica uma rede de canais de irrigação que divergem da fonte principal, reforçando a ideia de proximidade permanente com fontes múltiplas de nutrição espiritual.

Essa estrutura — árvore cuidadosamente plantada por canais de águas vivas — se torna uma imagem teológica fundamental: aparece em Ezequiel 47:12, onde as árvores nas margens do rio que flui do templo “dão fruto todo mês” porque suas raízes estão conectadas às águas do santuário. No Novo Testamento, Apocalipse 22:2 recupera a mesma figura escatológica: “e no meio da sua praça, e de um e de outro lado do rio, estava a árvore da vida, que dá doze frutos... e suas folhas são para cura das nações”. A árvore plantada do Salmo 1 é, portanto, protótipo do justo escatológico, cuja vida frutífera decorre da sua constante irrigação pela Palavra (cf. João 15:4-5).

Gramaticalmente, toda a estrutura de Salmos 1:3a expressa uma consequência permanente e estável. O particípio šātûl atua como um predicativo do sujeito elíptico “ele” (o justo), e sua relação com wehāyā (com waw conversivo) expressa que o resultado de evitar o caminho dos ímpios (v. 1) e deleitar-se na torá (v. 2) é tornar-se um ente enraizado, constante, resiliente, vitalizado pela irrigação constante de Deus. Não se trata de uma comparação fraca, mas de uma descrição ontológica: o justo é como tal árvore, pois seu ser foi transformado, transplantado e sustentado por águas invisíveis — expressão da torá divina internalizada.

A estrutura poética hebraica aqui — comparativa e descritiva, com paralelismo entre árvore–água–fruto–folha–prosperidade — inicia um movimento em crescendo, onde o versículo 3 desenvolve o clímax da antítese iniciada no versículo 1. A bênção do justo não é efusiva ou espetacular; ela é orgânica, contínua, silenciosa, frutífera, sazonal e imperturbável — em contraposição ao “moinho de vento” dos ímpios (v. 4).

Com base na exegese completa de Salmos 1:3a (“E será como a árvore plantada junto a ribeiros de águas”) e em cotejo com todas as traduções enviadas — que cobrem amplo espectro de tradições linguísticas e doutrinárias — podemos agora oferecer uma análise crítica, teológica e linguística das versões, distinguindo aquelas que (1) são estritamente fiéis ao original hebraico e sua estrutura poética, (2) ampliam teologicamente o sentido de forma legítima, e (3) modificam ou distorcem aspectos essenciais do texto hebraico.

A primeira observação que se impõe é a impressionante uniformidade de muitas traduções em preservar uma estrutura quase verbatim, centrada em expressões como “como a árvore plantada junto a ribeiros de águas”. A fórmula aparece nas versões ARC, ARA, NVI, NVT, NTLH, RA, CNBB, Ave Maria, BKJ, LTT, BLIV, ESV, NASB, NIV, NKJV, KJV, LEB, RSV, NRSV, entre outras. Essa consistência testemunha a estabilidade da tradição de tradução do Salmo 1 e o reconhecimento da força metafórica de sua imagem original.

Essas versões podem ser consideradas exatas e leais ao texto hebraico. Todas elas mantêm a metáfora botânica introdutória (keʿēṣ šātûl ʿal-pālǝgê-māyim) com fidelidade morfológica e semântica: o “plantado” aparece como particípio passivo (“plantada”), a árvore como substantivo indeterminado (“uma árvore”), e os “ribeiros” traduzem corretamente o construto pālǝgê de peleg (plural de “canal, divisão, ribeiro”) — e não “rios” (no sentido de nāhār). Há também manutenção da preposição ʿal (“junto a”, “sobre”), sem tentativas de embelezamento homilético. Portanto, essas versões cumprem com rigor os critérios do grupo (1).

Entre as versões que aumentam o entendimento teológico sem distorção, podemos citar a TLB (The Living Bible) com: “He is like a tree planted along a riverbank, bearing fruit each season”. Aqui, o uso de “riverbank” (margem do rio) é uma atualização natural do contexto oriental, embora tecnicamente menos preciso do que “streams” ou “canals”. A força da TLB está na fluência exegética: em vez de manter a sintaxe poética hebraica, ela articula já a progressão do versículo inteiro com fluência devocional. Apesar disso, não há herege semântica nem adulteração teológica; apenas um esforço de acessibilidade narrativa. O mesmo vale para versões como The Voice, NLT, MSG, que expandem a imagem para facilitar sua internalização contemporânea. Essas versões pertencem, portanto, ao grupo (2).

Agora, há casos em que a tradução compromete elementos centrais do original, entrando no grupo (3). Algumas versões, como Bíblia Viva ou certas edições da MSG, trazem formulações como: “como uma árvore em lugar certo, onde há água de sobra” ou “uma árvore exuberante num jardim bem irrigado”. Embora pareçam ampliar o sentido de šātûl ʿal-pālǝgê-māyim, essas expressões substituem a ação divina e passiva do “plantar” (šātûl) por uma noção impessoal ou natural de “estar em lugar certo”. Essa mudança atenua o caráter teológico do verso — que, segundo Jeremias 17:8 e Isaías 61:3, exige a leitura do justo como alguém plantado por Deus. O sujeito da ação é o Senhor, não o próprio justo nem o acaso. Substituir “plantado” por “situado”, “crescendo”, “num bom lugar”, dilui o conteúdo de soberania e vocação implícito na construção hebraica.

Outro caso problemático é quando “ribeiros de águas” (pālǝgê-māyim) é traduzido como “rios”, como em algumas versões mais livres. Essa mudança sutil altera a imagem agronômica de canais de irrigação — como em Deuteronômio 11:10 e Eclesiastes 2:6 — para a de um rio natural, o que rompe com o campo semântico de ação humana e divina para criar irrigação espiritual intencional. O justo não cresce ao acaso junto a um grande rio natural: ele é plantado à beira de um sistema cuidadosamente planejado de canais — símbolo da Palavra distribuída com precisão e constância.

Por fim, um último ponto de comparação é com a Septuaginta, que traduz “plantada” por pephuteumenon (particípio perfeito passivo), mantendo a passividade teológica da plantação, mas substitui pālǝgê por diexodous (“saídas” ou “derivações” das águas), sugerindo canais divergentes, reforçando a noção de rede de irrigação. Isso é fiel ao contexto e enriquece a imagem, o que aparece de forma implícita em traduções que optam por “canais” ou “córregos” — como a BJ (Bíblia de Jerusalém), que fala em “canais de água”, sendo uma das mais teologicamente exatas nesse ponto. A TOB também acerta ao manter “junto às correntes de água”, preservando o campo semântico múltiplo do hebraico.

Em suma:

Versões que são teologicamente fiéis e linguisticamente exatas (grupo 1): ARC, ARA, NVI, NVT, NTLH, RA, CNBB, BJ, Ave Maria, BKJ, LTT, BLIV, ESV, NASB, NIV, NKJV, KJV, RSV, NRSV, LEB.

Versões que ampliam devocionalmente sem distorcer (grupo 2): TLB, MSG (em partes), The Voice, NLT.

Versões que distorcem ou diminuem a força teológica da imagem (grupo 3): algumas edições populares da Bíblia Viva, MSG (em outras partes), versões que suprimem o “plantado” ou trocam “canais” por “rios” de forma teologicamente neutra.

O critério teológico de avaliação deve sempre considerar: (a) a passividade do justo como alguém plantado por Deus; (b) a intenção de irrigação constante mediante canais — símbolo da Palavra de Deus como fluxo vivo e dirigido; (c) a unidade literária entre o que a árvore é (plantada), onde está (junto a canais) e por que floresce (por causa dessa plantação e irrigação). As traduções que mantêm essas três dimensões — literária, morfológica e teológica — são, portanto, as mais fiéis ao texto original inspirado.

A escolha da metáfora da árvore para descrever o justo em Salmos 1:3a revela uma das imagens mais ricas e duradouras de toda a Escritura, cuja ressonância se estende não apenas por todo o Antigo e Novo Testamentos, mas também encontra paralelos na literatura sapiencial do Antigo Oriente Próximo e na filosofia clássica grega. O versículo declara: “E será como a árvore plantada junto a ribeiros de águas”, e por essa simples mas profunda analogia, o salmista transmite uma teologia da estabilidade, frutificação, nutrição constante e origem divina da vida justa.

No contexto veterotestamentário, a imagem do ser humano como árvore é usada tanto para descrever a prosperidade do justo quanto a instabilidade do ímpio, dependendo do tipo de árvore e das condições do ambiente. Em Jeremias 17:7–8, encontramos um paralelo exato a Salmos 1:3:

Bendito o homem que confia no SENHOR... porque será como a árvore plantada junto às águas, que estende as suas raízes para o ribeiro....

Aqui, a ideia é a mesma: uma árvore não selvagem, mas plantada, isto é, colocada ali por intervenção intencional, aludindo à ação soberana de Deus. A árvore não apenas sobrevive, mas permanece firme mesmo quando a seca vem (Jr 17:8b), ao contrário do ímpio, que é “como a palha que o vento dispersa” (Sl 1:4).

Além disso, Ezequiel 47:12 descreve árvores plantadas ao longo do rio que sai do templo, cujas folhas servem de remédio e cujos frutos se renovam mensalmente, indicando renovação contínua vinda de Deus. A mesma imagem reaparece em Apocalipse 22:2, com a “árvore da vida” que dá seu fruto todo mês, cujas folhas são para a cura das nações — um eco explícito da linguagem botânica de Salmos 1.

A Bíblia também usa árvores como metáforas negativas. Em Isaías 1:30, os ímpios são comparados a uma árvore que murcha: “Porque sereis como o carvalho cujas folhas murcham, e como o jardim que não tem água”, exatamente o inverso da imagem de Salmos 1. Em Juízes 9:8–15, a fábula de Jotão personifica árvores para descrever líderes e sua legitimidade. Já Isaías 61:3 chama os justos de “carvalhos de justiça, plantados pelo Senhor para sua glória”, expressão que literalmente ecoa a estrutura de keʿēṣ šātûl do Salmo.

Jesus aprofunda essa metáfora em sua própria doutrina. Em Mateus 7:17–20, Ele afirma:

Assim, toda árvore boa produz bons frutos, e toda árvore má produz frutos maus... pelos seus frutos os conhecereis.

Aqui, a árvore não é meramente um símbolo de estabilidade, mas de caráter revelado. Em Lucas 6:43–45, essa ideia é ampliada para mostrar que o fruto visível é expressão do que está no “coração”, e isso remonta ao homem bem-aventurado do Salmo 1, cuja frutificação procede de seu enraizamento na toráh de Deus.

Jesus também é descrito como videira verdadeira em João 15:1–5:

Eu sou a videira verdadeira... permanecei em mim, e eu permanecerei em vós... quem permanece em mim dá muito fruto.

Essa imagem retoma Salmos 1:3: o justo é frutífero, porque permanece na fonte de vida, seja o “ribeiro” do Salmo, seja a “videira” que é o próprio Cristo. Essa relação é tão orgânica que o próprio Espírito Santo é quem produz o fruto do Espírito (Gálatas 5:22–23) na vida do justo.

A ideia da árvore como símbolo da vida regenerada e espiritual perpassa o Novo Testamento. Em Romanos 11:17–24, Paulo usa a metáfora da oliveira, com ramos naturais e enxertados, para descrever Israel e os gentios na economia da salvação. A árvore aqui é a comunidade da aliança, nutrida pela raiz santa, que sustenta a seiva da vida espiritual.

Já em Apocalipse 2:7, a promessa ao vencedor é: “dar-lhe-ei a comer da árvore da vida”, retomando Gênesis 2–3 e antecipando Apocalipse 22, onde os redimidos vivem eternamente entre árvores frutíferas, junto ao rio da vida — a culminação escatológica da imagem plantada em Salmos 1.

A metáfora da árvore como símbolo de estabilidade e vida floresce também na literatura do Antigo Oriente. Nos hinos egípcios e mesopotâmicos, reis e deuses são frequentemente comparados a cedros, palmeiras ou tamareiras — árvores de vigor, resistência e valor. No épico de Gilgámesh, a planta da imortalidade é guardada no fundo do mar, e seu roubo implica a perda da árvore da vida. Em vários textos ugaríticos, árvores também marcam os jardins dos deuses como símbolos de bênção. O simbolismo é quase universal: árvore = fonte da vida sustentada por forças transcendentais.

Na filosofia grega, o uso da imagem arbórea como metáfora do homem virtuoso não é incomum. Platão, em Fédon 110d, descreve a alma como um organismo que floresce quando nutrido pela verdade, e Aristóteles, na Ética a Nicômaco (I.7; 1098a), relaciona a virtude à eudaimonía, isto é, ao florescimento humano — uma vida plena, frutífera. Embora não usem diretamente “árvores” como metáfora constante, o conceito de raiz da alma virtuosa, florescimento moral, e nutrição pelo logos é semelhante à imagem veterotestamentária: o homem justo é aquele que está enraizado em uma fonte perene de sabedoria (cf. Provérbios 3:18: “Ela [a sabedoria] é árvore de vida para os que a alcançam”).

Portanto, Salmos 1:3a utiliza a árvore plantada junto a ribeiros para comunicar o ideal do justo como alguém que não apenas evita o mal (v.1), mas é positivamente nutrido e cultivado pela Palavra de Deus (v.2). A imagem evoca estabilidade (enraizamento), constância (irrigação contínua), frutificação (evidência externa do interior), e origem divina (plantado, não espontâneo). Essa linguagem reverbera em toda a teologia bíblica: do Éden à Nova Jerusalém, passando pela vida do crente em Cristo, o justo é sempre representado como alguém em relação viva e vital com a fonte eterna de nutrição espiritual.

Assim, a árvore do Salmo 1:3 não é apenas um símbolo de bênção temporal — mas um ícone escatológico da vida com Deus, expressando uma teologia de presença, frutificação e permanência. O justo não apenas vive — ele floresce, porque está plantado na Palavra viva e eterna.

Salmos 1:3b ...a qual dá o seu fruto na estação própria... (Hb.: ...ʾăšer piryô yittēn bĕʿittô... — A segunda metade de Salmos 1:3, traduzida como “...a qual dá o seu fruto na estação própria, e cujas folhas não caem”, apresenta um desenvolvimento da metáfora arbórea aplicada ao justo. A imagem que se iniciou com keʿēṣ šātûl ʿal-palgê-māyim (“como árvore plantada junto a ribeiros de águas”) agora é expandida por meio de dois predicados coordenados que descrevem as consequências visíveis da proximidade contínua com a fonte vital. O hebraico desta parte do versículo é: ʾăšer piryô yittēn bĕʿittô wĕʿālêhû lōʾ yibbōl (“Que dá o seu fruto na sua estação, e cuja folha não murcha.”).

O primeiro membro — ʾăšer piryô yittēn bĕʿittô — consiste na cláusula relativa introduzida por ʾăšer, que aqui se refere a haʾîš (“o homem”) do versículo 1, e é retomado por meio da imagem da árvore. A expressão piryô (“o seu fruto”) é um substantivo comum masculino singular com o sufixo pronominal de 3ª pessoa masculina singular (), proveniente da raiz p-r-y (“frutificar”). Esse termo aparece em múltiplas passagens que descrevem bênção, prosperidade e cumprimento da promessa da terra fértil (cf. Levítico 26:4, Ezequiel 34:27, Joel 2:22). A ação atribuída à árvore — yittēn (“dá”) — é o verbo n-t-n (“dar”), conjugado no imperfeito do binyan Qal, 3ª pessoa masculina singular, que indica uma ação habitual ou iterativa, coerente com a natureza cíclica da frutificação. O imperfeito aqui não expressa apenas futuro cronológico, mas hábito e permanência. A preposição + o substantivo ʿēṯ (“tempo”, “estação”, “época”) com sufixo de 3ª masc. sing. (, “seu”) — bĕʿittô — transmite a ideia de frutificação no tempo apropriado, sem antecipação nem atraso, conforme a ordem estabelecida por Deus na criação (cf. Eclesiastes 3:1: “Para tudo há uma ocasião certa, há um tempo certo para cada propósito debaixo do céu”).

Salmos 1:3c ...e cujas folhas não murcha... (Hb.: wĕʿālēhû lōʾ yibbōl — A segunda proposição é wĕʿālêhû lōʾ yibbōl, onde temos mais uma vez a preposição coordenando uma nova cláusula. O substantivo ʿālêhû (“sua folha”) é um substantivo masculino plural (ʿālê) com o sufixo pronominal de 3ª masc. sing. (-hû, “sua”), proveniente da raiz ʿ-l-h (“folha”, “ramo”). A negação lōʾ precede o verbo yibbōl, que é o imperfeito Qal da raiz b-l-l ou n-b-l (as variantes lexicais se sobrepõem em algumas formas), com o sentido de “murchar”, “cair”, “perder o viço”, presente também em passagens como Isaías 1:30: “Sereis como carvalho cujas folhas murcham”. O tempo verbal, novamente o imperfeito, expressa uma ação incompleta ou não realizada: “não murcha”, ou “não murchará”, o que implica estabilidade contínua. O uso do imperfeito negativo neste contexto estabelece um contraste com a imagem do ímpio no v.4, cujo destino é o oposto: dispersão, secura, falta de raiz e de fruto.

É importante destacar que o paralelismo entre “fruto” e “folha” abrange mais do que apenas dois aspectos botânicos. Na literatura bíblica, fruto geralmente representa ações justas, evidências do caráter e comportamento visível (cf. Provérbios 11:30: “O fruto do justo é árvore de vida”), ao passo que a folha que não murcha sugere constância, frescor espiritual, resistência à seca, como em Jeremias 17:8: “Não temerá quando vier o calor, e sua folha estará verde”. Assim, o versículo conjuga frutificação sazonal (ações corretas em seu tempo) com uma vitalidade contínua (folha sempre verde), sugerindo equilíbrio entre estabilidade interna e eficácia externa.

A Septuaginta, por sua vez, traduz essa parte com: ὃς τὸν καρπὸν αὐτοῦ δώσει ἐν καιρῷ αὐτοῦ, καὶ τὸ φύλλον αὐτοῦ οὐκ ἀπορρυήσεται (hos tòn karpòn autoû dósei en kairō̂ autoû, kaì tò phýllon autoû ouk aporrhḗsetai), em que δώσει (dósei, futuro do indicativo ativo de dídōmi, “dar”) traduz yittēn, mantendo a ideia de habitualidade no futuro. O substantivo καιρός (kairós) traduz ʿēṯ, preservando o sentido de “tempo oportuno” — categoria central na teologia bíblica e grega. O verbo ἀπορρυήσεται (aporrhḗsetai, futuro médio de aporrhéō, “cair”, “murchar”) traduz yibbōl, e reforça a ideia de que a folha não apenas se mantém, mas não será levada ao colapso ou à queda, sugerindo estabilidade diante das intempéries.

Outras ocorrências da raiz hebraica n-b-l ajudam a traçar o contraste teológico desejado pelo salmista. Em Jó 14:2, o homem é descrito como “flor que murcha”, e em Isaías 40:7, “seca-se a erva, e cai a sua flor”. Portanto, o justo do Salmo 1 é alguém que não está sujeito à transitoriedade, porque sua vitalidade decorre não de si mesmo, mas do contínuo contato com as “águas vivas” da toráh.

Assim, a estrutura gramatical, com seus verbos no imperfeito Qal, marca um estado contínuo e não apenas pontual, reforçando o sentido de uma vida constante em sua fecundidade e em sua vitalidade. A sintaxe apresenta paralelismo poético entre os dois membros da cláusula — frutificação e frescor foliar — e retoma o eixo temático do Salmo: a diferença entre o justo e o ímpio não é apenas ética, mas ontológica, pois o primeiro está enraizado em Deus, enquanto o segundo será levado como palha (v.4).

Em suma, Salmos 1:3, pela riqueza de suas formas verbais, sua precisão lexical e sua coesão sintática, exprime com clareza que a vida justa, sustentada por um relacionamento contínuo com a revelação divina, é marcada pela produtividade (fruto no tempo certo) e pela perenidade (folha que não murcha). A LXX confirma e amplifica essa leitura, reforçando que esse homem é não apenas estável, mas também duradouro em sua eficácia — não por mérito intrínseco, mas por causa da sua contínua nutrição espiritual.

Salmos 1:3d ...e tudo quanto fizer prosperará. (Hb.: wĕkol-ʾăšer yaʿăśeh yaṣlîaḥ — Essa declaração conclui a descrição do justo com uma ênfase sintética na eficácia prática de sua vida. O termo wĕkol é formado pela conjunção copulativa - (“e”) seguida do substantivo absoluto kol (“tudo, cada coisa”), que funciona aqui como objeto direto totalizador da ação subsequente. A presença do pronome relativo ʾăšer (“que”) introduz uma oração subordinada relativa, estabelecendo a ponte entre “tudo” (kol) e a ação verbal yaʿăśeh (“ele fizer”).

O verbo yaʿăśeh é uma forma do verbo ʿāśāh (“fazer”), conjugado no binyan qal, no imperfeito, terceira pessoa masculina singular, indicando uma ação futura ou habitual atribuída ao justo. O aspecto do imperfeito hebraico aqui sugere continuidade e potencialidade: “tudo o que ele vier a fazer” ou “tudo o que ele fizer constantemente”. Já o último verbo, yaṣlîaḥ, do verbo ṣālēaḥ (“prosperar”, “ser bem-sucedido”), também se encontra no binyan hifil, imperfeito, terceira pessoa masculina singular. O uso do hifil aqui é fundamental: esse binyan tem valor causativo, ou seja, a ação não é apenas de “prosperar” como resultado natural, mas de ser feito prosperar — há um agente por trás do êxito do justo. Assim, a frase poderia ser parafraseada como “e tudo o que ele fizer, [Deus] fará prosperar”, embora o sujeito da forma hifil não seja explicitado no versículo.

Do ponto de vista sintático, temos uma oração principal coordenada (wĕkol... yaṣlîaḥ) com oração relativa inserida (ʾăšer yaʿăśeh), funcionando como restrição ao “kol” — ou seja, o foco não é um sucesso indiscriminado em qualquer coisa que o justo deseje, mas em tudo o que ele fizer no contexto da vida moldada pela Torá (v. 2). A semântica da expressão é moldada tanto pelo aspecto verbal (imperfeito, com ideia de habitualidade) quanto pela estrutura do binyan hifil, reforçando o ensino de que a prosperidade do justo não é um resultado automático, mas fruto de ação constante conforme a vontade divina, que é quem, no fim, concede o êxito.

É preciso, entretanto, ter cautela, especialmente em tempos de Teologia da Prosperidade, que furta textos do AT para respaldar a comercialização da fé. O verbo yaṣlîaḥ, forma imperfeita qal do verbo ṣālaḥ (צָלַח), aparece em contextos que, muitas vezes, estão associados não às riquezas, mas ao êxito que provém da bênção de Deus, muito menos à ausência de adversidade. Em Gênesis 39:2–3, por exemplo, lemos que “o Senhor era com José, e foi varão próspero” (wayḥî ʾîš maṣlîaḥ), mesmo enquanto ele era escravo na casa de Potifar. A prosperidade de José não impediu sua prisão injusta, mas o acompanhou também nela (cf. Gênesis 39:23). Assim, a “prosperidade” bíblica é a manifestação da presença e favor de Deus — não um seguro contra desgraças, mas um selo de significado no meio delas. Em Deuteronômio 29:9, a fidelidade à aliança está ligada à prosperidade: “Guardai, pois, as palavras desta aliança, e cumpri-as, para que prospereis em tudo quanto fizerdes” — novamente com taṣlîḥû (תַּצְלִיחוּ) como termo-chave.

A teologia bíblica, portanto, não permite uma leitura superficial ou mecanicista do versículo — como se ele fosse uma fórmula infalível de recompensa imediata. Personagens como Jó (cf. Jó 1:1; 2:10), Jeremias (cf. Jeremias 20:7–9) e o próprio Jesus (cf. Isaías 53:3; Lucas 9:22) foram absolutamente fiéis, mas sofreram de maneira atroz. Em 2 Coríntios 11:23–27, Paulo detalha sofrimentos brutais enfrentados em obediência a Deus. No entanto, ele mesmo afirma que, “em todas estas coisas, somos mais que vencedores, por aquele que nos amou” (Romanos 8:37). A prosperidade real, no plano bíblico, é a vitória espiritual que se dá mesmo (e às vezes somente) através da dor.

A “Teologia da Prosperidade” — que reduz bênção a riqueza, saúde e sucesso — representa, portanto, uma distorção deste conceito. Ela falha por ignorar a cruciformidade do discipulado (cf. Marcos 8:34–35), o valor da provação (cf. Tiago 1:2–4) e a realidade do sofrimento dos justos. Em vez disso, a prosperidade prometida no Salmo 1:3 deve ser interpretada à luz de Josué 1:8 — “não se aparte da tua boca o livro desta lei... então farás prosperar o teu caminho” (ʾāz taṣlîaḥ) — onde a prosperidade decorre da imersão contínua na vontade de Deus.

O Novo Testamento reafirma esse entendimento. Em João 15:5, Jesus diz: “quem permanece em mim, e eu nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer.” Aqui, o fruto — símbolo inequívoco de prosperidade — não é um resultado mundano, mas a evidência de comunhão vital com o Logos eterno. De modo semelhante, Gálatas 5:22–23 identifica o verdadeiro “sucesso” do justo como fruto do Espírito: amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão, domínio próprio. Esses são os frutos que realmente nunca murcham (cf. Salmos 1:3b).

Assim, o salmista não está prometendo um caminho de ouro e ausência de dor, mas um caminho enraizado — como a árvore junto a ribeiros — em que a fidelidade frutifica no tempo certo (cf. Eclesiastes 3:1) e a presença de Deus é constante. O justo prospera porque está firmemente plantado no lugar da vontade divina. Como disse Paulo: “sei estar abatido e sei também ter abundância; em toda maneira, e em todas as coisas estou instruído... tudo posso naquele que me fortalece” (Filipenses 4:12–13). Isso é prosperar.

Finalmente, há ecos dessa concepção também na filosofia grega, especialmente entre os estóicos e platônicos, que associavam eudaimonía (felicidade verdadeira) à conformidade com a razão universal e à virtude. Para Platão (cf. República IX), o homem verdadeiramente feliz é o justo, ainda que sofra injustamente. E para Sêneca, a adversidade é ocasião para o sábio demonstrar virtude. Embora não sejam equivalentes, esses conceitos ecoam o ensino bíblico de que a prosperidade verdadeira é interior, transcendente, e inseparável da comunhão com o bem supremo — Deus. É por isso que “tudo quanto fizer prosperará”. Pois tudo quanto fizer será enraizado em Deus, regado por sua Palavra, e orientado por seu Espírito. E isso jamais falha.

Portanto, a cláusula final wĕkol-ʾăšer yaʿăśeh yaṣlîaḥ funciona como uma afirmação de bênção conclusiva que expressa a consequência visível da vida enraizada na Palavra: o justo, nutrido pela Torá e afastado da influência dos ímpios (v. 1), torna-se eficaz em seus caminhos — e essa eficácia é reconhecida como resultado da fidelidade de Deus àqueles que nele meditam “de dia e de noite”. A ideia de yaṣlîaḥ retorna, por exemplo, em Josué 1:8, reforçando que a prosperidade não é materialista ou mercantil, mas o florescimento integral do caminho do justo sob a bênção do Senhor.

Na análise crítica de Salmos 1:3d, à luz da exegese exaustiva do hebraico massorético que fizemos e da LXX, torna-se evidente que as traduções bíblicas divergem significativamente quanto ao grau de fidelidade ao texto original, especialmente na manutenção da metáfora botânica e no respeito às nuances verbais e sintáticas do hebraico. A frase hebraica ʾăšer piryô yittēn bĕʿittô wĕʿālēhû lōʾ yibbōl (“Que dá o seu fruto na sua estação, e cuja folha não murcha.”), como vimos, compreende dois membros principais: o primeiro enfatiza a frutificação pontual e sazonal do justo, e o segundo, a perenidade e constância de seu viço espiritual, metaforizado pela folha que não murcha. A análise gramatical deixou claro que o verbo yittēn (imperfeito Qal de n-t-n) indica uma ação iterativa, habitual, e que o termo bĕʿittô implica não apenas temporalidade genérica, mas uma sazonalidade divinamente ordenada (cf. Eclesiastes 3:1), e yibbōl (imperfeito Qal de n-b-l) aponta para a não realização contínua de uma deterioração que, em contraste com os ímpios (v.4), nunca afetará o justo.

Nesse contexto, as versões que mantêm as três colunas estruturantes do hebraico — o fruto dado no tempo certo, a folha que não murcha, e a continuidade das ações no aspecto habitual do imperfeito — são as que melhor preservam a fidelidade exegética. As traduções que seguem de modo quase idêntico a fórmula “dá o seu fruto na estação própria, e a sua folha não murcha” incluem ARC, ARA, NAA, JFA, Almeida Século 21, RC, BJ, BKJ, NVT, NVI, NIV, KJV, NKJV, NASB e ESV. Essas versões são exatas tanto na morfologia verbal quanto na metáfora poética. Elas reconhecem que a frutificação não é constante nem total, mas ocorre “no seu tempo” (bĕʿittô) — ou seja, segundo o ritmo e plano divinos, o que evita uma interpretação triunfalista de que o justo sempre frutifica sem cessar, e reafirma uma visão bíblica da ação espiritual como cíclica e subordinada à vontade soberana de Deus (cf. Salmos 92:14; João 15:5).

Algumas versões, porém, substituem o termo “estação própria” ou “tempo certo” por expressões como “no devido tempo” (NAA, NLT, HCSB, NRSV), o que, embora não distorça gravemente o sentido, acaba por amenizar o vocabulário específico de ʿēt (“tempo designado”) e reduzir a força teológica da expressão, pois torna-se mais interpretativo que literal. Outras, como a TEB e a Bíblia Ave Maria, tendem a omitir a clareza da oposição semântica entre “frutificação” e “murchamento”, preferindo um estilo mais estilizado e menos sintético. Ainda que essas opções tragam elegância estilística, perdem a força retórica do paralelismo antitético presente no texto hebraico e reiterado na Septuaginta com os termos καιρῷ (tempo oportuno) e οὐκ ἀπορρυήσεται (não se desvanece).

Já algumas versões mais dinâmicas, como a NTLH, VFL, ou a The Message (MSG), se afastam perigosamente do conteúdo original ao parafrasear o texto com acréscimos interpretativos como “sucesso garantido em tudo o que faz” ou “suas folhas estão sempre verdes e florescem sem parar”. Tais reformulações distorcem o paralelismo verbal e ampliam indevidamente a imagem poética para incluir promessas genéricas de prosperidade contínua — o que o texto não afirma. O mesmo problema ocorre com versões que omitem o aspecto da sazonalidade ou apresentam a frutificação como constante e sem intervalos, o que anula a dimensão de tempo próprio (ʿēt), que no hebraico está explicitamente ligada à ordem da criação (cf. Gênesis 8:22) e à dependência do homem justo de Deus e não de si mesmo.

A tradução literal da Septuaginta corrobora a estrutura do texto hebraico e deve servir como referência de fidelidade antiga: ὃς τὸν καρπὸν αὐτοῦ δώσει ἐν καιρῷ αὐτοῦ, καὶ τὸ φύλλον αὐτοῦ οὐκ ἀπορρυήσεται (hos ton karpon autou dosei en kairō autou, kai to phyllon autou ouk aporrhēsetai / “O qual dará o seu fruto no seu tempo, e a sua folha não cairá.”). Aqui, δώσει (dosei) preserva o valor do imperfeito hebraico, traduzido como futuro indicativo ativo, expressando habitualidade. ἐν καιρῷ (en kairō, “no kairós dele”) mantém o paralelismo com bĕʿittô, e οὐκ ἀπορρυήσεται (ouk aporrhēsetai, “não será desfolhada”) é uma tradução precisa de yibbōl, embora traga uma conotação mais passiva do que o verbo hebraico. Ainda assim, a tradução grega mantém o equilíbrio semântico entre produção frutífera e perenidade da vida justa. Assim, versões que seguem esse modelo helenístico-literal são as mais teologicamente enriquecedoras e exegeticamente fiéis.

Conclui-se, portanto, que as versões que mantêm a fidelidade ao paralelismo poético, à morfologia verbal e ao vocabulário técnico de “tempo designado” e “não murchar” — tais como ARC, ARA, NAA, KJV, NASB, ESV, BJ, entre outras — são exatas e teologicamente enriquecedoras. As que interpretam poeticamente mas preservam os conceitos centrais, como NVI, NVT e HCSB, ampliam o entendimento teológico sem trair o original. No entanto, aquelas que parafraseiam com excessiva liberdade, como a NTLH, MSG, ou que suavizam os termos com eufemismos vagos, acabam por distorcer os dados exegéticos fundamentais do versículo. A metáfora arbórea do justo, portanto, deve ser mantida com suas marcas verbais e temporais intactas, para preservar tanto o valor doutrinário quanto a estética bíblica inspirada.

Salmos 1:4 Os ímpios não são assim; mas são como a palha que o vento espalha. (Hb.: lōʾ kēn haʿrešāʿîm kī ʾim-kamōṭs ʾăšer-tiddĕpēnû rūaḥ — A construção inicia-se com a negativa enfática lōʾ kēn, literalmente “não assim”, que aparece como o completo reverso do que foi afirmado nos versículos anteriores a respeito do justo. A estrutura não precisa repetir a proposição completa — o recurso da elipse é recorrente na poesia hebraica —, mas o paralelismo antitético é claro: enquanto o justo é como uma árvore plantada junto a ribeiros de águas, os ímpios não o são de modo algum. A ênfase se aprofunda com o recurso adversativo kī ʾim, uma combinação de partícula causal e exclusão, traduzível como “mas ao contrário”, estabelecendo uma negação total do padrão anterior.

O substantivo haʿršāʿīm é a forma plural determinada de rašaʿ (רָשָׁע), um substantivo que designa o perverso, o malvado, ou aquele que age com injustiça. Na estrutura hebraica, o prefixo ha- marca o artigo definido (“os”), e a forma plural indica uma generalização: não se trata de um indivíduo específico, mas da categoria dos iníquos como um todo. O termo rašaʿ possui vasto uso em textos sapienciais e proféticos, contrastando com ṣaddîq (“justo”), e frequentemente representa não apenas quem peca, mas quem o faz com obstinação, desprezando a vontade de Deus (cf. Provérbios 11:5; Isaías 3:11).

A comparação que se segue — kāmōṭs ʾăšer-tiddĕpēnū rūaḥ — é riquíssima em imagens e implicações gramaticais. A partícula kāmō é uma forma enfática de comparação, semelhante a “como” ou “tal qual”. O substantivo mōṭs (מֹץ), aqui com o artigo prefixado kamōṭs, é usado para descrever a palha miúda ou a palha sem valor resultante da debulha — o resíduo leve e inútil que o agricultor deseja remover da colheita. Seu uso aparece em outros textos veterotestamentários com o mesmo valor semântico de inutilidade e instabilidade, como em Isaías 17:13 e Jó 21:18.

A oração relativa ʾăšer-tiddĕpēnū rūaḥ introduz a ação que incide sobre o mōṭs: “que o vento dispersa”. O verbo tiddĕpēnū é uma forma do verbo dāpan (דָּפַן), raríssimo no hebraico bíblico, com sentido de “expulsar”, “dispersar” ou “afastar com força”. Aqui ele está na conjugação imperfeita (yiqtol), tempo verbal que indica ação contínua ou habitual, com prefixo de segunda pessoa feminino singular (tiddĕpēnū) seguido do sufixo pronominal de terceira pessoa masculina singular (-nū), referindo-se ao mōṭs como objeto. A forma verbal pertence ao binyan Qal (forma simples e ativa), e seu aspecto inacabado transmite uma ação repetida ou constante: a palha está sempre sendo dispersa, nunca possui estabilidade. O sujeito da oração é rūaḥ (“vento”), um substantivo comum que carrega uma polissemia semântica relevante: pode indicar vento físico, espírito, sopro ou mesmo ruach divina, dependendo do contexto. Aqui, o sentido é atmosférico, mas há possível ambiguidade teológica, pois rūaḥ em contextos proféticos também pode simbolizar o juízo de Deus (cf. Isaías 41:16).

A versão da LXX oferece uma amplificação estilística marcante: ouk houtōs hoi asebeis, ouch houtōs, allʾ hōs ho koniortos hon ekriptē ho anemos apo prosōpou tēs gēs (οὐχ οὕτως οἱ ἀσεβεῖς· οὐχ οὕτως· ἀλλ’ ὡς ὁ κονιορτὸς ὃν ἐκριπτεῖ ὁ ἄνεμος ἀπὸ προσώπου τῆς γῆς). O grego repete enfaticamente a negação ouch houtōs, ouch houtōs (“não assim, não assim”), introduzindo forte retórica disjuntiva que a versão hebraica sugere, mas não explicita. O termo koniortos (κονιορτός, “pó fino”, “poeira”) expande semanticamente o mōṭs hebraico e pode indicar uma condição ainda mais volátil. O verbo ekriptē (ἐκριπτεῖ, de ekriptō) significa “expulsar”, “arremessar”, reforçando a ideia de que o ímpio é lançado fora com violência. A adição da expressão apo prosōpou tēs gēs (“da face da terra”) na LXX sugere um juízo total, uma erradicação do ímpio do cosmos ordenado.

Essa imagem ecoa outros textos veterotestamentários. Isaías 29:5 afirma que “os ímpios serão como o pó fino” (kamō ʿāfār qāṭôn), e Oseias 13:3 retrata os ímpios como “palha que se espalha dum eirado”. O Salmo 35:5 também reforça essa metáfora: “Sejam como a palha diante do vento”. O contraste é deliberado e vívido: enquanto o justo é enraizado, estável e frutífero (1:3), o ímpio é leve, inútil, e transitório, lançado para longe. O paralelo entre fixidez e dispersão é não apenas poético, mas teológico.

Gramaticalmente, o versículo ilustra uma estrutura binária típica da poesia hebraica, usando negativa, contraste e metáfora para ilustrar um conceito moral. O uso do imperfeito tiddĕpēnū com sujeito implícito rūaḥ sugere continuidade e inevitabilidade do juízo: não é uma ação pontual, mas uma consequência constante e necessária da impiedade.

Em suma, Salmos 1:4 constrói um contraste terminológico, imagético e teológico com os versículos anteriores. Enquanto o justo possui densidade ontológica — como árvore plantada, irrigada e produtiva —, o ímpio é carente de substância, incapaz de resistir ao mais leve sopro. A imagem da palha é um símbolo de rejeição cósmica e teológica, cuja dispersão é causada pelo próprio sopro da ordem divina. O texto emprega paralelismo antitético, ênfase retórica e metáfora agrícola para expressar que o ímpio não apenas vive fora da Torá, mas é existencialmente separado do mundo da bênção.

Com base na exegese hebraica e na leitura crítica das dezenas de versões que você forneceu, é possível realizar uma análise comparativa de Salmos 1:4 observando a fidelidade ao texto massorético, a contribuição teológica de cada versão e possíveis distorções ou empobrecimentos de sentido. O texto hebraico base afirma: lōʾ kēn hārĕšāʿîm kî ʾim-kammōṣ ʾăšer-tiddĕpenū rūaḥ (“Não assim os ímpios; mas [são] como a palha que o vento dispersa”).

A maioria esmagadora das versões traduz a estrutura de forma sintática e lexicalmente fiel, especialmente no que tange à antítese explícita com o justo no versículo anterior. Fórmulas como “Os ímpios não são assim, mas são como a palha que o vento leva” (ASV, ESV, KJV, WEB, WEBA, Darby, RV, TLV, Geneva, MKJV, LITV, DRB, Brenton, JPS, KJVA, UASV+, LEB, AFV) preservam de forma literal e respeitosa a estrutura adversativa do hebraico lōʾ kēn, sem expandir ou mitigar sua força. Essas traduções, ao manterem a imagem agrícola de “palha” (ou “chaff”), demonstram uma alta fidelidade semântica ao hebraico mōṣ, um substantivo que, como observado, designa o resíduo leve e inútil da debulha do cereal.

A Septuaginta, com seu duplo ouch hōs hoi asebeis ouch hōs, reproduzido em parte pelas versões Brenton, DRB e Vulgata (“non sic impii, non sic”), acentua retoricamente a antítese com uma ênfase repetitiva não presente no hebraico, mas que pode ser vista como uma expansão interpretativa legítima — reforçando a exclusão enfática dos ímpios da sorte do justo. Esse acréscimo, embora não esteja literalmente no texto hebraico, aumenta o entendimento teológico ao dramatizar a ruptura radical entre os dois grupos, ainda que seja uma liberdade poética do tradutor alexandrino. Portanto, classifica-se como (2) aumento legítimo e não distorção.

A tradução do substantivo mōṣ por “chaff” (palha fina, casca, palhiço), presente na maioria das versões inglesas tradicionais, é linguisticamente adequada e teologicamente simbólica: trata-se de uma imagem de inutilidade e instabilidade, cuja função na agricultura antiga era precisamente ser descartada ao vento no processo de debulha. O termo hebraico tiddĕpenū (“[o vento] dispersa”) é um verbo no imperfeito do binyan piel (דָּפָה), forma intensiva que, neste contexto, denota a ação contínua de dispersar ou lançar fora com força. As versões que traduzem por “drives away” (“levado embora”, AFV, ASV, ESV, Darby, DRB, KJV, Geneva, etc.) capturam corretamente esse sentido, sem interpolação. As que usam “blows away” (“levada pelo vento”, GNB, GW, ISV, ERV, etc.) ainda permanecem aceitáveis, embora suavizem um pouco a intensidade do piel, podendo ser vistas como semanticamente corretas, mas teologicamente menos expressivas, já que o vocábulo hebraico implica uma ação impessoal, violenta e quase escatológica — como bem testemunhado por textos como Isaías 17:13 e Jó 21:18.

As versões que traduzem mōṣ como “straw” (“palha” CEV, GNB) ou “dust” (“pó” TPT, DRB) incidem numa aproximação menos precisa. “Palha” é mais densa que mōṣ e, na imagem agrícola, não é a parte que o vento dispersa, mas sim o caule remanescente; já “dust” pode evocar uma conotação mais espiritual (cf. Eclesiastes 3:20), mas perde a referência agrícola e teológica à inutilidade e julgamento (como em Isaías 29:5). O TPT (“All they are is dust in the wind—driven away to destruction”) toma liberdade poética interpretativa excessiva, acrescentando “to destruction”, o que, embora seja uma inferência teológica possível à luz do versículo 6, não está presente neste versículo e, portanto, configura distorção hermenêutica (categoria 3).

As traduções que optam por formas mais explicativas, como a NTLH (“eles são como a palha que o vento leva”) ou a KJA (“são como a palha que o vento carrega”), mantêm o núcleo da metáfora intacto, embora empreguem verbos mais neutros como “leva” ou “carrega”, que atenuam a força escatológica e violenta implícita no original hebraico, especialmente à luz da tradição profética em Isaías 41:15–16, onde o mesmo campo semântico aparece com juízo divino.

A versão CEV (“they are like straw blown by the wind”) e GW (“like husks the wind blows away”) empregam “straw” ou “husks” em vez de “chaff”, o que enfraquece a precisão agrícola e, portanto, o impacto simbólico do julgamento escatológico embutido na imagem. Essas escolhas podem ser vistas como (3) distorções leves, não heréticas, mas empobrecedoras.

Por fim, a versão grega da ABP+ se mostra excepcionalmente literal, inclusive na adição de “from the face of the earth” (ἀπὸ προσώπου τῆς γῆς), o que não consta no TM mas aparece na LXX. Essa adição retórica reforça o destino apocalíptico dos ímpios (cf. Daniel 2:35), contribuindo para um desenvolvimento teológico mais amplo, ainda que com base textual distinta. Tal expansão é válida dentro do cânone da LXX, especialmente se considerado o uso patrístico da LXX como Escritura.

Em suma:

  • Versões exatas e fiéis ao hebraico original (categoria 1): ASV, ESV, KJV, WEB, WEBA, Geneva, Darby, JPS, TLV, RV, UASV+, AFV, MKJV, LEB, LITV.

  • Versões que aumentam o entendimento teológico, sem distorcer (categoria 2): Brenton, DRB, Vulgata, ABP+, Septuaginta.

  • Versões que distorcem ou enfraquecem o texto (categoria 3): CEV, GNB, GW, TPT, DRB (em parte), NVT (pela suavização), e TPT (por extrapolação escatológica não justificada no v. 4).

A imagem do ímpio como “palha” deslocada pelo vento carrega, portanto, uma profundidade escatológica e teológica: não se trata apenas de instabilidade, mas de ausência de substância ontológica e exclusão da comunidade dos justos, como o restante do Salmo irá confirmar nos versículos seguintes. Uma tradução fiel deve manter tanto o simbolismo agrícola quanto a violência implícita da ação divina que dispersa os ímpios. A fidelidade à poesia hebraica requer, portanto, contenção hermenêutica, precisão lexical e sensibilidade teológica.

O contraste entre o justo e o ímpio em Salmos 1:4, onde este último é descrito como kamōṭs ʾăšer-tiddĕpēnū rūaḥ (“como a palha que o vento dispersa”), encontra ressonância profunda na teologia bíblica como um todo, inclusive no Novo Testamento, e revela uma tensão filosófico-teológica entre a aparência da prosperidade visível e a substância da existência à luz da justiça divina. O texto não diz que os ímpios não terão jamais qualquer bem-estar material ou sucesso mundano; ao contrário, assume como pano de fundo a fragilidade dessa prosperidade aparente, condenando sua falta de enraizamento ontológico e espiritual.

O destino do ímpio é expresso com o símbolo da palha, não de um tronco ressequido, nem sequer de um arbusto estéril, mas de algo que nunca teve densidade vital. Isso já é indício de uma leitura escatológica da realidade: o justo tem peso e gravidade no mundo de Deus; o ímpio é inconsistente, sem permanência nem substância. Tal distinção não é meramente econômica ou sociológica, mas ontológica. A imagem da palha, lançada ao vento, retoma temas proféticos que ressoam também no Novo Testamento. João Batista, por exemplo, emprega deliberadamente essa mesma figura em Mateus 3:12: “Ele recolherá o trigo no celeiro, mas queimará a palha com fogo que nunca se apaga.” O trigo é o justo; a palha, o ímpio. Aqui, a metáfora agrícola do Salmo se converte em linguagem escatológica: a palha não é apenas inútil, mas destinada ao fogo do juízo.

No entanto, a observação moderna e até bíblica parece contradizer essa visão: por que muitos ímpios parecem prosperar? Por que “políticos corruptos” ou “pessoas envolvidas em atividades ilícitas” acumulam riqueza, influência e segurança? O próprio Salmo 73 já enfrentou esse dilema: “Quanto a mim, os meus pés quase que se desviaram; pouco faltou para que escorregassem os meus passos. Pois eu tinha inveja dos soberbos, ao ver a prosperidade dos ímpios” (Salmo 73:2–3). O salmista confessa que, por um momento, interpretou a realidade apenas pela ótica da prosperidade visível. Mas sua visão muda quando entra no santuário de Deus: “Até que entrei no santuário de Deus; então entendi o fim deles” (Salmo 73:17). A chave está na perspectiva escatológica e eterna, não na superfície temporal. O ímpio, diz o salmista, “é posto em lugares escorregadios” (v. 18); sua ruína é súbita, e seu fim é dissolução, exatamente como a palha que o vento leva.

Essa mesma tensão está presente nos ensinamentos de Jesus. Em Lucas 16:19–31, a parábola do rico e Lázaro mostra o rico vivendo esplendidamente, enquanto Lázaro sofre. Mas após a morte, os papéis se invertem: o rico está em tormento, e Lázaro é confortado no seio de Abraão. Jesus não nega que os ímpios podem experimentar prazer e prosperidade neste mundo — mas sua bem-aventurança é efêmera. Por isso, ele adverte: “Ai de vós, os ricos! porque já recebestes a vossa consolação” (Lucas 6:24). A palha não é punida por ter sido leve, mas por nunca ter sido grão.

Filosoficamente, isso pode ser lido como uma distinção entre ser e parecer. O justo possui peso ontológico, substância ligada ao logos divino (João 1:1), enraizamento na Torá (Salmos 1:2–3). O ímpio, ao contrário, é superficialidade, imagem sem essência. Sua alegria é como névoa da manhã: “Pois como a erva murcham depressa, e como a verdura se secam” (Salmo 37:2). O apóstolo Tiago retoma esse mesmo conceito em Tiago 1:10–11: “Porque o sol se levanta com seu ardor, e seca a erva, e a sua flor cai, e a formosura do seu aspecto perece; assim também se murchará o rico em seus caminhos.” A riqueza do ímpio é enganosa porque falta-lhe raiz — e sem raiz, não há permanência.

Ademais, Jesus declara que o justo é bem-aventurado mesmo na pobreza, na perseguição e no luto (Mateus 5:3–12). O reino de Deus subverte a lógica visível: “Muitos dos primeiros serão os últimos” (Marcos 10:31). A prosperidade do ímpio, portanto, não é prosperidade verdadeira, mas aparência transitória — e o Salmo 1 é uma advertência contra essa leitura míope da realidade.

Ao final, o Novo Testamento confirma o testemunho do Salmo 1: o justo tem sua existência firmada “junto a ribeiros de águas”, metáfora do Espírito (João 7:38–39), da Palavra (Efésios 5:26) e da vida eterna (Apocalipse 22:1–2). O ímpio, que vive separado dessa fonte, não é estável nem fecundo, mas inútil, volátil e descartável — e isso, ainda que por um breve tempo “floresça como o cedro do Líbano” (Salmo 92:7), logo será “desarraigado”.

Portanto, a aparente contradição entre a realidade visível e a promessa da justiça é resolvida quando se lê o mundo não pelo critério dos sentidos, mas pela lente da verdade divina. O Salmo 1:4 não ignora a prosperidade dos maus, mas a relativiza, mostrando que é palha, não trigo; vento, não raiz; imagem, não essência. E o tempo — ou o juízo — revelará essa diferença.

Na filosofia grega, especialmente no pensamento de Platão, encontramos conceitos que dialogam profundamente com a imagem do ímpio como “palha que o vento dispersa” (Salmos 1:4), particularmente no que se refere à inconsistência moral, à falta de substância ontológica e ao apego aos vícios. A linguagem é diferente, mas o conteúdo filosófico converge com a teologia sapiencial bíblica.

Na República (especialmente nos livros IV e IX), Platão expõe que o homem justo é aquele cuja alma está ordenada: o logos (razão) governa, auxiliado pelo thymos (espírito), enquanto os apetites (epithymiai) são mantidos sob controle. Já o homem injusto — o que se entrega aos vícios, desejos desordenados, prazeres fáceis — é descrito como alguém fragmentado interiormente, desgovernado e, por isso mesmo, incapaz de manter coesão interior.

Em Fédon (81c–d), Platão afirma que a alma presa aos prazeres corporais e materiais torna-se “pesada”, “impura”, “terrena”, e após a morte não consegue elevar-se, mas vagueia como névoa errante. Tal imagem é quase paralela à da palha levada pelo vento, ou seja, sem peso, sem direção, sem finalidade — errática. Ele escreve:

Platão, Fédon 81c–d:

ἐμβριθὲς δέ γε, ὦ φίλε, τοῦτο οἴεσθαι χρὴ εἶναι καὶ βαρὺ καὶ γεῶδες καὶ ὁρατόν· ὃ δὴ καὶ ἔχουσα ἡ τοιαύτη ψυχὴ βαρύνεταί τε καὶ ἕλκεται πάλιν εἰς τὸν ὁρατὸν τόπον φόβῳ τοῦ ἀιδὲς τε καὶ Ἅιδου, ὥσπερ λέγεται, περὶ τὰ μνήματά τε καὶ τοὺς τάφους κυλινδουμένη, περὶ ἃ δὴ καὶ ὤφθη ἄττα ψυχῶν σκιοειδῆ φαντάσματα, οἷα παρέχονται αἱ τοιαῦται ψυχαὶ εἴδωλα, αἱ μὴ καθαρῶς ἀπολυθεῖσαι ἀλλὰ τοῦ ὁρατοῦ μετέχουσαι, διὸ καὶ ὁρῶνται.

Tradução:

Devemos pensar, caro amigo, que essa parte da alma é densa, pesada, terrena e visível. E quando a alma carrega isso consigo, ela se torna pesada e é atraída de volta para o mundo visível por medo daquilo que é invisível e do Hades, e como dizem, vagueia ao redor dos túmulos e sepulturas, onde se veem sombras fantasmagóricas de almas — espectros de almas impuras que não foram completamente libertas, pois ainda participam do visível, e por isso podem ser vistas.

Essa descrição de Platão é extraordinariamente próxima da imagem de Salmos 1:4: o ímpio, como כַּמֹּץ (ka·môṣ, “a palha”), não tem peso espiritual, não possui direção, e é arrastado pelo vento — ou, no caso da alma platônica, pela gravidade do desejo e da matéria.

Ambas as imagens operam por antítese: a alma justa (no Salmo: o justo como “árvore plantada”) é enraizada, estável, nutrida, e por isso frutífera; já a alma impura, segundo Platão, é levada de volta à terra, vagueia como fantasma, sem alcançar o verdadeiro bem — porque permaneceu apegada ao corpo e ao sensível.

Ambas também convergem em termos éticos: o vício leva à instabilidade ontológica. E essa desordem interior (que Platão chama de “σύμφυτον” — conatural, entranhada na alma) é o que torna a alma não apenas infeliz, mas fadada ao ciclo da errância e do renascimento nos seres inferiores (“ὥσπερ ὄνοις”, como burros — 81e).

Portanto, a imagem de Salmos 1:4 não apenas encontra paralelos nas tradições bíblicas sapienciais e proféticas, como também em linhas filosóficas gregas — especialmente na ética da purificação da alma, que é central no platonismo.

Essa errância da alma — leve, dispersa, impura — é imagem análoga à palha levada pelo vento: o ímpio, como o vicioso em Platão, não é guiado pela razão, não possui gravidade moral, e não tem telos (fim último).

Aristóteles, na Ética a Nicômaco (Livro I, cap. 5–7), argumenta que a verdadeira felicidade (eudaimonia) só é possível para quem vive de acordo com a virtude (aretē). Os homens dominados pelos prazeres, vícios, e desejos desordenados vivem “como bestas” e não têm estabilidade nem direção. Em outras palavras, o homem vicioso é instável, fragmentado e inconsequente — movido por impulsos, como palha levada pelo vento.

A comparação é filosófica, mas o substrato é o mesmo: aquele que se entrega aos vícios não prospera no verdadeiro sentido, pois não vive conforme a aretē (virtude), não realiza o telos da alma racional. Tal como o ímpio bíblico, é vão, é leve, é disperso.

Na tradição estoica, especialmente em Sêneca e Epicteto, o homem virtuoso é aquele que permanece firme, “imperturbável” (ataraxia) diante dos ventos da fortuna. Já o ímpio ou vicioso é como o “feno batido ao vento”, instável, movido por paixões externas e incapaz de autodeterminação racional.

Texto grego (Epicteto, Diatribai I.1.1–2):

[1.1] Τῶν ὄντων τὰ μὲν ἐστὶν ἐφ’ ἡμῖν, τὰ δὲ οὐκ ἐφ’ ἡμῖν. ἐφ’ ἡμῖν μὲν ὑπόληψις, ὁρμή, ὄρεξις, ἔκκλισις, καὶ ἑνὶ λόγῳ ὅσα ἡμέτερα ἔργα· οὐκ ἐφ’ ἡμῖν δὲ τὸ σῶμα, ἡ κτῆσις, δόξαι, ἀρχαί, καὶ ἑνὶ λόγῳ ὅσα οὐχ ἡμέτερα ἔργα.
[1.2] καὶ τὰ μὲν ἐφ’ ἡμῖν ἐστὶ φύσει ἐλεύθερα, ἀκώλυτα, παραπόδιστα· τὰ δὲ οὐκ ἐφ’ ἡμῖν ἀσθενῆ, δοῦλα, κωλυτά, ἀλλότρια.

Tradução literal:

[1.1] Das coisas que existem, algumas dependem de nós, outras não dependem de nós. Dependem de nós: opinião, impulso, desejo, repulsa — em suma, tudo aquilo que é nosso próprio fazer. Não dependem de nós: o corpo, a posse, reputações, cargos — em suma, tudo aquilo que não é nosso próprio fazer.

[1.2] As coisas que dependem de nós são, por natureza, livres, sem impedimentos, irrestritas; mas as que não dependem de nós são fracas, sujeitas, constrangidas, alheias.

O paralelismo entre a filosofia estóica e o Salmo 1:4 emerge nitidamente no contraste entre o homem estável — que fundamenta sua vida em princípios internos e imutáveis (como a Torá no v.2) — e o homem inconstante, que depende de fatores externos e é levado pelo “vento”.

Assim como Epicteto declara que o homem que confia nas “coisas que não dependem de nós” está preso ao que é ἀσθενῆ (asthenē, “fraco”), δοῦλα (doula, “escravo”), e ἀλλότρια (allótria, “alheio”), o salmista descreve o ímpio como ka·môṣ (כַּמֹּץ) — “como a palha” — que o vento dispersa (ר֥וּחַ rûaḥ תִּדְּפֶֽנּוּ tiddĕfennû). Trata-se da mesma crítica antropológica: o ser humano que não é ancorado na verdade interna (para o estóico, a razão; para o justo, a Torá de YHWH) é instável e destinado à dissipação.

Epicteto está dizendo, assim como o salmista, que aqueles que depositam sua identidade nas coisas externas — fama, posse, corpo, poder — são dominados por forças que não controlam, e portanto não têm raiz, não têm permanência, não têm consistência. São — em linguagem metafórica comum aos dois — pó ou palha lançados ao vento (cf. também Marcos 4:17, “não têm raiz em si mesmos”). A imagem é quase idêntica à do Salmo: o ímpio é aquele sem consistência interna, sem verdade, sem raiz. Ele muda com o vento porque não tem a hypostasis, não tem substância.

Na tradição grega, há uma constante oposição entre doxa (opinião) e aletheia (verdade). O homem que vive de aparência, de convenções externas, é como palha: leve, inútil, sem consistência. A aletheia, por outro lado, é o peso do ser verdadeiro. O justo bíblico é como árvore firme (ʿēṣ šātûl), o injusto é como palha (mōṭs): essa distinção se alinha profundamente com a oposição entre doxa e aletheia, entre vício e virtude, entre aparência e essência, que permeia toda a filosofia grega clássica.

A comparação bíblica entre o justo como árvore e o ímpio como palha tem profundo paralelo na tradição filosófica grega, sobretudo no platonismo, estoicismo e aristotelismo. O ímpio — como o vicioso — não possui substância, razão ou raiz em algo permanente, sendo por isso instável, inconstante e conduzido pelos ventos da paixão ou do acaso. O Salmo 1, portanto, não está apenas apresentando uma alegoria teológica, mas articulando uma visão antropológica e moral com eco universal: só o homem justo — o enraizado na verdade e no bem — permanece; o restante é levado.

Salmos 1:5a Pelo que os ímpios não subsistirão no juízo, (Hb.: ʿal-kēn lōʾ-yāqûmû rešāʿîm bammishpāṭ — O verbo hebraico קוּם (qûm), cujo sentido básico é “levantar-se”, possui um campo semântico que se expande de ações físicas simples (erguer-se, pôr-se de pé) a usos jurídico-forenses, escatológicos, cultuais e teológicos em todo o Antigo Testamento. A riqueza de suas ocorrências ilumina de forma crítica e complementar o uso que se faz dele em Salmos 1:5a, onde se afirma que os ímpios “não se levantarão no julgamento” (lōʾ yāqûmû… bammishpāṭ). Esta negação do erguer-se é repleta de implicações que só se evidenciam à luz das comparações intrabíblicas.

Em Isaías 26:14, lemos: mētîm bāl yichyû, rephāʾîm bāl yāqûmû – “os mortos não viverão, as sombras (espíritos) não se levantarão” (מֵתִים בַּל־יִחְיוּ רְפָאִים בַּל־יָקֻמוּ). O verbo קוּם, aqui na forma yāqûmû (Imperfeito Qal, 3ª plural), é usado para descrever a não participação dos ímpios na ressurreição. Essa negação da qiyma (levantamento) no contexto apocalíptico é contrastada, poucos versículos adiante, com a promessa dirigida aos justos: yichyû metēkā… yāqûmûn – “os teus mortos viverão… se levantarão” (יִחְיוּ מֵתֶיךָ… יָקֻמוּן), em Isaías 26:19. O mesmo verbo, portanto, aparece com valor antitético: os ímpios não se levantam, os justos sim. Isso indica que qûm pode assumir o sentido técnico de ressuscitar, sendo essa distinção fundamental para a leitura escatológica do Salmo 1.

Em Salmos 24:3, o uso de qûm está situado em um contexto de pureza cultual e acesso ao templo: mi-yaʿăleh bĕhar YHWH ûmi-yāqûm bimqôm qodshô – “quem subirá ao monte do Senhor e quem estará de pé no seu lugar santo?” (מִי־יַעֲלֶה בְּהַר־יְהוָה וּמִי־יָקוּם בִּמְקוֹם קָדְשׁוֹ). A forma yāqûm (Imperfeito Qal, 3ª masc. sing.) aqui transmite a ideia de permanecer firme diante da presença de Deus. O verbo não remete à ressurreição, mas a um status aprovado, digno, aquele que é considerado justo para estar “em pé” no santuário. Isso retoma a linguagem levítica da santidade e reforça que qûm pode marcar a aceitação cultual diante de Yhwh – o que os rešāʿîm (ímpios) do Salmo 1:5 jamais obterão.

No livro de Naum 1:6, o profeta apresenta uma teofania divina em que a santidade e o furor do Senhor são intransponíveis: mi-yaʿămôd lipnê zaʿmô ûmi-yāqûm bĕḥarôn ʾappô – “quem pode resistir à sua indignação? e quem subsistirá diante do furor da sua ira?” (מִי־יַעֲמֹד לִפְנֵי זַעְמוֹ וּמִי־יָקוּם בְּחֲרוֹן אַפּוֹ). A forma verbal yāqûm (Imperfeito Qal) aparece paralela a yaʿămôd (de ʿāmad, “permanecer de pé”), reforçando a ideia de resistência diante do juízo divino. Aqui, qûm ganha conotação forense e escatológica: não há quem permaneça firme quando o Senhor vem em juízo. Isso se harmoniza perfeitamente com o Salmo 1:5: os ímpios não resistirão, não terão estabilidade alguma diante do tribunal divino.

Já em Daniel 7:10, a linguagem forense e escatológica se intensifica no cenário apocalíptico da corte celestial: dîn yetîb wĕsiprîn pĕtaḥû – “o tribunal se assentou e os livros foram abertos”, antecedido pela visão de milhares servindo ao Ancião de Dias e de miríades que “se mantinham de pé diante dele”: wĕribbĕwan qādāmô yĕqûmûn – “milhares de milhares estavam de pé diante dele” (וְרִבְבְוָן קָדָמוֹ יְקוּמוּן). O verbo qûm aparece no Imperfeito Qal plural (yĕqûmûn), denotando não só presença diante do tribunal divino, mas também reverência e prontidão para julgamento. Embora o verbo mais comum para “ficar de pé” diante de alguém seja ʿāmad, aqui qûm participa da mesma atmosfera de solenidade escatológica.

Em todos esses contextos — Isaías, Salmos, Naum e Daniel — o verbo qûm marca situações limítrofes de julgamento, separação, aceitação ou exclusão. Em Salmos 1:5a, portanto, a afirmação de que os ímpios lōʾ yāqûmû bammishpāṭ não significa apenas que eles não “ficarão de pé” num tribunal terrestre, mas que serão considerados moralmente incapazes de comparecer com dignidade diante do tribunal divino, seja ele escatológico (como em Isaías e Daniel), seja presente (como nos julgamentos comunitários no portão da cidade ou no culto do templo). Estar de pé equivale a resistir ao juízo, ser aprovado, ter acesso à presença de Deus, enquanto não estar de pé é ser rejeitado, julgado indigno, excluído da assembleia cultual e escatológica dos justos. A escolha do verbo, sua morfologia no Imperfeito e os paralelos veterotestamentários confirmam a força da sentença: a condição dos ímpios é de ruína moral, judicial e escatológica.

A tradução da primeira metade de Salmos 1:5 — ʿal-kēn lōʾ yāqûmû rešāʿîm bammishpāṭ — apresenta desafios semânticos e teológicos sutis que colocam à prova tanto a sensibilidade dos tradutores às nuances do hebraico bíblico quanto sua percepção da estrutura escatológica e jurídica do texto. O verbo yāqûmû (forma imperfeita do Qal de קוּם, “levantar-se”, “ficar de pé”) em contexto forense e cultual, como já demonstrado pela exegese gramatical e pelas referências cruzadas em Isaías 26:14, Salmos 24:3, Naum 1:6 e Daniel 7:10, carrega mais que um simples gesto físico; ele representa a capacidade moral e espiritual de resistir à avaliação divina ou de permanecer em posição de aprovação diante do julgamento de Deus. A partícula causal ʿal-kēn (portanto, por isso) indica a inevitável consequência do que foi dito no versículo anterior, a saber, que os ímpios são como palha que o vento dispersa: sem peso, sem permanência, sem dignidade.

Diversas versões demonstram elevada fidelidade ao hebraico original ao traduzirem de forma literal “portanto os ímpios não se levantarão no juízo” ou expressões equivalentes. Este é o caso das versões ASV, BSB, Cepher, Darby, DRB, ESV, ESV+, Geneva, HRB, JPS, JUB, KJV, KJV+, KJVA, LEB, LITV, MKJV, RV, TLV, UASV+, WEB, WEBA, Webster, LSV e YLT. Todas essas seguem com exatidão lexical e sintática o enunciado hebraico: reconhecem que rešāʿîm refere-se aos ímpios em oposição ética aos justos, mantêm a negação com lōʾ, traduzem corretamente qûm como “ficar de pé” ou “levantar-se” e preservam o valor substantivo de bammishpāṭ (“no julgamento”). São versões formalmente corretas e mantêm a tensão teológica do texto, apontando para o fato de que os ímpios serão incapazes de permanecer diante do tribunal de Deus — seja ele escatológico ou contínuo, conforme a tradição sapiencial.

A versão da Septuaginta (ABP+) traduz lōʾ yāqûmû com a perífrase negativa “οὐκ ἀναστήσονται”, equivalente a “não ressuscitarão”. Essa leitura se reflete também na Vulgata (“non resurgent”), e sugere uma hermenêutica escatológica mais marcada, lendo qûm como ressurreição corporal final, à luz de textos como Isaías 26:14 e 26:19. Embora essa leitura tenha apoio em alguns contextos veterotestamentários, ela excede o escopo do Salmo 1, que não emprega vocabulário técnico-resurreccional explícito, nem faz alusão direta à retribuição post-mortem. Portanto, embora seja uma interpretação teológica rica, ela representa um aumento hermenêutico que se afasta da leitura estritamente contextual — não distorce, mas antecipa teologicamente sentidos que não estão literalmente no texto. Portanto, a LXX e a Vulgata não são infiéis, mas tendem a uma leitura typologica e apocalíptica do termo.

Por outro lado, versões como a GNB, CEV, ERV, GW, ISV, NET, TPT, NTLH e NVT tomam liberdades de parafraseamento que prejudicam a fidelidade lexical ao texto hebraico e introduzem conceitos que não constam na proposição original. Por exemplo, “os pecadores não terão desculpa” (CEV), “serão condenados” (NTLH, NVT), ou “não poderão suportar o julgamento” (GW), embora expressem verdades teológicas válidas, não reproduzem o sentido básico de lōʾ yāqûmû como “não se levantarão”, e substituem a força imagética da recusa de permanência diante de Deus por categorias doutrinárias pós-bíblicas (como “condenação”, “justificação”, “desculpa”), diluindo a força poética e a polissemia forense do original hebraico. Em especial, a TPT (The Passion Translation) acrescenta elementos completamente ausentes no texto — como “Deus não os defenderá” ou “nada do que fazem durará” — e assim ultrapassa os limites da tradução e adentra a esfera da reinterpretação homilética. Isso constitui não apenas um aumento teológico, mas uma distorção da estrutura e intenção do versículo, tornando a versão teologicamente opinativa e textualmente infiel.

A versão AFV (A Faithful Version), ao traduzir “the wicked shall not stand in the judgment”, mantém a literalidade formal e é correta; já a tradução da Brenton, baseada na LXX, herda o já mencionado “shall not rise”, aproximando-se da leitura escatológica. A versão portuguesa KJA traduz “os ímpios não sobreviverão ao Julgamento”, o que, embora teologicamente defensável, reinterpreta o verbo qûm como continuar existindo ou permanecer vivo, perdendo o valor forense do erguer-se para prestar contas. Essa opção lexical, ainda que razoável do ponto de vista da lógica do texto, reduz o alcance do termo hebraico ao plano vitalista e existencial, ao invés de mantê-lo no âmbito judicial e litúrgico.

Portanto, é possível agrupar as traduções em três categorias. As versões que traduzem de forma literal, com rigor formal e fidelidade exegética ao hebraico original — como ASV, ESV, LEB, JPS, KJV, WEBA, LITV, entre outras — devem ser consideradas exatas e leais ao original. As versões como ABP+, Vulgata, DRB e Brenton ampliam teologicamente a leitura com base em tradições escatológicas posteriores, e embora não sejam incorretas, excedem o texto literal e devem ser lidas como interpretações de escola. Já as versões como GNB, CEV, TPT, NVT, ERV e ISV, ao alterarem radicalmente os termos, introduzirem vocabulário externo ao versículo e minimizarem a construção gramatical da rejeição forense, acabam por distorcer o texto original e obscurecer seu sentido sapiencial e judicial. Essas últimas, portanto, devem ser avaliadas com cautela teológica e vistas mais como paráfrases interpretativas do que traduções fiéis.

A expressão “no juízo” em Salmos 1:5a ʿal-kēn lōʾ yāqûmû rešāʿîm bammishpāṭ (“por isso, os ímpios não subsistirão no juízo”) — condensa uma realidade teológica profunda e de longa tradição no pensamento bíblico, que deve ser interpretada tanto à luz da teologia sapiencial veterotestamentária quanto da revelação escatológica progressiva presente no Novo Testamento. A pergunta sobre o que significa “o juízo” e se essa é uma referência escatológica como o “Dia do Juízo” mencionado por Jesus não pode ser respondida de forma simplista, pois o vocábulo mishpāṭ (“juízo”, “julgamento”) possui um campo semântico amplo no Antigo Testamento, que abarca desde processos forenses comunitários até o julgamento divino cósmico no fim dos tempos.

No Salmo 1:5, o termo mishpāṭ aparece com artigo definido (bammishpāṭ), sugerindo uma instância conhecida — não qualquer julgamento, mas “o julgamento”. O verbo yāqûmû (“subsistirão”, “levantar-se-ão”) está no imperfeito, indicando não apenas uma ação pontual, mas uma disposição: os ímpios não terão a capacidade de estar de pé quando a justiça de Deus for aplicada. Esse “estar de pé” é mais que postura física; é postura moral e existencial. Levantar-se no contexto judicial bíblico é erguer-se para ser julgado (cf. Jó 8:20; Isaías 50:8) ou para defender-se diante de uma acusação. É o contrário de cair (נָפַל, nāphal), termo que muitas vezes acompanha o destino dos ímpios (cf. Salmos 36:12; Provérbios 24:16).

A teologia sapiencial associa o “juízo” a momentos em que Deus manifesta sua justiça histórica, avaliando os caminhos humanos conforme os padrões da aliança (cf. Deuteronômio 32:4; Salmos 9:8). Entretanto, há claras antecipações de um julgamento escatológico, definitivo, no qual os ímpios não apenas cairão, mas serão definitivamente excluídos da comunidade dos justos. Em Daniel 7:9–10, por exemplo, o trono de Deus se estabelece e os livros são abertos, iniciando o julgamento das nações — uma clara imagem escatológica: “Assentou-se o tribunal, e abriram-se os livros” (v. 10). Este cenário encontra eco em Apocalipse 20:11–12, onde os mortos são julgados diante do trono branco “segundo as suas obras”. Este paralelismo literário entre Daniel 7 e Apocalipse 20 indica continuidade de uma tradição apocalíptica do “grande dia do juízo”.

Ainda assim, devemos evitar projetar diretamente sobre o Salmo 1 uma escatologia desenvolvida apenas mais tarde. O Salmo não menciona a ressurreição dos mortos, nem o trono do Messias, nem o fogo eterno. O julgamento aqui, antes de tudo, é um princípio de realidade presente: os ímpios são como a palha (v. 4), sem peso, instáveis, dispersos. O juízo, nesse sentido, é contínuo e imanente — uma “tribunalidade” constante da vida diante de Deus, como expresso em Salmos 11:4-7 (“O Senhor prova o justo; porém ao ímpio e ao que ama a violência odeia a sua alma”). Em outras palavras, cada dia é um juízo. E ainda assim, esse julgamento presente prenuncia o julgamento final.

Quando Jesus fala do “Dia do Juízo” (hēmera kriseōs, Mateus 12:36), Ele retoma e amplia essas ideias presentes nos Salmos e nos profetas. A separação entre justos e ímpios mencionada por Ele em Mateus 25:31–46 ecoa precisamente o dualismo moral do Salmo 1: “os ímpios não subsistirão no juízo... o caminho dos ímpios perecerá” (v. 6). O que no Salmo era um princípio moral, em Jesus se torna um evento histórico-futuro definitivo. Assim, dizer que o salmista já se referia ao mesmo “Dia do Juízo” do Novo Testamento seria anacrônico, mas afirmar que o Salmo 1 é tipológico e prenunciante desse juízo final é correto e teologicamente coerente.

O simbolismo de “subsistir” ou “permanecer” também tem densidade espiritual. “Estar de pé” diante de Deus é expressão de justificação, aceitação, honra. Em Salmos 24:3–4, pergunta-se: “Quem subirá ao monte do Senhor? Ou quem estará no seu lugar santo?” — e a resposta está ligada à integridade moral. Estar diante de Deus é privilégio dos justos. Os ímpios, por outro lado, “não subsistirão” — ou seja, não serão reconhecidos, não serão incluídos, não terão lugar de permanência. Esse simbolismo aparece também em Malaquias 3:2: “Mas quem suportará o dia da sua vinda? E quem subsistirá quando ele aparecer?” A mesma linguagem, agora ligada à vinda do Senhor, expressa a ideia de que apenas o justo permanece quando Deus se manifesta.

Assim, o Salmo 1:5a articula uma verdade teológica central da Escritura: o justo permanece (yāmôd), o ímpio cai (yippōl); o justo é plantado (v. 3), o ímpio é disperso (v. 4); o justo resiste ao juízo, o ímpio não se ergue. Esse padrão é retomado em toda a Bíblia. Paulo o explicita em Romanos 14:4 — “Quem és tu que julgas o servo alheio? Para seu senhor ele está em pé ou cai; mas estará em pé, porque Deus é poderoso para o firmar.” E mais adiante, Romanos 5:1 diz: “Justificados, pois, pela fé, temos paz com Deus.” Justificação é, no fundo, o “subsistir no juízo”.

Portanto, o salmista afirma — com o peso simbólico da linguagem judicial — que os ímpios, destituídos de raiz, honra e permanência, não resistirão quando Deus pesar as ações humanas. A justiça de Deus, seja ela manifesta na história ou no fim de todas as coisas, faz distinção. E essa distinção é visível já agora na qualidade da vida — como uma árvore plantada ou como palha lançada —, e será definitiva quando o Senhor vier a julgar os vivos e os mortos. Em suma, o “juízo” de Salmos 1:5a é tanto um processo contínuo que revela quem pertence a Deus, como uma sombra profética do grande dia escatológico revelado plenamente em Cristo. O salmo não é eisegético, mas sim profeticamente convergente com toda a teologia bíblica.

Salmos 1:5b ...nem os pecadores na congregação dos justos. (Hb.: wĕḥaṭṭāʾîm baʿădaṯ ṣaddîqîm —Em Salmos 1:5b, a assertiva “nem os pecadores na congregação dos justos” constitui a segunda cláusula coordenada do versículo, conectada à anterior pela partícula conjuntiva waw, aqui vocalizada como ve- no termo veḥaṭṭāʾîm (“e os pecadores”), funcionando como um vínculo lógico-conclusivo de exclusão. A estrutura retórica desse paralelismo sintetiza de modo eficaz a separação categórica entre dois grupos humanos definidos não apenas por sua conduta moral, mas por sua posição diante do julgamento divino. O vocábulo ḥaṭṭāʾîm, plural do substantivo intensivo ḥaṭṭāʾ (derivado da raiz ḥ–ṭ–ʾ, “errar o alvo”), designa não simplesmente aqueles que ocasionalmente pecam, mas indivíduos cuja identidade se enraíza na prática habitual, reiterada e impenitente do pecado. No corpus veterotestamentário, esse termo aparece contrastado com categorias como ṣaddîqîm (“justos”) e yereʾê-YHWH (“os que temem o Senhor”), denotando não apenas um estado jurídico-espiritual, mas uma orientação existencial constante.

O segundo elemento da frase é baʿădat ṣaddîqîm, que se traduz literalmente como “na assembleia dos justos”. O substantivo ʿădāh é aqui precedido da preposição be- (“em”), formando a construção locativa baʿădat (“na assembleia de”). Morfologicamente, ʿădāh está na forma do construto, exigindo um complemento, que vem logo após em ṣaddîqîm (“justos”), plural do adjetivo ṣaddîq (da raiz ṣ-d-q, que transmite a ideia de retidão, justiça, conformidade com a vontade divina). Trata-se de uma colocação teológica rica, pois ʿădāh, ao longo do Antigo Testamento, refere-se frequentemente à comunidade visível do povo de Israel reunido em ocasiões solenes, especialmente litúrgicas, como em Números 20:1 e Êxodo 12:3. No entanto, no contexto sapiencial dos Salmos, e particularmente aqui, o termo transcende sua função étnico-religiosa e assume um caráter qualitativo: não é qualquer congregação de Israel, mas a dos “justos”, dos que são aprovados por Deus em sua conduta e coração, como no uso análogo de qāhāl ṣaddîqîm (“assembleia dos justos”) em Salmos 111:1.

A LXX verte baʿădat ṣaddîqîm por ἐν συναγωγῇ δικαίων, onde synagōgē (“assembleia”) corresponde de modo relativamente fiel ao hebraico ʿădāh, mas carrega, com o tempo, implicações que vão além da reunião cultual, especialmente no judaísmo do período helenista e pós-exílico, adquirindo dimensões litúrgicas e teológicas próprias. A escolha do termo dikaioi para ṣaddîqîm é exata, pois corresponde ao uso técnico do grego koiné para descrever aqueles justificados ou aprovados diante de Deus. Ocorre, contudo, que a tradução grega, ainda que leal lexicalmente, carrega consigo uma sutil alteração na atmosfera do versículo: synagōgē já no tempo dos Setenta era um termo carregado de institucionalidade religiosa, o que pode gerar a leitura de que a exclusão dos pecadores é visível na estrutura eclesial presente, quando, na verdade, o salmista parece aludir a uma realidade mais profunda e, talvez, escatológica.

Sintaticamente, temos aqui uma construção negativa de caráter absoluto: a partícula lōʾ está elidida nesta segunda cláusula, mas é pressuposta pela justaposição com a primeira (lōʾ yaqūmû, “não subsistirão”), aplicando-se igualmente a ḥaṭṭāʾîm. Isso reforça o paralelismo de exclusão e contribui para a coesão argumentativa do salmo. A oração nominal “os pecadores na congregação dos justos” expressa, por meio da preposição be- com o nome coletivo ʿădāh, a impossibilidade de pertencimento, de identidade compartilhada entre os dois grupos. Não se trata apenas de exclusão física ou institucional, mas de uma divisão ontológica e escatológica entre os que vivem segundo o conselho de Deus e os que trilham caminhos autônomos, como já delineado em Salmos 1:1.

Essa exclusão é congruente com o ensinamento de outros textos bíblicos que reiteram a separação final entre justos e iníquos. Isaías 33:14 pergunta: “Quem dentre nós habitará com o fogo consumidor? Quem habitará com as labaredas eternas?” – implicando que só os justos poderão permanecer na presença de Deus. Já em Ezequiel 13:9, Deus declara: “Não estarão no conselho do meu povo”, onde o termo sôd (“conselho”, “íntima comunhão”) reforça essa mesma temática de separação. No Novo Testamento, Jesus retoma essa lógica ao afirmar que, no fim dos tempos, os anjos separarão os maus de entre os justos (Mateus 13:49), e que nem todo o que diz “Senhor, Senhor” entrará no Reino, mas somente os que fazem a vontade do Pai (Mateus 7:21). Assim, o vaticínio de Salmos 1:5b antecipa a escatologia cristã de maneira tipológica, apontando para um juízo que, ainda que já se manifeste em certas formas no presente (João 3:19; 1 Pedro 4:17), se consumará na revelação final da assembleia dos justos (Hebreus 12:23).

Portanto, a expressão “os pecadores não estarão na assembleia dos justos” transcende uma mera descrição cultual ou eclesial: ela opera como um veredito profético sobre o destino escatológico dos que rejeitam a Torá de YHWH. Sua construção hebraica, rica em implicações morais e espirituais, recorre ao vocabulário jurídico, litúrgico e comunitário do Antigo Testamento, para traçar a linha divisória entre os caminhos do justo e do ímpio – caminhos que, como reafirmará o versículo 6, não convergem nem agora nem na eternidade.

A análise crítica e teológica das versões bíblicas de Salmos 1:5b, com base na exegese hebraica do texto “veḥaṭṭāʾîm baʿădat ṣaddîqîm” (“nem os pecadores na congregação dos justos”), revela uma impressionante convergência entre muitas traduções e, ao mesmo tempo, nuances que afetam o grau de precisão e a profundidade teológica de cada uma.

Numerosas versões mantêm uma tradução quase literal e fiel ao hebraico, preservando a estrutura negativa e a ideia de exclusão espacial ou comunitária: “nem os pecadores na congregação dos justos”. Isso se verifica em ASV, AFV, BSB, Cepher, Darby, DRB, ESV, Geneva, GW, HRB, ISV, JPS, JUB, KJV, KJVA, LEB, LITV, MKJV, RV, TLV, UASV+, WEB, WEBA e Webster. Todas essas versões reproduzem com exatidão a oposição entre “pecadores” e “congregação dos justos”, com especial lealdade à construção hebraica original que vincula, através da preposição be-, a impossibilidade de convivência ou pertencimento do pecador à ʿădat ṣaddîqîm. Tais traduções são, portanto, exatas e leais ao original (critério 1), e sua clareza reforça a dimensão escatológica e comunitária do salmo (critério 2).

A LXX, refletida em versões como ABP+, Brenton e YLT, opta por traduzir com leve variação estilística: οὐδὲ ἁμαρτωλοὶ ἐν βουλῇ δικαίων (oude hamartōloi en boulē dikaíōn) — “nem os pecadores no conselho dos justos”. Embora βουλῇ (boulē) costume significar “conselho” no sentido de deliberação, planejamento ou sabedoria, aqui é claramente usado como sinônimo de assembleia ou círculo de comunhão ética. Essa opção ainda encontra respaldo em traduções como a Douay-Rheims Bible (“conselho dos justos”), e Brenton a segue fielmente. Essa escolha lexical da LXX, ainda que não seja a tradução mais comum de ʿădāh, está dentro dos limites da equivalência interpretativa, especialmente considerando o paralelismo com o ʿēṣâ de Salmos 1:1. Dessa forma, ainda que não literal, essa tradução aumenta o entendimento teológico (critério 2), porque destaca não só o pertencimento físico à assembleia dos justos, mas também a impossibilidade do pecador partilhar da sabedoria e da deliberação da justiça, um tema profundamente sapiencial.

A NTLH e a NVT se afastam significativamente do texto original. A NTLH verte: “ficarão separados dos que obedecem a Deus”, enquanto a NVT afirma: “os pecadores não terão lugar entre os justos”. Ambas inserem interpretações adicionais (“obedecem a Deus” e “não terão lugar”) que, embora busquem explicitar o sentido, resultam numa certa eisegese. O termo ṣaddîqîm não é o mesmo que “os que obedecem a Deus”, ainda que o justo certamente o faça; e a expressão “ficarão separados” elimina o caráter absoluto do julgamento divino anunciado pelo salmista. O uso de “não terão lugar” na NVT atenua o julgamento com uma linguagem mais inclusiva e menos condenatória. Assim, embora essas versões possam aumentar o entendimento do leitor moderno (critério 2), o fazem ao custo de certa imprecisão hermenêutica e teológica (afetando negativamente o critério 1).

A versão CEV declara: “e eles não terão um lugar com o povo de Deus”. Essa leitura aproxima-se da NVT, optando por um vocabulário altamente interpretativo. A expressão “povo de Deus” é ambígua: embora esteja implícita na teologia bíblica da ʿădāh dos justos, ela pode ser compreendida de maneira vaga, inclusive etnicamente, o que não é o foco do texto. Além disso, o uso do futuro “terão” no condicional e do substantivo “lugar” enfraquece o paralelismo absoluto do salmo. A versão GNB (“ficarão separados do povo de Deus”) segue linha similar e, portanto, compartilha das mesmas fragilidades.

Já a ERV (“Sinners have no place among those who do what is right”) e a GW (“Sinners will not be able to stand where righteous people gather”) fazem escolhas interpretativas mais enfáticas, introduzindo construções como “have no place” e “where righteous people gather” que, apesar de ilustrativas, enfraquecem o tom jurídico e definitivo da exclusão proclamada pelo salmista. Elas traduzem com fluidez e acessibilidade, mas perdem a solenidade escatológica da sentença divina.

A tradução da TPT (“they have no part with those who walk in truth”) é a mais distante do original, substituindo completamente a imagem da assembleia por uma noção mais fluida de caminhada na verdade. “Walk in truth” não é uma tradução fiel de ʿădat ṣaddîqîm, e embora a ideia possa ser teologicamente válida em outros contextos (cf. 3 João 1:4), aqui representa uma interpolação e uma alteração substancial de sentido, comprometendo tanto a fidelidade ao texto (critério 1) quanto a clareza teológica (critério 2), aproximando-se de uma distorção do texto original (critério 3).

Por fim, as versões portuguesas tradicionais como ARC, ARA, KJA e Almeida Corrigida mantêm fidelidade notável ao hebraico, ao traduzirem por “congregação dos justos”. Essa expressão preserva a ideia de assembleia como local escatológico e cultual de comunhão dos justos, sem atenuações nem extrapolações. Portanto, são exemplares de traduções que cumprem plenamente os critérios de exatidão textual, clareza teológica e lealdade ao propósito do salmo.

Em suma, as traduções mais literais — como KJV, ARC, ASV, ESV, LEB e outras similares — devem ser preferidas por sua adesão ao hebraico e ao paralelismo original. As versões que expandem ou interpretam (NTLH, NVT, TPT, ERV) devem ser usadas com cautela, pois embora possam enriquecer a leitura devocional, podem comprometer a força exegética e o valor escatológico dessa passagem fundamental do Salmo 1.

A distinção entre “pecadores” e “justos” feita pelo salmista em Salmos 1:5b — “nem os pecadores na congregação dos justos” (veḥaṭṭāʾîm baʿădat ṣaddîqîm) — levanta questões filosóficas e teológicas relevantes à luz da revelação progressiva da Escritura. À primeira vista, parece haver uma tensão entre essa declaração veterotestamentária e a afirmação paulina em Romanos 3:10 e 3:23: “Não há justo, nem um sequer” e “todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus”. No entanto, não há contradição quando se compreende que a linguagem dos Salmos opera em um horizonte ético, relacional e pactual, enquanto a carta aos Romanos propõe uma argumentação soteriológica universalizante no contexto da justificação pela fé, à luz da obra redentora de Cristo. O salmista não nega a existência universal do pecado (cf. Salmos 143:2: “Pois à tua vista não se achará justo nenhum vivente”), mas emprega ṣaddîqîm em um sentido pactual, designando aqueles que vivem em fidelidade à aliança, guiados pela toráh, ainda que não sem pecado.

Os “justos” no Salmo 1 são aqueles que não andam segundo o conselho dos ímpios (v.1), mas que “têm seu prazer na lei do Senhor” (v.2). São pessoas que, dentro do arcabouço do Antigo Testamento, vivem uma vida de retidão, não em mérito intrínseco, mas em relação ao caminho revelado de Deus. Assim como Noé foi chamado “justo” (Gênesis 6:9) e Jó também (Jó 1:1), o salmista fala de “justos” como pessoas fiéis ao pacto, à justiça relacional e comunitária do povo de Deus, e não de uma justiça ontológica ou absoluta, como a descrita por Paulo em sua doutrina da depravação universal. Paulo, inclusive, ao citar Salmos na argumentação de Romanos 3, interpreta a Escritura sob a ótica cristológica e escatológica da justificação — e não nega a linguagem veterotestamentária dos “justos”, mas a reconfigura em Cristo, o único justo por excelência (1 João 2:1).

Essa reconfiguração paulina também não anula a verdade teológica da “congregação dos justos” (ʿădat ṣaddîqîm). Essa expressão não se refere a uma elite espiritual ou a uma superioridade legalista, mas à assembleia dos que caminham no caminho da justiça revelada. A palavra ʿădāh aparece em contextos de assembleia cultual e comunitária (cf. Êxodo 12:3; Números 16:3), diferentemente de “sinagoga” (synagōgē), que surge apenas em estágios posteriores do judaísmo pós-exílico e helenístico. O salmista usa deliberadamente ʿădāh, porque o foco não é um edifício ou instituição de ensino da toráh, mas a assembleia escatológica e moral dos fiéis, aqueles que compartilham o caminho da vida, da frutificação e da aliança (cf. Salmos 50:5; Isaías 4:3).

Além disso, a linguagem do salmista não respalda uma ideia sectária de “única religião verdadeira” nos moldes de uma eclesiologia institucional. A “congregação dos justos” não é uma denominação ou estrutura visível, mas uma realidade espiritual e relacional. Jesus, ao interpretar os salmos e os profetas, nunca condena o conceito de justiça pactual, mas sim a hipocrisia de quem se diz justo e não vive conforme o Espírito (cf. Mateus 23:27–28). O erro dos fariseus não foi defender que há justos e pecadores, mas presumirem ser justos por mérito próprio, excluindo outros com base em formas exteriores e desprezando a misericórdia, a justiça e a fidelidade (Mateus 23:23). Em contraste, o salmista celebra os que se deleitam na lei do Senhor (Salmos 1:2), e Jesus ratifica essa alegria quando diz: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão fartos” (Mateus 5:6).

No Novo Testamento, a ideia da assembleia dos justos é aprofundada com a revelação da ekklēsia, não como uma instituição humana, mas como o corpo dos redimidos em Cristo, “igreja dos primogênitos arrolados nos céus” (Hebreus 12:23). O Salmo 1, portanto, antecipa escatologicamente essa realidade, onde os pecadores (no sentido de obstinados na impiedade) não permanecerão na assembleia final dos redimidos (cf. Apocalipse 21:8). A “congregação dos justos” é antecipação do juízo final e da comunhão eterna dos santos.

A filosofia grega posterior também refletiu sobre a diferença entre o justo e o ímpio no contexto de comunidades ideais. Platão, em “A República”, defende a ideia de uma comunidade de pessoas que vivem segundo a justiça, separadas do caos dos desejos e das corrupções da alma. Contudo, a diferença entre Platão e o salmista é fundamental: para o salmista, a justiça é teocêntrica, fruto da aliança e da revelação; para Platão, é a harmonia das partes da alma com a razão.

Portanto, Salmos 1:5b não contradiz a teologia paulina, mas antecipa a verdade de que os redimidos, justificados pela fé, são reunidos como assembleia escatológica dos justos — e os ímpios, não por deficiência ontológica, mas por recusa do caminho da vida, serão separados do povo de Deus. Isso está em perfeita harmonia com João 15:6 (“Quem não permanece em mim será lançado fora”), com 2 Tessalonicenses 1:8–9 (“os que não obedecem ao evangelho serão punidos com eterna perdição”) e com o juízo das ovelhas e dos bodes em Mateus 25:31–46. O Salmo, portanto, não endossa um legalismo, mas celebra a graça da aliança que produz frutos de justiça em comunhão com Deus.

Salmos 1:6a Porque Javé conhece o caminho dos justos;... (Hb.: kî yōdēaʿ YHWH derek ṣaddîqîm — O verso se inicia com a partícula causal , que pode significar “pois”, “porque”, “visto que”, introduzindo a justificativa conclusiva de toda a série de contrastes estabelecida ao longo do salmo. Ela liga logicamente os efeitos descritos nos versículos anteriores à causa profunda que os motiva: a relação ativa e consciente de YHWH com o caminho dos justos. Esta partícula, no início da linha poética, não apenas arremata, mas ancora todo o argumento teológico do poema sapiencial.

O verbo yōdēaʿ está na forma do qal, particípio masculino singular da raiz y-d-ʿ (yadaʿ), cujo sentido primário é “conhecer”, mas que no uso veterotestamentário vai muito além de uma cognição intelectual: implica relação íntima, aprovação, eleição, e direção. É este o uso que transparece, por exemplo, em Gênesis 18:19 (“Porque eu o conheci para que ordene a seus filhos...”) e em Amós 3:2 (“De todas as famílias da terra, somente a vós vos conheci”). Em ambos os casos, o verbo yadaʿ denota uma aliança intencional, uma escolha relacional que implica proteção, correção e destino. O uso do particípio, em vez de uma forma verbal simples, acentua o aspecto habitual e constante: YHWH está em contínuo conhecimento — isto é, íntima comunhão e vigilância — com o caminho dos justos.

A expressão derek ṣaddîqîm (“caminho dos justos”) retoma e amplia a terminologia dos versículos anteriores (derek ḥaṭṭā’îm, v. 1). Derek, literalmente “caminho”, é uma metáfora recorrente no AT para estilo de vida, conduta moral, trajetória existencial (cf. Provérbios 4:18–19; Salmos 37:23). A construção é um status constructus em que derek está em ligação sintática com o plural ṣaddîqîm (“justos”), substantivo plural masculino derivado da raiz ṣ-d-q, que significa “ser justo”, “agir retamente”, “conformar-se ao padrão da justiça divina”. Este termo, longe de denotar perfeição moral absoluta, identifica aqueles cuja vida está em aliança com Deus e cujas ações manifestam fidelidade à Sua vontade, como explicitado em Habacuque 2:4 (“o justo viverá pela sua fé”) e reafirmado por Paulo em Romanos 1:17.

A versão grega da Septuaginta verte a cláusula como Ὅτι γινώσκει κύριος ὁδὸν δικαίων (hoti ginōskei kyrios hodon dikaíōn), em que o verbo ginōskei (presente indicativo ativo de ginōskō, “conhecer”) reforça o aspecto ativo e contínuo da percepção divina. A escolha de ginōskō — verbo que no Novo Testamento também carrega o sentido de “relacionamento experiencial” (João 10:14, “eu conheço as minhas ovelhas”) — mantém fielmente o sentido relacional e eletivo de yadaʿ. O vocábulo dikaíōn traduz ṣaddîqîm, e mantém a nuance ética e judicial do hebraico, utilizada extensamente por Paulo para designar aqueles que foram justificados por Deus mediante a fé (Romanos 3:26, 5:1).

Neste sentido, a exegese mostra que o verso expressa mais que um conhecimento observacional: trata-se de uma afirmação teológica da aliança, do agrado e da bênção divina sobre aqueles cuja conduta está alicerçada na justiça revelada. O salmista afirma que a vida dos justos — sua direção, seus passos e seu desígnio — está debaixo da aprovação ativa de Deus, que os conhece, dirige e reconhece (cf. Salmos 37:23: “Os passos de um homem bom são confirmados pelo Senhor...”).

A estrutura do versículo reforça esse ponto: a menção do “caminho dos justos” evoca imediatamente a ideia de que esse caminho não é autônomo, mas vigiado, protegido e conduzido por YHWH. Assim, yōdēaʿ YHWH derek ṣaddîqîm afirma a fidelidade de Deus em guiar, proteger e se deleitar no estilo de vida daqueles que Lhe são fiéis. Não se trata de uma observação geral ou distante, mas de um envolvimento íntimo, pastoral e providencial.

Essa interpretação é corroborada por passagens como Salmos 31:7 (“Tu conheceste as minhas aflições e as angústias da minha alma”), João 10:14 (“Eu sou o bom Pastor, e conheço as minhas ovelhas”), e 2 Timóteo 2:19 (“O Senhor conhece os que são seus”), onde o verbo “conhecer” carrega uma função identificadora e relacional.

Nas traduções analisadas, a maior parte das versões tradicionais mantém-se fiel ao hebraico: ASV, ESV, KJV, DRB, LEB, LITV, MKJV, Geneva, RV, YLT, TLV, entre outras, traduzem “O Senhor conhece o caminho dos justos”, o que se alinha com a estrutura e semântica originais. A ABP+, que opta por “the Lord knows the way of the just”, também mantém a fidelidade lexical, embora o uso da palavra “just” possa sugerir uma nuance mais ética-legalista em inglês moderno do que ṣaddîqîm no contexto veterotestamentário, que implica um relacionamento pactual. Já versões como BSB (“the LORD guards the path”) ou NET (“Certainly the LORD guards the way”) deslocam o foco de conhecimento relacional para proteção ativa, o que é uma interpretação possível, mas não exata quanto à morfologia verbal (yadaʿšāmar). A tradução da NVT (“guarda”) também incorre neste desvio semântico.

Já versões como a ERV (“The LORD shows his people how to live”) e CEV (“The LORD protects everyone who follows him”) abandonam a estrutura do verso hebraico e inserem conceitos externos (ex: “shows his people”, “everyone who follows him”), aproximando-se de paráfrases interpretativas. Embora bem-intencionadas do ponto de vista pastoral, estas traduções não são leais à construção e teologia do original, pois substituem a afirmação do conhecimento divino da trajetória moral dos justos por uma generalização da providência.

Portanto, do ponto de vista crítico e teológico, conclui-se que as versões ASV, ESV, KJV, DRB, LEB, LITV, TLV, Geneva, WEB, MKJV, YLT e outras afins são as mais leais ao texto original e preservam a dimensão relacional da expressão yadaʿ. As versões BSB, NVT e NET, embora menos precisas do ponto de vista morfológico, ampliam o sentido teológico ao associar conhecimento com cuidado, o que é bíblica e teologicamente plausível, especialmente à luz de Salmos 37:18 e João 10:14. Por fim, versões como CEV, GNB, ERV e TPT distorcem o núcleo semântico do verbo, oferecendo paráfrases que podem prejudicar o leitor na percepção do vínculo pactual e do discernimento divino retratado na construção hebraica original.

A afirmação do salmista em Salmos 1:6a — kî yōdēaʿ YHWH derek ṣaddîqîm (“Porque o Senhor conhece o caminho dos justos”) — está longe de ser uma simples constatação da onisciência divina, e sim, uma formulação teológica profunda que articula relação, juízo e destino escatológico. O verbo yadaʿ (“conhecer”) não é aqui uma referência ao mero saber intelectual ou à onisciência divina genérica. Ainda que Deus, como Criador, conheça todas as ações dos homens (cf. Salmos 139:1–4; Provérbios 15:3), o “conhecimento” aqui expresso é afetivo, relacional, eletivo, e judicial — um “conhecer” que implica aprovação, proteção e, finalmente, justificação. Essa leitura é corroborada pelo uso veterotestamentário do verbo yadaʿ em contextos semelhantes, como Gênesis 18:19 (“Porque eu o conheci [Abraão], para que ordenasse a seus filhos...”) e Oséias 13:5 (“Eu te conheci no deserto, na terra muito seca”), onde conhecer não significa apenas “ter informação sobre”, mas “vincular-se voluntariamente, favorecer, tomar para si”.

O substantivo derek (“caminho”) é igualmente carregado de sentido simbólico e teológico nas Escrituras. Em contextos sapiencais, como os Salmos e Provérbios, derek denota mais que uma estrada literal: refere-se ao conjunto de escolhas morais, éticas, espirituais e existenciais que compõem a vida de uma pessoa. É o estilo de vida de alguém, seu comportamento, sua inclinação interior e suas ações objetivas (cf. Provérbios 4:18–19; Jeremias 6:16; Salmos 25:4). Assim, o “caminho dos justos” não é apenas o itinerário físico ou existencial que essas pessoas percorrem, mas o seu modo de viver conforme a Torá de YHWH, conforme já explicitado em Salmos 1:2. O caminho aqui é uma metáfora para uma vida teologicamente orientada.

Esse caminho, diz o salmista, é conhecido por YHWH — isto é, é aprovado, guardado e desejado por Ele (cf. Salmos 37:23: “Os passos do homem bom são confirmados pelo Senhor”). Este conhecimento é ativo, deliberado, e comprometido. É como o “conhecimento” que Jesus declara ter de Suas ovelhas em João 10:14: “Eu sou o bom Pastor, e conheço as minhas ovelhas, e das minhas sou conhecido”. Não se trata de um saber informativo, mas relacional, e que conduz à vida eterna (João 10:27–28). Por isso, em 2 Timóteo 2:19, Paulo ecoa o mesmo princípio: “O Senhor conhece os que são seus”, e essa eleição se manifesta na prática: “e qualquer que profere o nome de Cristo aparte-se da iniquidade”.

O paralelismo poético hebraico em Salmos 1:6 é, de fato, claramente antitético: duas sentenças paralelas apresentam contrastes intencionais — “conhece o caminho dos justos” versus “o caminho dos ímpios perecerá”. O paralelismo se dá não apenas nas expressões de destino (conhecer vs perecer), mas nos sujeitos e trajetórias: justos versus ímpios; aprovação versus ruína. Se aceitarmos o paralelismo como completo, então é legítimo sugerir que yōdēaʿ e tō’bed (forma da raiz ʾābad, “perecer”) estão em correspondência sintática e teológica. Isso levanta a hipótese: assim como o “conhecer” de Deus é ativo, intencional, e volitivo, o “perecer” do caminho dos ímpios poderia igualmente ser resultado de ação divina deliberada?

Contudo, o hebraico usa tō’bed no imperfeito qal (feminino singular), com derek (“caminho”) como sujeito, indicando que é o próprio caminho dos ímpios que “perece” — ou seja, não há um sujeito explícito que “faz perecer”. Isso pode sugerir que a destruição do caminho ímpio é consequência interna à sua natureza, uma autodestruição ética, um colapso moral programado na estrutura da impiedade. Esta leitura se alinha com Provérbios 14:12 (“Há caminho que ao homem parece direito, mas o seu fim são os caminhos da morte”) e com Salmos 7:15–16 (“Cavou um poço e o fez fundo, e caiu na cova que fez. A sua malícia se voltará sobre a sua cabeça...”). Também Isaías 59:7–8 descreve esse caminho de forma autodestrutiva: “Seus pés correm para o mal... o caminho da paz eles não conhecem”.

Entretanto, essa leitura não exclui a interpretação teológica mais ampla de que Deus é quem permite e mesmo decreta o juízo contra os ímpios. Em passagens como Salmos 9:16–17 (“O Senhor se dá a conhecer pelo juízo que executa... os ímpios serão lançados no inferno”), a ação do próprio Deus é afirmada como causa do juízo. Também o Novo Testamento corrobora essa perspectiva: Romanos 2:5 afirma que os ímpios “entesouram ira para o dia da ira e da revelação do juízo de Deus”, e Apocalipse 20:12–15 aponta que o juízo final será pronunciado por Deus mesmo sobre os que não estão escritos no Livro da Vida.

Portanto, ambas as leituras não se contradizem, mas se complementam: o caminho dos ímpios perece porque é intrinsecamente corrupto e autodestrutivo, mas também perece porque é julgado por Deus. O contraste com o caminho dos justos, que é “conhecido” — isto é, abençoado, mantido, conduzido — por YHWH, reforça a dimensão moral e escatológica da estrutura do salmo.

Em harmonia com o restante da Bíblia, esse versículo ecoa o princípio das “duas vias” já presentes em Deuteronômio 30:19 (“pus diante de ti a vida e a morte... escolhe, pois, a vida”), reafirmado por Jesus em Mateus 7:13–14: “Entrai pela porta estreita... porque larga é a porta e espaçoso o caminho que conduz à perdição... e apertado o caminho que conduz à vida”. O salmo antecipa, portanto, a doutrina da eleição e do juízo, não baseada apenas em uma teologia da retribuição imediata, mas numa compreensão mais profunda do destino final dos que seguem cada caminho.

Em suma, o salmista apresenta o “conhecer” de Deus como eleição e cuidado; o “perecer” como juízo e colapso. A antítese entre esses destinos revela não apenas uma sabedoria prática, mas uma teologia do juízo e da aliança, perfeitamente coerente com toda a Bíblia — desde Gênesis até Apocalipse. O Deus que “conhece” é o mesmo que justifica (Romanos 8:29–30), e o caminho que perece é o mesmo que será julgado no último dia (Mateus 25:41–46).

Salmos 1:6b ...mas o caminho dos ímpios perecerá. (Hb.: wĕderek rešāʿîm tōʾbēd — Esta segunda cláusula de Salmos 1:6, “uḏerek rešaʿîm tōʾbēd” (וְדֶרֶךְ רְשָׁעִים תֹּאבֵד), apresenta uma estrutura hebraica breve, mas carregada de significação gramatical, morfológica, teológica e literária. A conjunção inicial u- (וְ), que aqui é traduzida como “mas”, funciona como partícula coordenativa adversativa, estabelecendo contraste sintático e semântico com a oração precedente. É comum na poesia hebraica que o waw introduza um paralelismo antitético, como aqui, onde o “conhecimento” do Senhor em relação ao caminho dos justos se contrapõe à destruição do caminho dos ímpios. Essa forma de paralelismo antitético é um dos recursos mais proeminentes da poesia sapiencial do Antigo Testamento, sendo frequente, por exemplo, em Provérbios 10–15, onde a justiça e a impiedade são constantemente postas em oposição.

O substantivo dereḵ (דֶּרֶךְ), transliterado derek, é um termo recorrente na literatura bíblica sapiencial, e aqui, novamente, designa uma metáfora para o estilo de vida, a trajetória moral e espiritual de uma pessoa. No caso do versículo 6b, o derek está determinado por rešaʿîm (רְשָׁעִים), plural masculino do substantivo rāšāʿ (רָשָׁע), que designa “ímpios”, “culpados”, “criminosos” ou “iníquos”. A forma rešaʿîm aparece como o sujeito genitivo desse “caminho”, estabelecendo não uma designação geográfica, mas moral: o “caminho dos ímpios” é a soma de seus pensamentos, decisões, hábitos e atitudes, em clara oposição ao derek ṣaddîqîm (o caminho dos justos) mencionado na cláusula anterior.

O verbo central tōʾbēd (תֹּאבֵד) é uma forma verbal no imperfeito do tronco Qal da raiz ʾābad (אָבַד), que significa “perecer”, “ser destruído”, “deixar de existir”. A forma é de terceira pessoa feminina singular, concordando morfologicamente com derek, que é um substantivo feminino. Portanto, o sujeito gramatical do verbo é o próprio derek — ou seja, não os ímpios diretamente, mas seu caminho. Esse detalhe é morfossintaticamente significativo: o salmista evita declarar que os rešaʿîm “perecem”, e foca-se no colapso de seu caminho. Em outras palavras, a destruição se aplica à trajetória moral dos ímpios, e não necessariamente (ainda) a seus corpos ou destinos escatológicos.

O uso do imperfeito aqui não é necessariamente temporal, mas aspectual: denota uma ação incompleta ou futura. Isso pode indicar que o caminho dos ímpios está em processo de perecimento ou caminha inevitavelmente para a destruição. O fato de que o salmista opta pelo imperfeito Qal e não, por exemplo, por um Qal perfeito (ʾābadah), reforça que essa destruição ainda não é total, mas iminente e contínua. A implicação é que a impiedade tem em si mesma o germe da sua própria dissolução — um eco literário de passagens como Provérbios 5:22 (“Prenderão ao ímpio as suas próprias iniquidades...”) ou Jeremias 17:11 (“...no meio dos seus dias o deixará, e no seu fim será insensato”).

Essa destruição pode ser interpretada tanto como passiva quanto como reflexo de ação divina. Embora o sujeito gramatical do verbo seja o derek, e não Deus, a tradição bíblica frequentemente apresenta o Senhor como o Juiz que estabelece e executa juízo sobre os maus (cf. Salmos 9:5–6; 37:9–10; Isaías 66:15–16). Assim, ainda que a linguagem aqui pareça mais “impessoal” (isto é, não menciona diretamente YHWH como o agente da destruição), o contexto teológico da Torá e dos Profetas permite compreender que a ruína do caminho dos ímpios acontece diante de Deus, sob Sua soberania e conforme Sua justiça (cf. Salmos 1:5: “os ímpios não subsistirão no juízo”).

A LXX verte essa cláusula como: hodòs de asebōn apolêtai (ὁδὸς δὲ ἀσεβῶν ἀπολεῖται). A escolha do verbo grego apollumi (ἀπόλλυμι), na forma futura média passiva apolêtai, reforça o mesmo sentido de perecimento — embora aqui, diferentemente do hebraico, o verbo é conjugado com agente implícito, podendo ser entendido tanto como “será destruído” quanto “perecerá por si só”. A LXX também escolhe o termo asebōn (ἀσεβῶν) para traduzir rešaʿîm, conectando a ideia de “ímpio” ao conceito grego de asebeia (impiedade, irreverência diante dos deuses), uma escolha que sugere um tipo de mal enraizado na ruptura com a ordem divina e não meramente social ou moral. Isso é teologicamente importante porque situa a oposição entre justo e ímpio não apenas como diferença de conduta, mas como diferença de relação com Deus. Em outras palavras, o ímpio não apenas age mal: ele vive em alienação de Deus — o que reforça que seu caminho não pode ter um fim que não seja o desaparecimento.

Esse caminho que perece, como ideia, também aparece em outros pontos do Antigo Testamento com desdobramentos semelhantes. Em Provérbios 14:12, o texto afirma: “Há caminho que ao homem parece direito, mas o seu fim são os caminhos da morte”, o que sugere que o derek pode parecer firme e frutífero, mas oculta sua destruição. Isaías 59:8 também observa que “o caminho da paz eles não conhecem; não há justiça nos seus caminhos; fizeram para si veredas tortuosas; qualquer que anda por elas não tem conhecimento da paz”. Aqui, mais uma vez, o “caminho” é sinônimo do curso de vida injusto e rebelde, que se opõe frontalmente à vontade de Deus e termina em perdição.

Portanto, em Salmos 1:6b, o salmista não apenas faz uma observação moral, mas expõe uma realidade teológica: a trajetória de vida dos ímpios está em curso de extinção, não apenas porque será julgada por Deus, mas porque é estruturalmente contrária à ordem divina e à vida plena. Esse caminho não é sustentado por YHWH, nem “conhecido” (no sentido afetivo-teológico) por Ele. Tal exclusão da yadaʿ divina é o prelúdio da ruína. O salmo termina, assim, não com uma ameaça explícita de juízo final, mas com um aviso embutido na gramática da existência: o caminho dos ímpios perece, como perece o vapor, o joio ao vento, ou a sombra sem raiz. Tal formulação prepara o leitor para o ethos do livro de Salmos: a vida diante de Deus é uma escolha entre dois caminhos — um que é conhecido por Ele, e um que, por fim, se dissolve no nada.

A tradução da segunda cláusula de Salmos 1:6 — “uḏerek rešaʿîm tōʾbēd” — apresenta, como vimos na análise exegética e morfológica, um paralelismo antitético cuja riqueza sintática e teológica exige precisão para não se perder a força do contraste entre o “caminho dos justos”, que Deus “conhece”, e o “caminho dos ímpios”, que “perece”. A tradução fiel desta cláusula deve preservar ao menos três eixos: (1) a construção gramatical com sujeito feminino singular (derek), que é o agente lógico do verbo tōʾbēd, ou seja, “o caminho” é o que perece; (2) o aspecto verbal do yiqtol Qal com valor de ação futura ou inacabada — “perecerá”, “acabará”, e não “já pereceu”; e (3) a ausência de sujeito divino explícito na ação de perecer, o que sugere que a destruição ocorre de modo autodestrutivo, natural, ou providencial, sem excluir, mas sem destacar, o juízo direto de Deus.

À luz disso, as versões que traduzem literalmente a forma hebraica com respeito morfológico e sem interpolações interpretativas são: ASV, Darby, DRB, ESV, ESV+, Geneva, GW, HRB, ISV, JUB, KJV, KJVA, LEB, LITV, MKJV, RV, UASV+, WEB, WEBA, Webster, YLT. Todas essas vertem com exatidão: “o caminho dos ímpios (ou ‘dos perversos’, ‘dos injustos’) perecerá” ou “será destruído”, respeitando tanto a estrutura hebraica quanto o valor verbal do tōʾbēd. A maioria emprega “shall perish” (futuro simples em inglês) como correspondência adequada ao aspecto imperfeito do hebraico bíblico, mantendo fidelidade tanto ao conteúdo quanto à forma. Portanto, classificam-se como traduções exatas e leais ao original (categoria 1).

Algumas versões optam por formas que aumentam o entendimento teológico, sem desfigurar o original. A NVT, por exemplo, traduz: “mas o caminho dos perversos leva à destruição”. Embora mude o sujeito da oração (de “o caminho perecerá” para “o caminho leva à destruição”), a equivalência semântica é preservada: o derek é a trajetória que conduz a um fim ruinoso. A mesma estratégia é adotada por NET, TLV, TPT e NTLH — todas com formulações mais interpretativas, mas que mantêm o mesmo sentido escatológico e existencial. São traduções que, mesmo sem serem literais, aprofundam a compreensão teológica do texto, ao sugerir que a destruição é o desfecho natural e necessário do modo de vida ímpio, e não apenas um evento pontual de juízo. Nesse grupo também se insere a CEV, que diz: “mas os perversos seguem um caminho que leva à ruína” — novamente deslocando o verbo de perecimento do caminho em si para o fim do caminho, mas mantendo a verdade exegética de que o percurso dos ímpios não subsiste. Portanto, estas versões se enquadram com segurança na categoria (2) aumentam o entendimento teológico.

No entanto, algumas versões, embora não sejam exatamente incorretas, oferecem interpretações que podem distorcer a forma ou o foco teológico original, caindo parcialmente na categoria (3). A versão ERV, ao dizer: “os perversos perderam o caminho”, altera completamente o sentido do original. A ação do verbo tōʾbēd não significa “se perder”, mas “ser destruído” ou “perecer”. Além disso, deslocar a destruição do caminho para uma ação do sujeito (os ímpios perdendo o rumo) rompe o paralelismo estrutural da poesia hebraica e transforma um desfecho escatológico objetivo em uma crise subjetiva de orientação. Da mesma forma, a GNB afirma: “os maus estão no caminho para a desgraça”, o que já não é o mesmo que dizer que “o caminho perece” ou “os ímpios estão em um caminho que se dissolve”. Ainda que o sentido geral do juízo se mantenha, a formulação “estão no caminho para a desgraça” dilui a ênfase fatal e final da sentença hebraica, substituindo a certeza escatológica por uma possibilidade psicológica.

A versão BSB, que traduz como “For the LORD guards the path of the righteous, but the way of the wicked will perish”, tem uma primeira cláusula nitidamente eivada de interpretação (usa “guards” em vez de “knows”), o que já compromete seu equilíbrio. No entanto, a segunda parte (“the way of the wicked will perish”) mantém fidelidade à construção hebraica, sendo, pois, parcialmente exata. De modo semelhante, a Portuguese KJA altera profundamente a primeira cláusula (“Pois conhecer o SENHOR é o caminho dos justos”), criando confusão sintática, pois troca o sujeito da frase e faz “conhecer o SENHOR” ser o próprio caminho. Apesar disso, a segunda cláusula (“o caminho dos ímpios conduz à destruição”) é teologicamente defensável. Ambas, portanto, oscilam entre as categorias (2) e (3), com tendência preocupante à distorção.

Por fim, a versão TPT (The Passion Translation), ao dizer “the way of the wicked leads only to doom”, faz uma paráfrase estilizada que sacrifica a estrutura poética e sintática hebraica por uma retórica contemporânea. Embora transmita a ideia teológica de destruição final, o estilo hiperliterário compromete a nitidez da dicção sapiencial original. A palavra “doom”, carregada de conotações apocalípticas modernas, pode gerar associações anacrônicas que não estavam necessariamente presentes no hebraico tōʾbēd — que, embora escatológico, é mais existencial e moral do que cósmico ou espetacular.

Em resumo: as traduções da cláusula final de Salmos 1:6 que mantêm fidelidade estrutural, gramatical e semântica ao hebraico original estão em maioria, e incluem todas as que traduzem com simplicidade e precisão a ideia de que “o caminho dos ímpios perecerá”. Outras, ao adotarem paráfrases interpretativas, aumentam a compreensão teológica, especialmente no contexto pastoral ou devocional, mas correm o risco de rebaixar a força poética e o paralelismo simétrico da construção hebraica. Há, contudo, versões que extrapolam de modo indevido a intenção do texto, deslocando o sujeito, mudando a ação verbal e obscurecendo o juízo objetivo que a poesia salmódica estabelece como conclusão de todo o Salmo 1 — um salmo que termina como começou: delineando os dois caminhos que se bifurcam diante de todo ser humano.

O versículo final de Salmos 1 — “וְדֶרֶךְ רְשָׁעִים תֹּאבֵד” (wəḏereḵ rešaʿîm tōʾbēḏ) — não apenas encerra o salmo com um contraste marcante, mas também estabelece uma linha divisória moral e escatológica que ecoará por toda a Escritura: o destino do justo e o destino do ímpio são absolutamente distintos, não por causa de méritos humanos ou obediência mecânica à Lei, mas porque Deus se agrada do caminho que reflete Sua justiça, e rejeita aquilo que se opõe ao seu caráter. O que essa cláusula ensina ao crente moderno, então, é que há um modo de vida que, ainda que pareça viável aos olhos humanos, conduz à perdição: “Há caminho que ao homem parece direito, mas o fim dele são os caminhos da morte” (Provérbios 14:12). Esse ensino se ancora em uma realidade objetiva e absoluta: não é a sinceridade da intenção, nem o zelo religioso que valida um caminho, mas sua conformidade com a vontade do Deus justo, revelado não apenas na Torá, mas plenamente em Jesus Cristo, a Palavra encarnada (João 1:14).

O “caminho dos ímpios” é mais do que conduta: é uma rota existencial que define direção, destino e identidade. No contexto da aliança mosaica, esse caminho era julgado pela fidelidade à Torá, entendida como expressão concreta da vontade divina (cf. Deuteronômio 30:15–20). Contudo, já no próprio Salmo 1 nota-se que essa fidelidade não é meramente legalista ou ritual, mas afetiva e meditativa: “Antes tem o seu prazer na lei do Senhor, e na sua lei medita de dia e de noite” (Salmos 1:2). Ou seja, não é o legalismo externo que distingue o justo do ímpio, mas uma disposição interior moldada pela Palavra de Deus — algo que ecoa profundamente nos ensinos de Jesus, que denunciava os fariseus por honrarem a Deus com os lábios, mas tendo o coração longe dEle (Mateus 15:7–9; Isaías 29:13).

Ao afirmar que “o caminho dos ímpios perecerá”, o salmista não apenas anuncia juízo, mas propõe uma ética da responsabilidade diante de Deus. Não há neutralidade moral diante do Senhor — ou se anda no caminho da justiça que Ele “conhece” (Salmos 1:6a), ou se escolhe um caminho de autonomia e autossuficiência, que inevitavelmente leva à ruína. E essa destruição não é necessariamente instantânea, mas é certa: “O que semeia para a sua carne, da carne ceifará corrupção; mas o que semeia para o Espírito, do Espírito ceifará a vida eterna” (Gálatas 6:8). Essa verdade nos desafia pastoralmente a avaliar nossa vida não apenas por resultados imediatos ou aceitação social, mas pela direção e natureza espiritual do caminho que trilhamos.

Jesus aprofunda e transforma essa visão quando revela que Ele mesmo é “o Caminho, a Verdade e a Vida” (João 14:6). Isso significa que o caminho do justo não é mais um código ético externo, mas um relacionamento pessoal com o Filho de Deus. A justiça que outrora era buscada por meio das obras da Lei agora é outorgada gratuitamente àqueles que creem (Romanos 3:20–26). O apóstolo Paulo afirma com clareza: “Sabemos que o homem não é justificado pelas obras da lei, mas pela fé em Jesus Cristo” (Gálatas 2:16). Nesse sentido, o justo de Salmos 1 não é apenas aquele que se dedica à Torá, mas aquele que encontra seu prazer na Palavra viva — Jesus, o Logos — e cuja vida é transformada à imagem dEle.

João 1:18 nos revela que “o Filho unigênito, que está no seio do Pai, esse o fez conhecer” — no grego, ekeinos exēgēsato, literalmente: “esse o exegetou”. Jesus é, pois, o intérprete supremo de Deus, o exegeta da Sua vontade. Se queremos saber qual é o caminho do justo, devemos olhar para a vida de Cristo: humilde, obediente, compassiva, firmada na verdade e rendida ao Pai. Segui-lo não é uma alternativa moral entre muitas, mas o único caminho que não perece. “Quem me segue não andará em trevas, mas terá a luz da vida” (João 8:12).

Portanto, pastoralmente, Salmos 1:6b nos desafia a abandonar a ilusão de neutralidade moral e a reconhecer que toda vida se orienta para um fim: ou para a bem-aventurança de uma comunhão crescente com Deus, ou para a dissolução última de uma existência que O rejeita. Para o cristão, esse texto é um apelo a viver de modo que reflita a realidade do novo nascimento: “Vós andáveis outrora segundo o curso deste mundo... mas Deus, sendo rico em misericórdia, pelo seu muito amor com que nos amou, nos vivificou juntamente com Cristo” (Efésios 2:2–5). E essa nova vida, inserida no Caminho que é Cristo, jamais perecerá: “As minhas ovelhas ouvem a minha voz, e eu as conheço, e elas me seguem; e dou-lhes a vida eterna, e nunca hão de perecer” (João 10:27–28).

Em suma, o salmista encerra o Salmo 1 com uma advertência solene que ganha pleno sentido à luz da revelação cristológica. O caminho do ímpio não apenas falha — ele se dissolve, desintegra, desaparece no vazio. O caminho do justo, por outro lado, é conhecido, acompanhado e sustentado por Deus. Não somos chamados a traçar esse caminho por esforço próprio, mas a nele andar por fé, unidos àquele que é o Caminho em pessoa: Jesus, o Exegeta do Pai e o Pastor das almas que não perecerão jamais.

VII. Exposição de C. Spurgeon: Salmo 1

Título - Este Salmo pode ser considerado como o Salmo de Prefácio, contendo em si uma notificação do conteúdo de todo o Livro. É o desejo do salmista ensinar-nos o caminho para a bem-aventurança e alertar-nos sobre a destruição certa dos pecadores. Este é, então, o assunto do Salmo 1, que pode ser visto, em certos aspectos, como o texto sobre o qual a totalidade dos Salmos compõe um sermão divino.

Divisão - Este Salmo consiste em duas partes: na primeira (do v. 1 ao final do v. 3), Davi expõe em que consiste a felicidade e a bem-aventurança de um homem piedoso, quais são os seus exercícios e que bênçãos ele receberá do Senhor. Na segunda parte (do v. 4 até o fim), ele contrasta o estado e o caráter dos ímpios, revela o futuro e descreve, em linguagem eloquente, o seu destino final.

Exposição

Salmos 1:1-2 Bem-aventurado o homem que não anda segundo o conselho dos ímpios, nem se detém no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos escarnecedores. Antes, tem o seu prazer na lei do Senhor; e na sua lei medita de dia e de noite.

“Bem-aventurado” — veja como este Livro de Salmos se abre com uma bem-aventurança, assim como o fez o famoso Sermão do Monte de nosso Senhor! A palavra traduzida como “bem-aventurado” é muito expressiva. A palavra original está no plural, e é uma questão controversa se é um adjetivo ou um substantivo. Daí podemos aprender a multiplicidade das bênçãos que repousarão sobre o homem a quem Deus justificou, e a perfeição e grandeza da bem-aventurança que ele desfrutará. Poderíamos lê-la como: “Oh, as bem-aventuranças!” e podemos muito bem considerá-la (como Ainsworth faz) como uma aclamação jubilosa da felicidade do homem agraciado. Que a mesma bem-aventurança repouse sobre nós!

Aqui, o homem piedoso é descrito tanto negativamente (v. 1) quanto positivamente (v. 2). Ele é um homem que não anda segundo o conselho dos ímpios. Ele busca um conselho mais sábio e anda nos mandamentos do Senhor, seu Deus. Para ele, os caminhos da piedade são veredas de paz e de prazer. Seus passos são ordenados pela Palavra de Deus, e não pelos estratagemas astutos e perversos dos homens carnais. É um rico sinal de graça interior quando o andar exterior é mudado, e quando a impiedade é afastada de nossas ações. Note a seguir, ele não se detém no caminho dos pecadores. Sua companhia é de uma estirpe mais seleta do que era. Embora seja ele mesmo um pecador, ele é agora um pecador lavado no sangue, vivificado pelo Espírito Santo e renovado em seu coração. Permanecendo, pela rica graça de Deus, na congregação dos justos, ele não ousa se misturar com a multidão que pratica o mal. Novamente, é dito: “nem se assenta na roda dos escarnecedores”. Ele não encontra descanso nos escárnios do ateu. Que outros zombem do pecado, da eternidade, do inferno e do céu, e do Deus Eterno; este homem aprendeu uma filosofia melhor do que a do infiel, e tem um senso demasiado da presença de Deus para suportar ouvir seu nome ser blasfemado. A roda do escarnecedor pode ser muito elevada, mas está muito perto do portão do inferno; fujamos dela, pois em breve estará vazia, e a destruição engolirá o homem que nela se assenta. Observe a gradação no primeiro versículo:

  • Ele não anda no conselho dos ímpios,
  • Nem se detém no caminho dos pecadores,
  • Nem se assenta na roda dos escarnecedores.

Quando os homens vivem em pecado, eles vão de mal a pior. No início, eles meramente andam no conselho dos negligentes e ímpios, que se esquecem de Deus — o mal é mais prático do que habitual — mas, depois disso, eles se habituam ao mal e se detêm no caminho dos pecadores declarados, que violam deliberadamente os mandamentos de Deus; e, se deixados por conta própria, dão mais um passo e se tornam eles mesmos mestres pestilentos e tentadores de outros, e assim se assentam na roda dos escarnecedores. Eles se formaram no vício e, como verdadeiros Doutores da Danação, são instituídos e admirados por outros como Mestres em Belial. Mas o homem bem-aventurado, o homem a quem todas as bênçãos de Deus pertencem, não pode ter comunhão com tais personagens. Ele se mantém puro desses leprosos; ele afasta de si as coisas más como vestes manchadas pela carne; ele sai do meio dos ímpios e vai para fora do acampamento, levando o opróbrio de Cristo. Oh, que tenhamos graça para estarmos assim separados dos pecadores!

E agora, observe seu caráter positivo. “O seu prazer está na lei do Senhor.” Ele não está debaixo da lei como uma maldição e condenação, mas ele está nela, e tem prazer de estar nela como sua regra de vida; ele tem prazer, ademais, em meditar nela, em lê-la de dia e pensar nela de noite. Ele pega um texto e o carrega consigo o dia todo; e nas vigílias da noite, quando o sono abandona suas pálpebras, ele medita na Palavra de Deus. No dia de sua prosperidade, ele canta salmos da Palavra de Deus, e na noite de sua aflição, ele se consola com promessas do mesmo livro. “A lei do Senhor” é o pão de cada dia do verdadeiro crente. E, no entanto, nos dias de Davi, quão pequeno era o volume da inspiração, pois eles mal tinham algo além dos cinco primeiros livros de Moisés! Quanto mais, então, deveríamos nós valorizar toda a Palavra escrita, que temos o privilégio de ter em todas as nossas casas! Mas, ai, que maus-tratos são dados a este anjo do céu! Não somos todos pesquisadores bereanos das Escrituras. Quão poucos entre nós podem reivindicar a bem-aventurança do texto! Talvez alguns de vocês possam reivindicar uma espécie de pureza negativa, porque não andam no caminho dos ímpios; mas deixem-me perguntar-lhes: O seu prazer está na lei de Deus? Vocês estudam a Palavra de Deus? Vocês a tornam seu conselheiro de confiança — sua melhor companhia e guia de toda hora? Se não, esta bênção não lhes pertence.

Salmos 1:3 Pois será como a árvore plantada junto a ribeiros de águas, a qual dá o seu fruto na estação própria, e cujas folhas não cairão; e tudo quanto fizer prosperará.

“E ele será como a árvore plantada;” não uma árvore selvagem, mas “uma árvore plantada”, escolhida, considerada como propriedade, cultivada e protegida do último e terrível arrancamento, pois “toda planta que meu Pai celestial não plantou será arrancada”: Mateus 15:13. “Junto a ribeiros de águas;” de modo que, mesmo que um ribeiro seque, ele tem outro. Os ribeiros do perdão e os ribeiros da graça, os ribeiros da promessa e os ribeiros da comunhão com Cristo, são fontes de suprimento que nunca falham. Ele é “como a árvore plantada junto a ribeiros de águas, a qual dá o seu fruto na estação própria;” não graças fora de época, como figos prematuros, que nunca são plenamente saborosos. Mas o homem que se deleita na Palavra de Deus, sendo por ela ensinado, produz paciência no tempo do sofrimento, fé no dia da provação e santa alegria na hora da prosperidade. A frutificação é uma qualidade essencial de um homem piedoso, e essa frutificação deve ser sazonal. “Sua folha também não murchará;” sua palavra mais tênue será eterna; seus pequenos atos de amor serão lembrados. Não apenas seu fruto será preservado, mas também sua folha. Ele não perderá nem sua beleza nem sua frutificação. “E tudo quanto fizer prosperará.” Bem-aventurado o homem que tem uma promessa como esta. Mas não devemos sempre avaliar o cumprimento de uma promessa com nossos próprios olhos. Quantas vezes, meus irmãos, se julgarmos pelo fraco sentido, podemos chegar à melancólica conclusão de Jacó: “Todas estas coisas são contra mim!” Pois, embora conheçamos nosso direito na promessa, somos tão provados e atribulados que a visão enxerga o exato oposto do que a promessa prediz. Mas para o olho da fé, esta palavra é segura, e por ela percebemos que nossas obras são prosperadas, mesmo quando tudo parece ir contra nós. Não é a prosperidade exterior que o cristão mais deseja e valoriza; é a prosperidade da alma que ele anseia. Nós frequentemente, como Jeosafá, fazemos navios para irem a Társis em busca de ouro, mas eles se quebram em Eziom-Geber; mas mesmo aqui há uma verdadeira prosperidade, pois muitas vezes é para a saúde da alma que devemos ser pobres, despojados e perseguidos. Nossas piores coisas são muitas vezes nossas melhores coisas. Assim como há uma maldição envolta nas misericórdias do ímpio, há uma bênção oculta nas cruzes, perdas e tristezas do justo. As provações do santo são uma lavoura divina, pela qual ele cresce e produz fruto abundante.

Salmos 1:4 Não são assim os ímpios; mas são como a moinha que o vento espalha.

Chegamos agora à segunda parte do Salmo. Neste versículo, o contraste da má condição dos ímpios é empregado para realçar a coloração daquela bela e agradável imagem que a precede. A tradução mais enérgica da Vulgata e da versão da Septuaginta é — “Não assim os ímpios, não assim.” E devemos entender por isso que qualquer coisa boa que se diga dos justos não é verdade no caso dos ímpios. Oh! quão terrível é ter uma dupla negativa colocada sobre as promessas! E, no entanto, esta é exatamente a condição dos ímpios. Observe o uso do termo “ímpios”, pois, como vimos na abertura do Salmo, estes são os iniciantes no mal e são os menos ofensivos dos pecadores. Oh! se tal é o triste estado daqueles que tranquilamente continuam em sua moralidade e negligenciam a seu Deus, qual não deve ser a condição dos pecadores declarados e dos infiéis desavergonhados? A primeira sentença é uma descrição negativa dos ímpios, e a segunda é a imagem positiva. Eis o seu caráter — “são como a palha”, intrinsecamente sem valor, morta, inútil, sem substância e facilmente levada. Aqui, também, observe seu destino — “O vento espalha;” a morte os apressará com sua terrível rajada para o fogo no qual serão totalmente consumidos.

Salmos 1:5 Pelo que os ímpios não subsistirão no juízo, nem os pecadores na congregação dos justos.

Eles estarão lá para serem julgados, mas não para serem absolvidos. O medo se apoderará deles ali; eles não se manterão firmes; eles fugirão; eles não se sustentarão em sua própria defesa; pois corarão e serão cobertos de eterno desprezo. Bem podem os santos ansiar pelo céu, pois nenhum homem mau habitará lá, “nem os pecadores na congregação dos justos.” Todas as nossas congregações na terra são mistas. Toda Igreja tem um diabo nela. O joio cresce nos mesmos sulcos que o trigo. Não há eira que já esteja completamente limpa da palha. Pecadores se misturam com santos, como a escória se mistura com o ouro. Os preciosos diamantes de Deus ainda jazem no mesmo campo com seixos. Os justos Lós, deste lado do céu, são continuamente atormentados pelos homens de Sodoma. Alegremo-nos, então, que na “universal assembleia e igreja dos primogênitos” no alto, de modo algum será admitida uma única alma não renovada. Pecadores não podem viver no céu. Estariam fora de seu elemento. Mais depressa um peixe poderia viver numa árvore do que o ímpio no Paraíso. O céu seria um inferno intolerável para um homem impenitente, mesmo que lhe fosse permitido entrar; mas tal privilégio nunca será concedido ao homem que persevera em suas iniquidades. Que Deus nos conceda ter um nome e um lugar em seus átrios celestiais!

Salmos 1:6 Porque o Senhor conhece o caminho dos justos; porém o caminho dos ímpios perecerá.

Ou, como o hebraico o expressa de forma ainda mais plena, “O Senhor está conhecendo o caminho dos justos.” Ele está constantemente olhando para o caminho deles, e embora possa estar muitas vezes em névoa e escuridão, o Senhor o conhece. Se estiver nas nuvens e na tempestade da aflição, ele o entende. Ele conta os cabelos de nossa cabeça; não permitirá que nenhum mal nos aconteça. “Ele conhece o caminho por onde eu ando; provando-me ele, sairei como o ouro.” (Jó 23:10) “Porém o caminho dos ímpios perecerá.” Não apenas eles mesmos perecerão, mas seu caminho perecerá também. O justo esculpe seu nome na rocha, e sua memória nunca será plenamente colhida até que ele entre nos deleites da eternidade; mas, quanto ao ímpio, ele ara o mar, e embora possa parecer haver um rastro brilhante atrás de sua quilha, as ondas passarão sobre ele, e o lugar que o conheceu não o conhecerá mais para sempre. O próprio “caminho” do ímpio perecerá. Se ele existir na memória, será na memória dos maus; pois o Senhor fará o nome dos ímpios apodrecer, para se tornar um mau cheiro nas narinas dos bons, e ser conhecido apenas pelos próprios ímpios por sua putridez.

[Nota do Tradutor: O texto original em inglês nesta seção continha uma frase gramaticalmente confusa e provavelmente corrompida por um erro de digitação (“The righteous carves his name upon the rock, but the wicked writes his remembrance here, which shall never be fully reaped till he enters the enjoyments of eternity but as for the wicked, he ploughs the sea...”). Para manter a lógica clara da metáfora de Spurgeon, a frase foi corrigida na tradução para refletir o contraste pretendido entre a permanência do justo e a transitoriedade do ímpio.]

Que o Senhor purifique nossos corações e nossos caminhos, para que possamos escapar da condenação dos ímpios e desfrutar da bem-aventurança dos justos!

Sugestões para Pregadores

Salmo 1:1 - Pode fornecer um excelente texto sobre o “Progresso no Pecado”, a “Pureza do Cristão” ou “A Bem-aventurança dos Justos”. Sobre o último tema, fale do crente como bem-aventurado:

  1. Por Deus;

  2. Em Cristo;

  3. Com todas as bênçãos;

  4. Em todas as circunstâncias;

  5. Através do tempo e da eternidade;

  6. No mais alto grau.

Salmo 1:1 - Ensina o homem piedoso a ter cuidado com: (1) as opiniões, (2) a vida prática, e (3) a companhia e associação de homens pecadores. Mostre como a meditação na Palavra nos ajudará a nos mantermos afastados desses três males.

A natureza insinuante e progressiva do pecado. — J. Morison.

Salmo 1:1, em conexão com todo o Salmo. A ampla diferença entre o justo e o ímpio.

Salmo 1:2 - A Palavra de Deus.

  1. O deleite do crente nela.

  2. A familiaridade do crente com ela. Ansiamos estar na companhia daqueles que amamos.

Salmo 1:2 I. O que se entende por “a lei do Senhor”. II. O que há nela para o deleite do crente. III. Como ele demonstra seu deleite: pensa nela, lê muito sobre ela, fala dela, obedece a ela, não se deleita no mal.

Salmo 1:2 (última cláusula) - Os benefícios, as ajudas e os obstáculos da meditação.

Salmo 1:3 - “A árvore frutífera”. I. Onde ela cresce. II. Como ela chegou lá. III. O que ela produz. IV. Como ser semelhante a ela.

Salmo 1:3 - “Plantada junto a ribeiros de águas”. I. A origem da vida cristã: “plantada”. II. As correntes que a sustentam. III. O fruto que se espera dela.

Salmo 1:3 - A influência da religião na prosperidade. — Blair. A natureza, as causas, os sinais e os resultados da verdadeira prosperidade.

“Fruto na estação própria”; virtudes a serem exibidas em certas estações — paciência na aflição; gratidão na prosperidade; zelo na oportunidade, etc.

“E a sua folha não murchará”; a bênção de manter uma profissão que não murcha.

Salmo 1:3, 4 - Veja o Sermão nº 280 de Spurgeon — “A Palha Dispersa pelo Vento”. O pecado anula toda bênção.

Salmo 1:5 - A dupla condenação do pecador.

  1. Condenado no tribunal do juízo.

  2. Separado dos santos. A razoabilidade dessas penalidades (“portanto”) e a maneira de escapar delas.

“A congregação dos justos” vista como a igreja dos primogênitos no céu. Isto pode fornecer um nobre tópico.

Salmo 1:6 (primeira sentença) - Um doce encorajamento para o povo de Deus que é provado. O conhecimento aqui mencionado.

  1. Seu caráter — É um conhecimento de observação e aprovação.

  2. Sua fonte — É gerado pela onisciência e pelo amor infinito.

  3. Seus resultados — Suporte, livramento, aceitação e, por fim, a glória.

Salmo 1:6 (última cláusula) - O seu caminho de prazer, de orgulho, de incredulidade, de profanidade, de perseguição, de procrastinação, de autoengano, etc.; todos estes chegarão ao fim.

Notas Explicativas e Ditos Notáveis

Salmo Inteiro Assim como o livro de Cantares é chamado de Cântico dos Cânticos por um hebraísmo, sendo o mais excelente, este Salmo pode, não inaptamente, ser intitulado o Salmo dos Salmos, pois contém em si a própria medula e quintessência do Cristianismo. O que Jerônimo diz das epístolas de São Paulo, o mesmo posso dizer deste Salmo; é curto em sua composição, mas cheio de extensão e força em sua matéria. Este Salmo carrega a bem-aventurança em seu frontispício; começa onde todos esperamos terminar: pode muito bem ser chamado de Guia do Cristão, pois descobre os bancos de areia movediça onde os ímpios afundam na perdição, e o solo firme sobre o qual os santos pisam para a glória. — Thomas Watson, Saints’ Spiritual Delight, 1660.

Este Salmo inteiro se oferece para ser expresso nestas duas proposições opostas: um homem piedoso é bem-aventurado, um homem ímpio é miserável; que parecem se apresentar como dois desafios, feitos pelo profeta: um, de que ele defenderá um homem piedoso contra todos os que vierem, como sendo o único Jasão a conquistar o velocino de ouro da bem-aventurança; o outro, que embora os ímpios façam no mundo uma exibição de felicidade, eles, de todos os homens, são os mais miseráveis. — Sir Richard Baker, 1640.

Fui levado a abraçar a opinião de alguns entre os intérpretes antigos (Agostinho, Jerônimo, etc.), que concebem que o Salmo 1 pretende ser descritivo do caráter e da recompensa do Justo, isto é, o Senhor Jesus. — John Fry, B.A., 1842.

Salmo 1:1 O salmista diz mais ao ponto sobre a verdadeira felicidade neste curto Salmo do que qualquer um dos filósofos, ou todos eles juntos; eles apenas rodeavam o assunto, Deus aqui nos colocou o pássaro na mão. — John Trapp, 1660.

Onde a palavra bem-aventurado é pendurada como uma placa, podemos ter certeza de que encontraremos um homem piedoso lá dentro. — Sir Richard Baker.

O assento do escarnecedor é o assento do bêbado. — Matthew Henry, 1662-1714.

“Não anda... nem se detém... nem se assenta”, etc. Preceitos negativos são, em alguns casos, mais absolutos e peremptórios do que os afirmativos; pois dizer “aquele que andou no conselho dos piedosos” poderia não ser suficiente; pois ele poderia andar no conselho dos piedosos e, ainda assim, andar também no conselho dos ímpios; não ambos ao mesmo tempo, de fato, mas ambos em momentos distintos; enquanto que agora, esta negação o isenta em todos os momentos. — Sir Richard Baker.

A palavra האיש (haish) é enfática, aquele homem; aquele um entre mil que vive para a realização do fim para o qual Deus o criou. — Adam Clarke, 1844.

“Que não anda segundo o conselho dos ímpios”. Observe certas circunstâncias de seus diferentes caracteres e condutas. I. O homem ímpio tem o seu conselho. II. O pecador tem o seu caminho; e III. O escarnecedor tem o seu assento. O homem ímpio não se preocupa com a religião; ele não é zeloso nem por sua própria salvação nem pela dos outros; e ele aconselha e adverte aqueles com quem conversa a adotarem seu plano, e não se preocuparem com oração, leitura, arrependimento, etc.; “não há necessidade de tais coisas; viva uma vida honesta, não faça alarde sobre religião, e você se sairá bem no final”. Ora, “bem-aventurado o homem que não anda no conselho deste homem”, que não entra em seus esquemas, nem age de acordo com seu plano. O pecador tem sua maneira particular de transgredir; um é bêbado, outro desonesto, outro impuro. Poucos se entregam a toda espécie de vício. Há muitos homens avarentos que abominam a embriaguez, muitos bêbados que abominam a avareza, e assim por diante. Cada um tem o seu pecado que facilmente o assedia; portanto, diz o profeta: “Deixe o ímpio o seu caminho”. Ora, bem-aventurado é aquele que não se detém no caminho de tal homem. O escarnecedor pôs fim, no que diz respeito a si mesmo, a toda religião e sentimento moral. Ele se assentou — está totalmente confirmado na impiedade e zomba do pecado. Sua consciência está cauterizada, e ele é um crente em toda a descrença. Ora, bem-aventurado o homem que não se assenta na sua roda. — Adam Clarke.

Salmo 1:1 No hebraico, a palavra “bem-aventurado” é um substantivo plural, ashrey (bem-aventuranças), ou seja, todas as bem-aventuranças são a porção daquele homem que não se desviou, etc.; como se dissesse: “Todas as coisas vão bem com aquele homem que”, etc. Por que você ainda discute? Por que tira conclusões vãs? Se um homem encontrou aquela pérola de grande valor — amar a lei de Deus e separar-se dos ímpios —, todas as bem-aventuranças pertencem a esse homem; mas, se ele não encontra esta joia, ele buscará todas as bem-aventuranças, mas nunca encontrará nenhuma! Pois, assim como todas as coisas são puras para os puros, também todas as coisas são amáveis para os que amam, todas as coisas boas para os bons; e, universalmente, tal como tu és para contigo mesmo, tal é o próprio Deus para contigo, embora ele não seja uma criatura. Ele é perverso para com os perversos; e santo para com os santos. Portanto, nada pode ser bom ou salvífico para aquele que é mau; nada doce para aquele para quem a lei de Deus não é doce. A palavra “conselho” deve, sem dúvida, ser aqui recebida como significando decretos e doutrinas, visto que nenhuma sociedade de homens existe sem ser formada e preservada por decretos e leis. Davi, no entanto, com este termo, ataca o orgulho e a temeridade réproba dos ímpios. Primeiro, porque eles não se humilham a ponto de andar na lei do Senhor, mas governam a si mesmos por seu próprio conselho. E então ele o chama de “conselho deles”, porque é a prudência deles, e o caminho que lhes parece estar sem erro. Pois esta é a destruição dos ímpios: serem prudentes aos seus próprios olhos e em sua própria estima, e vestirem seus erros com a roupagem da prudência e do caminho reto. Pois se eles viessem aos homens na roupagem explícita do erro, não seria uma marca tão distintiva de bem-aventurança o não andar com eles. Mas Davi não diz aqui “na loucura dos ímpios” ou “no erro dos ímpios”; e, portanto, ele nos admoesta a nos guardarmos com toda a diligência contra a aparência do que é correto, para que o diabo, transformado em anjo de luz, não nos seduza com sua astúcia. E ele contrasta o conselho dos ímpios com a lei do Senhor, para que aprendamos a nos precaver dos lobos em pele de cordeiro, que estão sempre prontos para dar conselho a todos, para ensinar a todos e para oferecer assistência a todos, quando são, de todos os homens, os menos qualificados para fazê-lo. O termo “deteve-se” (stood) representa descritivamente sua obstinação e dura cerviz, na qual eles se endurecem e dão suas desculpas com palavras de malícia, tendo se tornado incorrigíveis em sua impiedade. Pois “deter-se” ou “permanecer” (to stand), na maneira figurativa de expressão da Escritura, significa ser firme e fixo; como em Romanos 14:4: “Para o seu próprio senhor, ele está em pé ou cai; mas estará firme, porque poderoso é Deus para o firmar”. Daí a palavra “coluna” ser, no hebraico, derivada de seu verbo “permanecer”, assim como a palavra estátua entre os latinos. Pois esta é a própria autojustificação e autoendurecimento dos ímpios — o parecerem a si mesmos que vivem retamente e que brilham na exibição externa de obras acima de todos os outros. Com respeito ao termo “assento”, sentar-se na cadeira é ensinar, agir como instrutor e mestre; como em Mateus 23:2: “Os escribas... estão assentados na cadeira de Moisés”. Eles se assentam na cátedra de pestilência, aqueles que enchem a igreja com as opiniões de filósofos, com as tradições de homens e com os conselhos de seus próprios cérebros, e oprimem as consciências miseráveis, pondo de lado, o tempo todo, a palavra de Deus, pela qual somente a alma é alimentada, vive e é preservada. — Martinho Lutero, 1536-1546.

Salmo 1:1 “Dos escarnecedores.” Peccator cum in profundum venerit contemnit — quando um ímpio chega ao fundo e ao pior do pecado, ele despreza. Então, o hebreu desprezará Moisés (Êxodo 2:14): “Quem te pôs a ti por maioral e juiz sobre nós?”. Então, Acabe contenderá com Micaías (1 Reis 22:18), porque ele não profetiza o bem a seu respeito. Toda criança em Betel zombará de Eliseu (2 Reis 2:23) e terá a ousadia de chamá-lo de “sobe, calvo!”. Eis aqui uma gota original de veneno que se avolumou até se tornar um oceano de peçonha: como uma gota do veneno de certas serpentes que, caindo na mão, entra nas veias e assim se espalha por todo o corpo até sufocar os espíritos vitais. Deus “rirá de vós e zombará” (Salmo 2:4), por vocês rirem e zombarem dele; e, por fim, desprezará a vós que o tendes desprezado em nós. Aquilo que um homem cospe contra o céu, cairá de volta em sua própria face. Vossas indignidades feitas aos vossos médicos espirituais dormirão no pó com vossas cinzas, mas se levantarão contra vossas almas no juízo. — Thomas Adams, 1614.

Salmo 1:2 “Antes, o seu prazer está na lei do Senhor.” A “vontade” [prazer], que aqui é significada, é aquele deleite do coração, e aquele certo prazer na lei, que não olha para o que a lei promete, nem para o que ela ameaça, mas apenas para isto: que “a lei é santa, justa e boa”. Portanto, não é apenas um amor pela lei, mas aquele deleite amoroso na lei que nenhuma prosperidade, nem adversidade, nem o mundo, nem o príncipe deste, podem remover ou destruir; pois ele irrompe vitoriosamente através da pobreza, da má fama, da cruz, da morte e do inferno, e, em meio às adversidades, brilha com mais intensidade. — Martinho Lutero.

Salmo 1:2 “O seu prazer está na lei do Senhor.” — Este deleite de que o profeta fala aqui é o único deleite que não cora nem empalidece; o único deleite que oferece um repasto sem uma conta a pagar depois; o único deleite que se conjuga em todos os tempos verbais; e, como Eneias a Anquises, carrega seus pais sobre as costas. — Sir Richard Baker.

Salmo 1:2 “E na sua lei medita.” No texto mais simples há um mundo de santidade e espiritualidade; e se nós, em oração e dependência de Deus, nos sentássemos para estudá-lo, contemplaríamos muito mais do que nos parece. Pode ser que, em uma única leitura ou olhar, vejamos pouco ou nada; como o servo de Elias foi uma vez e nada viu; por isso, foi-lhe ordenado que olhasse sete vezes. “E agora?”, diz o profeta. “Vejo uma nuvem se levantando, como a mão de um homem”; e, em pouco tempo, toda a superfície dos céus estava coberta de nuvens. Assim, você pode olhar superficialmente para uma Escritura e não ver nada; medite frequentemente nela, e ali você verá uma luz, como a luz do sol. — Joseph Caryl, 1647.

Salmo 1:2 “E na sua lei medita de dia e de noite.” — O homem bom medita na lei de Deus de dia e de noite. Os pontifícios afastam o povo comum deste tesouro comum, objetando esta suposta dificuldade. “Oh, as Escrituras são difíceis de entender, não se preocupem com elas; nós lhes diremos o seu significado.” Eles poderiam muito bem dizer: “O céu é um lugar abençoado, mas o caminho até lá é difícil; não se preocupem, nós iremos para lá por vocês.” Assim, no grande dia do julgamento, quando deveriam ser salvos por seu livro, ai! Eles não têm livro para salvá-los. Em vez das Escrituras, podem apresentar imagens; estes são os livros dos leigos; como se fossem ser julgados por um júri de escultores e pintores, e não pelos doze apóstolos. Não se deixem enganar assim; mas estudai o evangelho, assim como esperais consolo pelo evangelho. Aquele que espera pela herança, dará muito valor à escritura da posse. — Thomas Adams.

Salmo 1:2 “Meditar”, como é geralmente entendido, significa discutir, debater; e seu significado está sempre confinado a um envolvimento com palavras, como no Salmo 37:30: “A boca do justo meditará a sabedoria”. Por isso, Agostinho, em sua tradução, usa “tagarelar”; e é uma bela metáfora — assim como o tagarelar é a ocupação dos pássaros, uma contínua “conversação na lei do Senhor” (pois o falar é peculiar ao homem) deveria ser a ocupação do homem. Mas não consigo expor digna e plenamente o gracioso significado e a força desta palavra; pois este “meditar” consiste primeiro numa observação atenta das palavras da lei, e depois numa comparação das diferentes Escrituras; o que é uma certa caçada deleitosa, ou melhor, uma brincadeira com cervos numa floresta, onde o Senhor nos fornece os cervos e nos abre seus esconderijos secretos. E deste tipo de ocupação, surge por fim um homem bem instruído na lei do Senhor para falar ao povo. — Martinho Lutero.

Salmo 1:2 “E na sua lei medita de dia e de noite.” O homem piedoso lerá a Palavra de dia, para que os homens, vendo as suas boas obras, glorifiquem a seu Pai que está nos céus; ele o fará de noite, para que não seja visto pelos homens: de dia, para mostrar que não é um daqueles que temem a luz; de noite, para mostrar que é alguém que pode brilhar na sombra: de dia, porque esse é o tempo de trabalhar — “trabalhai enquanto é dia”; de noite, para que o seu Mestre não venha como um ladrão e o encontre ocioso. — Sir Richard Baker.

Salmo 1:2 Não encontro descanso, senão num recanto, com um livro. — Tomás de Kempis, 1380-1471.

Salmo 1:2 “Medita.” A meditação discrimina e caracteriza um homem; por ela, ele pode tirar a medida de seu coração, se é bom ou mau; permitam-me aludir àquilo: “Porque, como imaginou no seu coração, assim é ele.” Provérbios 23:7. Como é a meditação, tal é o homem. A meditação é a pedra de toque de um cristão; ela mostra de que metal ele é feito. É um índice espiritual; o índice mostra o que está no livro, assim a meditação mostra o que está no coração. — Thomas Watson, em Saints’ Spiritual Delight.

A meditação rumina o alimento e extrai a doçura e a virtude nutritiva da Palavra para o coração e para a vida: esta é a maneira pela qual os piedosos produzem muito fruto. — Bartholomew Ashwood, em Heavenly Trade, 1688.

Os naturalistas observam que, para sustentar e acomodar a vida corporal, são comunicadas diversos tipos de faculdades, e entre elas estas: 1. Uma faculdade atrativa, para assimilar e atrair o alimento; 2. Uma faculdade retentiva, para reter o que foi absorvido; 3. Uma faculdade assimiladora, para processar o nutrimento; 4. Uma faculdade aumentativa, para levar à perfeição. A meditação é todas estas. Ela ajuda o juízo, a sabedoria e a fé a ponderar, discernir e crer nas coisas que a leitura e a audição fornecem e suprem. Ela auxilia a memória a trancar as joias da verdade divina em seu tesouro seguro. Ela tem um poder digestivo e transforma a verdade específica em nutrimento espiritual; e, por último, ajuda o coração renovado a crescer e a aumentar seu poder de conhecer as coisas que nos são dadas gratuitamente por Deus. — Condensado de Nathaniel Ranew, 1670.

Salmo 1:3 “Uma árvore.” — Há uma árvore, encontrada apenas no vale do Jordão, mas bela demais para ser completamente ignorada: o oleandro, com suas flores brilhantes e folhas verde-escuras, dando o aspecto de um rico jardim a qualquer local onde cresce. É raramente, ou nunca, aludido nas Escrituras. Mas pode ser a “árvore plantada junto a ribeiros de águas, a qual dá o seu fruto na estação própria, e cujas folhas não cairão.” — A. P. Stanley, D.D., em Sinai and Palestine.

Salmo 1:3 “Uma árvore plantada junto a ribeiros de águas.” — Esta é uma alusão ao método oriental de cultivo, pelo qual regatos de água são feitos para fluir entre as fileiras de árvores e, assim, por meios artificiais, as árvores recebem um suprimento constante de umidade.

Salmo 1:3 “O seu fruto na estação própria.” — Em tal caso, a expectativa nunca é desapontada. Espera-se fruto, o fruto é produzido, e ele também vem no tempo em que deveria vir. Uma educação piedosa, sob as influências do Espírito divino, que nunca podem ser retidas onde são buscadas com fervor, certamente produzirá os frutos da justiça; e aquele que lê, ora e medita sempre verá a obra que Deus lhe deu para fazer; o poder pelo qual ele deve realizá-la; e os tempos, lugares e oportunidades para fazer aquelas coisas pelas quais Deus pode obter mais glória, sua própria alma mais bem, e seu próximo mais edificação. — Adam Clarke.

Salmo 1:3 “Na estação própria.” O Senhor considera os tempos que passam sobre nós e os coloca em nossa conta: portanto, aproveitemo-los e, como os enfermos no tanque de Betesda, entremos quando o anjo agita a água. Agora a igreja está aflita, é uma estação de oração e aprendizado; agora a igreja é engrandecida, é uma estação de louvor; estou agora num sermão, ouvirei o que Deus dirá; agora na companhia de um homem sábio e instruído, extrairei algum conhecimento e conselho dele; estou sob uma tentação, agora é o tempo adequado para me apoiar no nome do Senhor; estou num lugar de dignidade e poder, que eu considere o que é que Deus requer de mim num tempo como este. E assim, como a árvore da vida produz fruto todos os meses, também um cristão sábio, como um lavrador sábio, tem suas ocupações distintas para cada mês, produzindo seu fruto na sua estação. — John Spencer, em Things New and Old, 1658.

Salmo 1:3 “Na estação própria.” Oh, palavra dourada e admirável! Pela qual se afirma a liberdade da justiça cristã. Os ímpios têm seus dias estabelecidos, tempos determinados, certas obras e certos lugares; aos quais se apegam tão firmemente que, se seus vizinhos estivessem perecendo de fome, não poderiam ser arrancados deles. Mas este homem bem-aventurado, sendo livre em todos os tempos, em todos os lugares, para toda obra e para toda pessoa, te servirá sempre que uma oportunidade lhe for oferecida; o que quer que lhe venha às mãos para fazer, ele o faz. Ele não é nem judeu, nem gentio, nem grego, nem bárbaro, nem qualquer outra pessoa em particular; ele dá o seu fruto na sua estação, sempre que Deus ou o homem requer a sua obra. Portanto, seus frutos não têm nome, e seus tempos não têm nome. — Martinho Lutero.

Salmo 1:3 “Sua folha também não murchará.” Ele descreve o fruto antes de descrever a folha. O próprio Espírito Santo sempre ensina todo pregador fiel na igreja a saber que o reino de Deus não consiste em palavras, mas em poder. 1 Coríntios 4:20. Novamente, “Jesus começou não só a fazer, mas a ensinar.” Atos 1:1. E ainda, “que foi profeta, poderoso em obras e palavras.” Lucas 24:19. E assim, que aquele que professa a palavra da doutrina, primeiro produza os frutos da vida, se não quiser que sua folha murche, pois Cristo amaldiçoou a figueira que não dava fruto. E como diz Gregório, aquele homem cuja vida é desprezada é condenado por sua doutrina, pois ele prega aos outros e é ele mesmo um réprobo. — Martinho Lutero.

Salmo 1:3 “Sua folha também não murchará.” As árvores do Senhor são todas sempre-vivas. Nenhum frio de inverno pode destruir seu verdor; e, no entanto, ao contrário das árvores sempre-vivas em nosso país, todas elas dão fruto. — C. H. S. [Charles Haddon Spurgeon]

Salmo 1:3 “E tudo quanto fizer [ou, produzir ou empreender] prosperará.” E com respeito a este “prosperar”, cuida para que não entendas uma prosperidade carnal. Esta prosperidade é uma prosperidade oculta, e reside inteiramente secreta no espírito; e, portanto, se não tens esta prosperidade que é pela fé, deverias antes julgar tua prosperidade como a maior adversidade. Pois, assim como o diabo odeia amargamente esta folha e a palavra de Deus, assim também odeia aqueles que a ensinam e a ouvem, e persegue tais pessoas, auxiliado por todos os poderes do mundo. Portanto, ouves de um milagre, o maior de todos os milagres, quando ouves que todas as coisas que um homem bem-aventurado faz prosperam. — Martinho Lutero.

Salmo 1:3 Uma revista acadêmica demonstrou que, em vez de “Tudo quanto ele fizer prosperará”, a tradução poderia ser “Tudo quanto ela [a árvore] produzirá chegará à maturidade.” Isso torna a figura de linguagem completa e é sancionado por alguns manuscritos e versões antigas.

Salmo 1:3 (última cláusula) A prosperidade exterior, se acompanha um andar próximo a Deus, é muito doce; como a cifra que, quando segue um algarismo, aumenta o número, embora não seja nada em si mesma. — John Trapp.

Salmo 1:4 “Palha.” Aqui, de passagem, podemos deixar os ímpios saberem que eles têm um agradecimento a fazer do qual mal suspeitam; que eles podem agradecer aos piedosos por todos os bons dias que vivem sobre a terra, visto que é por causa deles, e não por causa própria, que os desfrutam. Pois, assim como a palha, enquanto está unida e próxima ao trigo, desfruta de alguns privilégios por causa do trigo, e é guardada cuidadosamente no celeiro; mas, assim que é separada e apartada do trigo, é lançada fora e espalhada pelo vento; assim os ímpios, enquanto os piedosos estão em sua companhia e vivem entre eles, participam, por causa deles, de algumas bem-aventuranças prometidas aos piedosos; mas se os piedosos os abandonam ou são tirados do meio deles, então ou um dilúvio de água vem subitamente sobre eles, como veio sobre o mundo antigo quando Noé o deixou; ou um dilúvio de fogo, como veio sobre Sodoma, quando Ló a deixou e saiu da cidade. — Sir Richard Baker.

Salmo 1:4 “O vento espalha,” ou arremessa para longe; o Aramaico traduz “vento” por “redemoinho.” — Henry Ainsworth, 1639.

Isso mostra a veemente tempestade da morte, que varre a alma do ímpio.

Salmo 1:5 “Pelo que os ímpios não subsistirão no juízo”, etc. E não se pode também conceber uma razão assim, pela qual os ímpios nunca poderão chegar a fazer parte da congregação dos justos: os justos seguem um caminho que Deus conhece, e os ímpios seguem um caminho que Deus destrói; e, visto que esses caminhos nunca podem se encontrar, como poderiam os homens que seguem esses caminhos se encontrar? E para garantir que eles de fato nunca se encontrarão, o profeta expressa o caminho dos justos pelo primeiro elo da corrente da bondade de Deus, que é o seu conhecimento; mas expressa o caminho dos ímpios pelo último elo da justiça de Deus, que é a sua destruição; e embora a justiça de Deus e a sua misericórdia muitas vezes se encontrem e sejam contíguas uma à outra, o primeiro elo de sua misericórdia e o último elo de sua justiça nunca podem se encontrar, pois nunca se chega à destruição até que Deus seja ouvido a dizer Nescio vos, “Não vos conheço”, e o nescio vos em Deus, e o conhecimento de Deus, certamente nunca poderão se encontrar. — Sir Richard Baker.

Salmo 1:5 O ar irlandês antes tolerará um sapo ou uma cobra do que o céu um pecador. — John Trapp.

Salmo 1:6 “Porque o Senhor conhece o caminho dos justos; porém o caminho dos ímpios perecerá.” Eis como Davi aqui nos aterroriza para longe de todas as aparências prósperas, e nos recomenda várias tentações e adversidades. Pois este “caminho” dos justos todos os homens reprovam completamente; pensando também que Deus nada sabe sobre tal caminho. Mas esta é a sabedoria da cruz. Portanto, é somente Deus quem conhece o caminho dos justos, tão oculto ele é para os próprios justos. Pois sua destra os conduz de maneira maravilhosa, visto que é um caminho, não dos sentidos, nem da razão, mas somente da fé; daquela fé que vê na escuridão e contempla coisas que são invisíveis. — Martinho Lutero.

Salmo 1:6 “Os justos.” Aqueles que se esforçam por viver retamente em si mesmos e têm a justiça de Cristo imputada a eles. — Thomas Wilcocks, 1586.

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Livro II: Salmos 42 Salmos 43 Salmos 44 Salmos 45 Salmos 46 Salmos 47 Salmos 48 Salmos 49 Salmos 50 Salmos 51 Salmos 52 Salmos 53 Salmos 54 Salmos 55 Salmos 56 Salmos 57 Salmos 58 Salmos 59 Salmos 60 Salmos 61 Salmos 62 Salmos 63 Salmos 64 Salmos 65 Salmos 66 Salmos 67 Salmos 68 Salmos 69 Salmos 70 Salmos 71 Salmos 72

Livro III: Salmos 73 Salmos 74 Salmos 75 Salmos 76 Salmos 77 Salmos 78 Salmos 79 Salmos 80 Salmos 81 Salmos 82 Salmos 83 Salmos 84 Salmos 85 Salmos 86 Salmos 87 Salmos 88 Salmos 89

Livro IV: Salmos 90 Salmos 91 Salmos 92 Salmos 93 Salmos 94 Salmos 95 Salmos 96 Salmos 97 Salmos 98 Salmos 99 Salmos 100 Salmos 101 Salmos 102 Salmos 103 Salmos 104 Salmos 105 Salmos 106

Livro V: Salmos 107 Salmos 108 Salmos 109 Salmos 110 Salmos 111 Salmos 112 Salmos 113 Salmos 114 Salmos 115 Salmos 116 Salmos 117 Salmos 119 Salmos 120 Salmos 121 Salmos 122 Salmos 123 Salmos 124 Salmos 125 Salmos 126 Salmos 127 Salmos 128 Salmos 129 Salmos 130 Salmos 131 Salmos 132 Salmos 133 Salmos 134 Salmos 135 Salmos 136 Salmos 137 Salmos 138 Salmos 139 Salmos 140 Salmos 141 Salmos 142 Salmos 143 Salmos 144 Salmos 145 Salmos 146 Salmos 147 Salmos 148 Salmos 149 Salmos 150

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